2025/07/02

O tudo ou nadapor Pedro Martins

Numa altura em que já faltam quatro vitórias para o F.C.Porto se sagrar virtualmente campeão nacional e em que a questão do segundo lugar aparentemente também está resolvida, o interesse da Superliga nas últimas sete jornadas vai centrar-se, tudo indica, na fuga à despromoção.

E aqui a competitividade não podia ser maior. Do último classificado para o grupo dos oitavos, há apenas oito pontos de diferença. Mais, equipas como o Sporting de Braga, Boavista, Paços de Ferreira ou Moreirense nesta altura a meio da tabela classificativa, estão a duas derrotas apenas da “linha de água”. À excepção do Vitória de Setúbal, que com a derrota caseira no fim-de-semana passado dificilmente vai conseguir evitar a Segunda liga (cá está um caso em que a chicotada psicológica não surtiu efeitos), ninguém se vai poder distrair até ao final do campeonato. Principalmente Académica e Beira Mar, nesta altura na zona de descida mas que na última jornada até conseguiram resultados positivos. Uma luta pois que promete!
De mal a pior vai o Sporting. Os campeões nacionais voltaram a perder, agora em Barcelos (embora com um golo irregular), e ficaram a sete pontos do rival Benfica, que está cada vez mais perto de regressar à Europa do Futebol, via pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Os encarnados, graças a uma nova grande penalidade de Simão Sabrosa, despediram-se da Luz com uma vitória. Num dia de festa, cerca de 100 mil adeptos do clube da águia disseram adeus a um estádio que não chegou a completar meio século de existência.
Ainda em relação ao Sporting, uma nota para as declarações de Sá Pinto esta semana. Na sala de imprensa, o internacional português sem papas na língua, mostrou-se chocado por não ser convocado e lamentou ainda a falta de orientação por parte de Laszo Boloni. Afinal a confirmação daquilo que já se sabia há muito, o silêncio permanente entre o treinador e o restante grupo de trabalho. Numa época para esquecer em Alvalade, uma nota negativa também para o facto dos jogadores terem quebrado apenas em parte o black-out imposto em Dezembro. Uma situação que pelos vistos nem a própria SAD consegue pôr cobro. Será que recusar entrevistas em jornais ou televisões não prejudica antes de mais os próprios jogadores?
Recebido aparentemente de braços abertos na selecção nacional foi Deco. Como já se esperava o agora jogador luso-brasileiro foi convocado por Luis Felipe Scolari para o particular de Sábado à noite nas Antas com o Brasil. Quis assim o destino que Deco vestisse a camisola de Portugal pela primeira vez no estádio do seu actual clube e logo frente à selecção do País que o viu nascer. Pouco interessado nestas coincidências está naturalmente Scolari, desejoso não só de vencer a equipa que ele próprio ajudou a ser campeã mundial mas acima de tudo em ter os melhores ao seu dispor no Euro 2004. O seleccionador nacional está ainda numa fase de observação e como tal voltou a chamar jogadores como Luis Loureiro, Silas, Rogério Matias ou Maniche.
Para último deixei intencionalmente o maior feito do futebol português nos últimos anos: a qualificação inédita de F.C.Porto e Boavista para as meias finais da Taça UEFA. As duas equipas da cidade invicta estão entre as doze melhores da Europa esta época (contando naturalmente também com as equipas apuradas para os quartos de final da liga dos campeões). Só a Itália com quatro e a Espanha com três clubes estão melhores que o nosso País. Resta agora esperar por uma final da Taça UEFA em Sevilha exclusivamente portuguesa e depois fazer votos que esta não volte a ser uma época sem exemplo na Europa do Futebol.

Uma outra guerra

Vacas, frangos, perus e porcos. Portugal está neste momento envolvido numa guerra contra a saúde pública. Ou devia estar. Temos fundados receios que não.

É verdadeiramente intolerável saber que na cadeia alimentar dos portugueses existem substâncias perigosas, susceptíveis de pôr em causa a saúde pública. E é ainda mais intolerável que se perceba que as autoridades, designadamente o Governo, não sabem lidar com este problema.

Neste tipo de assunto não pode haver lentidão, secretismo ou poupança. É verdade que a máquina do Estado, apesar de grande, não é especialmente eficaz. Mas quando está em causa a saúde de todos nós, tem necessariamente de ser eficaz.

