2025/06/26

Cuba e Iraque: dois desafios para a Europapor Manuel dos Santos

A situação política internacional continua altamente dependente da forma como evoluir e se normalizar o conflito que os Estados Unidos e um punhado dos seus aliados sustentam no Iraque.

Curiosamente a imprensa internacional e, por reflexo, as opiniões públicas nacionais nos países da Europa tem salientado mais a qualidade das suas democracias, medida pelo grau de fiabilidade com que os diversos lideres políticos justificaram a guerra, do que as inegáveis consequências políticas, para a paz no Mundo e especialmente no Médio Oriente, que o desfecho daquele conflito contém.

Apesar de todas as dificuldades, algumas mesmo inesperadas face à facilidade com que caiu o regime do Iraque, é inegável que a situação no Mundo é, hoje, melhor e, sobretudo, começa a ver-se, relativamente ao conflito de maior grau de dificuldade – o que opõe Israel à Palestina – uma boa oportunidade de resolução.

Apesar disso, o que continua a ser especialmente discutido é a legalidade da intervenção americana, à luz do direito internacional resultante de um equilíbrio de terror que, hoje, felizmente, já não existe, ou a natureza e consistência dos argumentos que, nomeadamente, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, foram usados para “justificar” a guerra.

Tudo isto se tornou mais evidente e ganhou uma dimensão inesperada, à luz dos últimos desenvolvimentos, marcada pela eliminação dos filhos do ditador do Iraque e pelo conflito que opõe a BBC ao Governo britânico que já provocou o desaparecimento, em circunstâncias trágicas, do cientista inglês David Kelly.

Dir-se-à que esta é a verdadeira força das democracias que permanentemente se discutem e confrontam que sempre rejeitam utilizar, em proveito próprio, os métodos, os meios e os instrumentos que combatem em relação às sociedades que não são livres.

Contudo, o acessório ainda que muito importante, não pode nunca esconder o essencial. Ora, o essencial é que a intervenção norte-americana e britânica no Iraque e o seu sucesso (que todo o mundo livre deve desejar) se tornou num elemento fulcral e decisivo da paz e surge hoje claramente como o único caminho para promover a prazo, a resolução definitiva do conflito entre Israel e os árabes. Como também é essencial, compreender, sobretudo para os europeus, que a intervenção de Tony Blair, o Primeiro-ministro da Grã-Bretanha, neste conflito, pode ter dado à Europa o pretexto e a oportunidade de assumir um papel de destaque e importância numa reforçada e revigorada cooperação transatlântica com os Estados Unidos.

São, portanto, bastante mais positivos que negativos, para o mundo livre, as consequências que podem resultar da guerra do Iraque (o que será visível no curto prazo seguramente) o que, se não impede que tudo se discuta em democracia, exige, pelo menos também que não se esqueça, discuta e reflicta sobre o que é verdadeiramente essencial.

Paralelamente com a discussão da situação no Iraque e das suas consequências nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a imprensa reflectiu, nos últimos dias, o conflito verbal aberto entre a União Europeia e Cuba.

O resumo da situação é fácil de fazer: na sequência de um certo endurecimento do regime cubano, perante os seus opositores, que se traduziu em pesadas penas de prisão e em 3 condenações à morte, a Europa reagiu condicionando a futura ajuda financeira e política à abertura do regime. De imediato Cuba, pela voz do seu líder, ameaçou prescindir de qualquer ajuda e abriu um conflito diplomático de consequências ainda dificilmente previsíveis.

Tive, recentemente, oportunidade de escrever neste espaço que a situação política e social cubana é extremamente complexa e dificilmente compreensível para quem não a aborde segundo uma óptica suficientemente ampla quer do ponto de vista socio-cultural, quer do ponto de vista histórico.

O “socialismo” de Cuba não é hoje exportável para fora da ilha (como o comprova a patética imitação do ditador Venezuelano) e o perigo cubano, bem presente na década de 60 com o episódio dos mísseis soviéticos apontados ao seu poderoso vizinho é, hoje, uma fixação e um pretexto para justificar um confronto.

Um confronto que opõe sobretudo os cubanos residentes na ilha e defensores do regime castrista aos cubanos exilados nos Estados Unidos que detém um poder de influência notável sobre a Administração Bush.

Com efeito os cubanos no exílio condicionam muitas das decisões políticas do Estado da Flórida e ufanam-se, mesmo, de serem os principais responsáveis pela vitória eleitoral do actual Presidente americano.

Daí que estejam a reagir violentamente à política cautelosa dos Estados Unidos, no que respeita à imigração clandestina, mesmo quando são invocados motivos políticos, o que na prática traduz uma relativa normalização com a República de Fidel Castro e põe em crise o discurso oficial mais violento quanto à ausência de liberdade dos cubanos.

Ora é precisamente este comportamento que permite perceber melhor a hipocrisia das relações externas dos dois estados e consolida a convicção que os dois regimes políticos precisam um do outro para se justificar.

Por isso é importante o papel que a União Europeia queira e possa desempenhar nesta área do Mundo.

Talvez tivesse sido mais prudente, antes de ameaçar com sanções financeiras e represálias políticas, ir ao terreno verificar as condições concretas do exercício do regime político cubano e as suas limitações no quadro de um embargo económico, com consequências trágicas para o povo que de algum modo alimenta e sustenta a ditadura e as suas consequências mais perversas, como a pena de morte.

Mesmo agora que o ditador cubano aproveitou o 26 de Julho (que é sempre um momento de catarse e exaltação nacional sabiamente aproveitado por Fidel Castro) para zurzir na política europeia, não pode considerar-se que estejam fechadas todas as portas e eliminadas todas as oportunidades.

Sábia foi por isso a reacção da Comissão Europeia ao desvalorizar o conteúdo do discurso presidencial do último “20 de Julho” solicitando uma verdadeira “prova de vida” das intenções anunciadas.

O Iraque e a República de Cuba constituem, cada vez mais, dois exemplos onde a política externa da União Europeia se pode afirmar e consolidar.

E se já não existe qualquer dúvida do interesse da Europa em apoiar, no essencial, o comportamento americano no conflito do Iraque, também não se pode duvidar do interesse europeu em definir, em relação a Cuba, uma política própria que não tem necessariamente de coincidir com os “interesses visíveis” dos Estados Unidos.

EUROPA: DEZ PONTOS PARA A C.I.G.por G. d’Oliveira Martins

1. Que Constituição para a União Europeia? O debate sobre o futuro da União já se iniciou. Importa, antes do mais, tornar claro que a Conferência Intergovernamental (CIG) deverá encontrar soluções capazes de motivar os cidadãos europeus em nome de um projecto comum.

Há, pois, muito trabalho ainda a realizar, sobretudo se quisermos manter a coerência fundamental do anteprojecto elaborado pela Convenção. Os aperfeiçoamentos são necessários. Daí que a ideia de Constituição ou de Tratado Constitucional deva ficar associada, formal e substancialmente, à maior protecção dos cidadãos e ao respeito inequívoco da esfera própria dos Estados de Direito, que passarão a ficar integrados numa rede de natureza constitucional com poderes definidos e limitados, orientados para a defesa e salvaguarda dos interesses comuns europeus.
2. As duas soberanias. A UE baseia-se nas soberanias nacionais dos Estados membros, que livremente decidiram compartilhar uma soberania europeia, correspondente às competências comunitárias, definidas pela Constituição. Importa, por isso, impedir a extensão artificial e burocrática de competências à custa de poderes constitucionais dos Estados. A Constituição da União não se sobreporá às Constituições nacionais relativamente aos poderes soberanos nacionais, ao contrário do que por aí se diz. Uma coisa são as competências inerentes à soberania nacional, para as quais prevalecem as Constituições nacionais, outra são as competências próprias das União ou as exercidas em comum, para as quais não pode deixar de prevalecer a Constituição Europeia.
3. As duas legitimidades. Como União de Estados e de Povos, é essencial tornar claro para o cidadão europeu que os poderes comunitários, e em especial o poder legislativo, têm de resultar da convergência dessas duas legitimidades. Deve, por isso, adoptar-se o método senatorial, ou seja, o poder legislativo deve ser exercido pelo Parlamento Europeu, em representação dos Povos e dos cidadãos, e por uma Câmara dos Estados, onde estes estejam representados igualitariamente, à semelhança do que ocorre, por exemplo, na Confederação Helvética. Assim, cidadãos e Estados estarão adequadamente representados por duas legitimidades, que os tornem relevantes na vida europeia.
4. O princípio da subsidiariedade. Para que a esfera nacional ou local não seja atingida e para garantir uma acrescida competência de acompanhamento das questões comunitárias atribuída aos parlamentos nacionais, deve ainda preservar-se o princípio da subsidiariedade e o instrumento proposto pela Convenção, no sentido de prever um alerta parlamentar perante as iniciativas da Comissão que possam ferir a esfera de poderes das assembleias legislativas. Trata-se de um avanço com muito mais consequências do que à primeira vista possa parecer, uma vez que os parlamentos dos Estados membros vão ter de se reforçar técnica e politicamente para afirmarem as soberanias nacionais.
5. A necessária simplificação. Perante a necessidade de permitir aos cidadãos a legibilidade das decisões comunitárias, em especial no campo legislativo, os procedimentos deverão ser reduzidos em número, a co-decisão deve constituir-se na regra, e as fontes de direito deverão passar a ter designações que facilitem a sua compreensão por todos (leis-quadro em lugar de directivas, leis europeias em lugar dos regulamentos etc.). Nesse sentido, o ante-projecto de nova Constituição, saído da Convenção, apresenta-se como um passo positivo de clareza e transparência, que não poderá ser adulterado. Basta ler o texto para perceber o avanço significativo alcançado.
6. Cidadania europeia e Europa Social. A cidadania europeia reconhecida expressamente e reforçada pela integração da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, com força obrigatória, no novo Tratado, permitirá uma melhor protecção dos europeus em todo o mundo, designadamente pelas missões diplomáticas de países da União. A personalidade jurídica da UE permitirá ainda a adesão à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a aplicar nas relações com os órgãos comunitários e relativamente às políticas comuns. Há, no entanto, muito pouca audácia no tocante à Europa social, à coordenação no governo económico e aos recursos próprios. E, se bem que se preveja a coesão económica, social e territorial e o pleno emprego entre os objectivos da União, a verdade é que o alargamento e o desenvolvimento europeu exigem mais meios e mais coordenação – sob pena de fracassarem.
7. O método comunitário. Importa preservar o equilíbrio de poderes e competências que permitiu o sucesso da União Europeia. Não deverá, por isso, haver dúvidas sobre quem detém o poder legislativo ou o poder executivo. A Comissão representa o interesse geral, o Conselho e a Comissão terão de completar-se, o Parlamento Europeu deverá cultivar, em nome dos cidadãos e dos Povos, ligações institucionais mais fortes com a legitimidade democrática e parlamentar dos Estados.
8. A maioria qualificada e o veto. Infelizmente, pouco se avançou no elenco de matérias a decidir por maioria qualificada. Com 25 ou 30 membros, o veto tornar-se-á gerador de vazios, em matérias essenciais, como a da paz e da segurança. A regra da unanimidade não nos favorece, antes podendo abrir caminho à lógica do directório. Por ironia, o defensores da unanimidade são, assim, os melhores aliados da lógica anti-democrática do domínio dos grandes… E se falta uma cláusula de segurança comum, à semelhança do existe na OTAN ou existiu na UEO, tudo se complica ainda mais, uma vez que não há instrumentos expeditos de defesa comum, até para reforçar uma parceria euro-atlântica entre iguais.
9. A Presidência do Conselho Europeu e a Comissão. O tema da distribuição de poder é fundamental, mas não é tudo. Vai ter de se encontrar um novo equilíbrio, que favoreça a estabilidade e a legitimidade. Fim das Presidências rotativas? É fundamental deixar claro que tem de haver um sinal inequívoco de que a igualdade entre os Estados não é uma palavra vã. Uma Comissão mais reduzida? Não se caia no erro de querer estabelecer no Tratado o número de comissários, para depois de 2009. Temos, sim, de evitar qualquer sentimento de perda para os cidadãos. E o princípio da lealdade cívica exigirá que todos saibam que não há cartas marcadas nas decisões comunitárias. Todos poderemos estar do lado vencedor ou do lado que perde… Essa a regra do jogo.
10. O Directório ou a União de Estados e Povos livres e soberanos? Vai haver agora muita demagogia e vão ser usadas mentiras ou meias verdades, em nome do populismo mais ou menos nacionalista. Eis porque um debate sério é fundamental. Vai haver novidades na CIG. Vai ter de haver alterações. Só serão para melhor, porém, se não caírem na cegueira de querer continuar a pensar com base numa soberania que já não existe. Caso contrário a lógica imobilista só terá uma consequência – reforçar os egoísmos, tornar irrelevantes países como Portugal e consolidar um qualquer Directório, a funcionar na velha lógica diplomática… Quem avisa…

Semanário – Desporto 141por Manuel Lopo de Carvalho

1 – O Sporting atravessou um período delicado da sua vida neste final de época futebolística, dado que por um lado teve de enfrentar um processo sucessório ao nível da sua SAD e por outro viu-se na necessidade de reforçar a sua equipa de futebol que tinha entrado num declínio inquestionável.

A maneira como conseguiu lidar com estas questões saldou-se por um resultado francamente positivo. A forma serena, elevada e profissional como se processou a saída de Ribeiro Teles e a entrada de José Eduardo Bettencourt abonam muito a favor da organização instalada no Sporting e da qualidade dos dirigentes envolvidos.
O mandato de Ribeiro Teles caracterizou-se por um rigor na gestão e por um anti vedetismo que muito contrastou, para melhor, com o do seu antecessor. Os resultados obtidos foram excelentes. Um título de campeão, uma Taça de Portugal e uma Super-Taça, falam por si.
A entrada de Bettencourt tem o grande mérito de manter a linha de rumo que vem de trás e, como os primeiros indícios apontam, vai ser continuada a política de rigor cujos frutos começam a estar à vista.
O lucro apontado para o próximo exercício é da ordem de 12 milhões de euros sendo um desafio muito difícil para a gestão. A ser conseguido constituirá a consagração de uma gestão de rigor que devia servir de exemplo para outros que muito falam e gritam mas pouco fazem.
A forma como a equipa foi reforçada também é digna de nota. Primeiro trataram da venda de Ricardo Quaresma para realizar meios financeiros e depois aplicaram esses meios disponíveis de forma criteriosa, reforçando a equipa em sectores que se encontravam altamente carenciados.
É um facto que tudo isto foi feito socorrendo-se do brilhante “procurement” realizado pelo Benfica mas é bom que fique claro que as contratações só foram realizadas depois do Benfica ter desistido. Ou seja o Sporting não deu azo a qualquer desculpa de mau pagador por parte do Benfica. Limitou-se a comprar o que o seu rival não conseguiu fazer.
Entretanto e apesar destas contratações conseguiram baixar os custos operacionais do clube de forma significativa.
Para começo de mandato é caso para dizer que Bettencourt entra a matar.

2 – Entretanto do outro lado da segunda circular reina o total descontrolo emocional e o pânico ansioso.
Por um lado a equipa não foi reforçada, nem sequer retocada.
Decorreu mais um ano e alguns dos seus jogadores fulcrais, que já não eram novos, ficaram obviamente mais velhos e lentos. Zahovic, Helder e Argel são disso os exemplos mais flagrantes.
Por outro lado o sorteio da Liga dos Campeões não podia ter sido pior. Nem mesmo o Celta, apesar das sete más recordações, era tão desfavorável como a Lázio de Roma. O facto de esta equipa, há pouco mais de três meses, ter sido goleada e afastada da final da Taça UEFA pelo F.C.Porto, agravado com o conhecimento público da existência de problemas com os seus principais jogadores com repercussões negativas no seu rendimento, torna inevitável as comparações. Uma eliminação será seguramente muito mal recebida pelos sócios.
Por outro lado ainda, o sorteio da Super-Liga também não foi famoso devendo o Benfica defrontar o Boavista, Guimarães e F.C.Porto até à quinta jornada.
Sabendo-se, como se sabe, a influência que os resultados desportivos normalmente têm nos actos eleitorais do Benfica, percebe-se bem o pânico e a desorientação directiva.
Só isso, aliás, justifica a ressurreição do desaparecido e saudoso porta-voz João Malheiro que publicamente negou por duas vezes a evidência, ou seja que José Veiga tem praticamente o exclusivo dos jogadores do Benfica como resultado evidente de uma política da sua SAD. Ficou sem se perceber porque é que toda a gente sabe disto excepto, pelos vistos, a própria SAD e o seu porta-voz.
O aproximar do acto eleitoral e o medo de perder está, pois, a diminuir o discernimento dos dirigentes, não sendo, definitivamente, bom conselheiro.
Para enfrentar os próximos dois meses com calma e paz de espírito, sugere-se aos dirigentes benfiquistas que promovam a entrada imediata dos famosos 500.000 sócios que prometeram para este Verão. Assim ficará garantido que assegurarão uma sólida maioria de sócios atentos, veneradores e obrigados no próximo acto eleitoral, deixando consequentemente de ter preocupações e devolvendo alguma tranquilidade ao clube.

O IMBRÓGLIO EUROPEUpor Jorge Ferreira

1.O problema da substância
Valery Giscard d’Estaing afirmou no dia 12 de Junho de 2001 na Assembleia Nacional francesa que ” quanto mais a Europa se alarga mais se torna impossível reformá-la”, que ” uma Europa a 27 não pode ter como objectivo um elevado grau de integração, nem dotar-se de instituições federais”, e que “votou contra a ratificação do Tratado de Nice (…)

porque é desfavorável aos interesses da França”.

Assim mesmo.

Entretanto, o mesmo Valery Giscard d’Estaing entregou à Presidência italiana uma proposta de Constituição europeia, para que a Conferência Intergovernamental, que se inicia em Outubro, a adopte.

E como chegámos até aqui?

Essa Constituição foi elaborada por uma Convenção, cujos membros não foram escolhidos pelo voto, cujo mandato foi excedido, pois que nunca lhe foi encomendada a elaboração de nenhuma Constituição e cujo funcionamento é um manual anti-democrático ao vivo.

Basta ler o que está escrito no Relatório enviado pela Presidência da Convenção ao Presidente do Conselho: “Foi negado aos membros da Convenção o direito à tradução, distribuição, debate e votação das suas alterações; nem um só eurocéptico ou eurorealista foi autorizado a estar presente como observador ou a participar nos trabalhos do Praesidium, nem de nenhum dos seus secretariados; Giscard d’Estaing não permitiu o exercício da democracia, nem um processo normal de votação na Convenção; o projecto de Constituição cria um novo Estado europeu centralizado, com mais poderes, mais remoto, com mais políticos, mais burocracia e um maior afastamento entre governantes e governados”.

Já não restam dúvidas para todos que o apregoado consenso na Convenção não passa de uma fraude política, que no fundo traduz uma imposição disfarçada de um texto pretensamente iluminado.

Esta Constituição é juridicamente ilegítima e politicamente errada.

A última coisa de que a Europa necessitava era de uma Constituição. A Constituição europeia resulta primeiramente de uma estratégia franco-alemã para acorrentar os restantes países europeus à sua estratégia específica, que não tem de ser necessariamente a estratégia dos outros países europeus.

Como afirmou António Barreto esta Constituição é “um processo furtivo de chantagem e hipoteca, de troca e baldroca, concebido com o propósito de amarrar países e governos e de transformar um debate em facto consumado”.

Está actualmente em curso uma estratégia de sedução que passa por dizer o mal e a caramunha desta Constituição europeia, acolhendo assim as vozes críticas do processo e da substância, para depois rematar com a seguinte conclusão: bom, mas agora não podemos voltar para trás, e se acaso votarmos contra a Constituição ficaríamos sem ela, o que seria bom, mas ficaríamos também sem Europa e sem União, o que seria péssimo. Assim concluiu António Barreto a sua posição sobre a questão.

Ora, esta posição, que é um erro em António Barreto, vai certamente transformar-se numa manha para os federalistas e para os centralistas.

De uma vez por todas há que não ter medo na Europa. Há que ter a coragem de resistir à chantagem do directório. Há que que ter a força de dizer não. Porque a verdade é que é possível outra Europa. Mas essa outra Europa jamais verá a luz do dia se todos nos conformarmos.

Por cá tememos o pior. Durão Barroso já afirmou que só quer ver alguns pormenores esclarecidos, denunciando assim a submissão do Governo ao diktat do Praesidium. O que significa que para o Governo o texto é aceitável. Ora, sucede que não é.

Juristas ilustres já desfizeram este absurdo jurídico a que chamam de Constituição europeia. Mas vai ser necessário dar-lhe também combate político.

2. O problema do método.

É óbvio para toda a gente dotada de bom senso, que uma coisa destas merece um referendo. O referendo sobre a Europa que nunca deixaram fazer em Portugal. O referendo que é o exercício da soberania popular por excelência.

Esclareçamos desde já um primeiro ponto: se se quer fazer um referendo sobre o resultado da Conferência Intergovernamental deste ano, temos de saber primeiro se vamos referendar um facto consumado ou se vamos decidir efectivamente alguma coisa. Isto é: se vamos referendar antes ou depois de o Governo assinar. Se o referendo é a sério e para decidir ou é a brincar e a fingir.

Se o referendo fôr antes, o povo decide e o Governo respeita. Mas se o referendo fôr depois da assinatura, o Governo tem desde logo a obrigação de esclarecer quais as consequências políticas é que retirará de uma eventual derrota da sua posição.

A verdade é que não se pode transformar um referendo desta natureza num plebiscito ao Primeiro-Ministro. Cheiraria demais ao plebiscito constitucional de 1933…,desvirtuaria por completo um instituto nobre e útil cada vez mais necessário nas democracias contemporâneas.

Depois é necessário resolver um segundo ponto: da Conferência Intergovernamental sairá um tratado. Mesmo que na substância seja uma Constituição, sairá formalmente um tratado. Assim sendo, a Constituição portuguesa, tal como está, proíbe os referendos que tenham por objecto tratados internacionais.

Por outras palavras: para referendar o tratado que vai sair da próxima Conferência Intergovernamental é necessário alterar a Constituição. Só é possível alterar a Constituição se o PS e o PSD estiverem de acordo, porque são necessários dois terços para aprovar alterações à Constituição.

A pergunta é: vão o PS e o PSD entender-se para alterar a Constituição no sentido de permitir o referendo? Vão o PS e o PSD pôr de lado o seu imobilismo doutrinário, os seus preconceitos politico-constitucionais e permitir finalmente o que sempre proíbiram? Ou, pelo contrário, quando Durão Barroso admitiu a possibilidade de fazer este referendo estava a brincar?

E se não fôr alterada a Constituição como vão o PS e o PSD descalçar esta bota já de si bastante anti-democrática por nascença?

Pensarão fazer uma simples e vazia consulta popular não vinculativa, onde a abstenção seria esmagadora, em que o significado político seria nulo, em que se estaria a brincar à democracia directa em vez de se dar a palavra ao povo para ser o povo a decidir aquilo que só ao povo cumpre decidir?

É urgente saber as respostas a estas perguntas. A bem da seriedade do processo político.

Por último é necessário esclarecer desde já que a peregrina ideia de referendar a Constituição europeia no dia das próximas eleições europeias, que ocorrerão em Junho de 2004, seria uma batota política inaceitável. Estaríamos ainda no domínio do plebiscito. Não é boa política em democracia misturar água com azeite.

Isto, claro, se não quisermos seguir a sugestão do Presidente do Praesidium da Convenção Europeia. Quando entregou o texto convencional a Sílvio Berlusconi, Giscard d’Estaing disse que o ideal seria assinar o tratado que instituísse a sua Constituição na véspera das eleições europeias, pois que dessa forma estas eleições poderiam constituir um momento e um acto de mega-ratificação nas urnas da sua Constituição! Um democrata este francês…

Lisboa, 31 de Julho de 2003

Política, Forças Armadas, justiça e jornalismopor Pedro Cid

Não me parece correcto que o general Silva Viegas se tenha demitido da Chefia do Estado Maior do Exército com a alegação pública de que tinha perdido a confiança no ministro da Defesa Nacional. Dizer isto, desta forma, e com todo o respeito, é contribuir para dar mais uma pequena machadada na nossa democracia.

Subverte os princípios da legítima subordinação dos militares ao poder político sufragado pelo voto. Isto, no plano dos valores e da ética de que as Forças Armadas são, de certa forma, depositárias únicas do nosso património.
Não quero retirar ao Silva Viegas a força do seu gesto de demissão. Parece legítimo dizer que os militares têm uma formação que não é compatível com certos comportamentos, formais ou substanciais. O militar, sério e compenetrado com os valores que lhe ensinaram a defender, é escravo da sua palavra. O que ele promete, cumpre. O que lhe prometem deve ser cumprido. Ou seja, o actual Ministro da Defesa, enquanto titular de uma pasta, que é prestigiada, que gere politicamente as Forças Armadas, naquilo onde a política tem força orientadora, nem sempre terá tratado os militares com a dignidade, formal e substancial, que eles reclamam para si. Um ministro pode ter um percalço inesperado e chegar atrasado a uma cerimónia. Não pode fazê-lo sistematicamente, porque isso fere os tais princípios por que se norteiam as Forças Armadas. O Ministro da Defesa não pode titubear na linha de rumo de reformas, nem dizer aos Chefes militares uma coisa e fazer outra, com a irresponsabilidade (e leviandade) política que é incompatível com as funções que exerce. São estas coisas acumuladas que levam um general dos mais prestigiados das nossas Forças Armadas ( já na reserva e com liberdade para fazer tais declarações), a dizer que o actual ministro não é confiável…
O general Silva Viegas foi imprudente na sua declaração. A demissão, por si só, ainda por cima apresentada ao Presidente da República, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas, directamente e não ao Chefe do Estado Maior General, seu superior hierárquico operacional ou mesmo ao próprio Ministro da Defesa, era já por si suficientemente ruidosa. Dizer que perdeu a confiança no Ministro é, no fundo, retirar espaço de manobra ao Presidente da República, o qual, aliás, nem sequer pediu ao general que aguardasse – aceitou logo o seu pedido de demissão – quando me parece que, antes de o fazer, devia consultar o Governo. Se o fez – pôde tê-lo feito – até agora não houve fugas de informação, o que também não deixa de ser curioso.
A reforma das Forças Armadas centra-se sobretudo na questão da sua profissionalização, da redução de efectivos, que devem ser altamente qualificados nos diversos patamares de hierarquia, na gestão harmoniosa de recursos, nos cortes em duplicação de missões, de institutos, de academias e, se calhar até de ramos e de armas. O Ministro Paulo Portas não pode viver com os louros políticos de ter conseguido resolver problemas que há muito se arrastavam, nomeadamente contagens de serviço e aposentação para os antigos combatentes. Não pode contentar-se com decisões, importantes sem dúvida, e até decisivas para o futuro, de resolução de contratos, de revisão da questão dos submarinos, ou das OGMA. Tem de olhar, para o dispositivo humano e de grande qualidade técnica que são os elementos, individual e colectivamente, considerados das Forças Armadas. Isso é o mais difícil e é o que tem tardado a ser feito. O Dr. Paulo Portas tem de perceber que qualquer afronta, mínima que seja, mesmo involuntária, mas com sequências em outras atitudes, afecta a Instituição. Espera-se pois que o Governo, e em particular o Dr. Paulo Portas, saibam rever a sua actuação. Penso que o Primeiro Ministro pode, também, ser um elemento decisivo. O 14 de Agosto, dia da Infantaria e efeméride, muito cara à Historia do País e dos militares, poderia ser um bom pretexto para algum gesto especial do poder político para as nossas Forças Armadas, uma espécie de ponto de partida para um novo tipo de relacionamento, directo, frontal e respeitador da Instituição Militar.
Não há qualquer discussão acerca da sua subordinação ao poder político. Não há, nem remotamente, a mínima condição para qualquer aventura fora do quadro democrático. Mais uma razão para que o poder político seja escrupuloso, cumpridor e fiável nas suas relações com os militares.
Num outro plano da actualidade, o debate da actuação dos jornalistas, nesta face crucial em que vive a justiça portuguesa, tem feito vir ao de cima algumas posições curiosas, que merecem reflexão de âmbito geral. Francisco Azevedo e Silva fez, há dias, no Diário de Notícias, uma afirmação fundamental neste debate e que, de resto constitui o cerne da actividade jornalística, tão violada grosseiramente hoje em dia pelos próprios jornalistas: “Importante não é proibir o jornalista de informar, é sim responsabilizá-lo pela notícia que dá. É ele o autor e não as fontes que cita ou omite”. Palavras sábias, palavras de risco. Em duas linhas recorda-se um código de conduta que ninguém, ou quase ninguém, está a cumprir. Por sua vez Teresa de Sousa, é autora de uma crónica notável no Público, ainda que me pareça muito ideologicamente orientada. Ainda assim, são cruciais algumas perguntas que faz: “Quem quis desmentir tão rapidamente as escutas a Ferro Rodrigues? Quem decidiu divulgar o caso ISCTE-CIDEC, até então imune a qualquer fuga de informação”. Por ser, em minha opinião, ideologicamente orientada, a prosa de Teresa de Sousa pede alguma força argumentativa e contém riscos de ambiguidade, mas prova à saciedade que há questões que são da justiça, que a justiça ou o legislador têm que ponderar, e há problemas de ética e deontologia que são dos jornalistas e do cuidado que têm obrigatoriamente que assumir nas suas relações com as fontes. Discernir onde é que as fontes podem ser manipuladoras é uma questão nossa, muito particularmente nossa, dos jornalistas, que têm fugido, em boa verdade, ao controlo colectivo. E só quando a democracia sofrer um qualquer abanão, autoritário ou de outra índole, aqui del rei que estamos a ser amordaçados…Quero ver, depois, quem vai estar na primeira linha da contestação….