É verdade que a Administração Pública tem uma cultura de segredo e de falta de transparência que não raro põe em causa o interesse público e os direitos dos cidadãos. Mas aqui não podem existir contemplações. O País não pode ser mantido na ignorância do que se está a passar com os alimentos que diariamente consome e as instituições têm de ser suficientemente lestas para que se possa saber quem é quem.

É verdade que temos um enorme défice. Que o Estado tem gasto mais do que deve. Que o País tem de fazer um emagrecimento financeiro para ter as contas em ordem e em dia. Embora diga eu que é simplesmente estranho que o Estado só tenha um discurso de poupança quando está apertado. O Estado deve ser sempre poupado. Tem de combater sempre o desperdício. Deve dar sempre um exemplo de contenção e boa gestão. Sempre e não apenas quando o défice passa os 3%.

Mas na saúde não se pode poupar. Se é preciso dinheiro para fazer análises, que se gaste. Se é preciso dinheiro para pagar a mais veterinários, que apareça. O que jamais pode suceder é virem as autoridades justificarem-se que não é possível fiscalizar adequadamente a qualidade daquilo que comemos porque não há meios. Ou porque não há vontade em obtê-los.

Do ponto de vista político, esta crise da alimentação tem sido gerida da mesma maneira incompetente e “contaminada” do costume. O ministro da Agricultura do PSD, que descobriu que não sabia de nada, diz que a culpa foi do PS. O ex-ministro da Agricultura do PS, que também nunca deu por nada, diz que a culpa é do PSD. Haja decência. Resolvam é o problema e deixem-se de contabilidades sinistras de culpabilidades políticas à custa da saúde de todos nós.

Temos de ganhar a guerra da alimentação às forças do terrorismo veterinário e do fundamentalismo químico.

A guerra no Iraque como redefinição do sistema internacional

Com uma natureza inerentemente trágica, este conflito, que agora dá os primeiros passos, assume-se como um pedaço de História na redefinição do sistema internacional e das futuras relações de poder entre os aliados no Ocidente. A cúpula de poder norte-americana começou uma epopeia que não representa um fim em si mesma, mas uma etapa da nova geoestratégia assumida pela administração Bush, desde a sua ascensão à Casa Branca.

Com uma “oportunidade estratégica” os Estados Unidos desencadearam o início do conflito no Iraque. “As primeiras fases do desarmamento do regime iraquiano já começaram”, informou o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, minutos depois dos primeiros ataques “a alvos selectivos de importância militar” iraquianos.

Na madrugada de quinta-feira, as imagens de guerra começaram a desfilar pelos vários canais de televisão, confrontando o mundo com a triste realidade da guerra e exacerbando os fantasmas e os receios que a crise iraquiana despoletou nos últimos meses.

Já por si com uma natureza trágica, este conflito, que agora dá os primeiros passos, assume-se como um pedaço de História na redefinição do sistema internacional e das futuras relações de poder entre os aliados no Ocidente. A cúpula de poder norte-americana começou uma epopeia que não representa um fim em si mesma, mas uma etapa da nova geostratégia assumida pela administração Bush, desde a sua ascensão à Casa Branca.

Mais do que a remoção de Saddam Hussein e a destruição do seu eventual arsenal de armas de destruição maciça, Washington está empenhado na criação de um novo paradigma para as relações internacionais. Desta forma, a guerra no Iraque está longe de ser única e exclusivamente uma consequência do 11 de Setembro, assim como a abordagem hostil à Coreia do Norte e Irão.

Talvez, os atentados perpetrados pela a al-Qaeda tenham precipitado e delineado a ordem dos acontecimentos, mas o discurso maniqueísta de Bush e a recorrência à retórica da Providência enquadram-se num objectivo geoestratégico a médio e longo prazo, doutrinado no pensamento dos estrategas e especialistas da administração Bush.

Em jogo não está propriamente dita a emergência de uma nova ordem mundial, mas, sim, o ajustamento de um novo modelo emanado da anarquia sistémica proveniente dos acontecimentos de 1989-1991. Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a consequente implosão da União Soviética, em 1991, começou-se a falar em “dividendos da paz” e do triunfo dos valores e instituições comuns euro-americanas, com o “final da História”, de acordo com Francis Fukuyama.

No entanto, o processo de metamorfose sistémica revelou-se dinâmico, e a ruína do regime bipolar de Guerra Fria não foi substituído harmoniosamente pela tão falada nova ordem. No Ocidente, os líderes e os seus povos afirmaram-se em novos projectos e diferentes interpretações sobre o futuro das relações internacionais.

O resto do mundo desprendeu-se da complexa rede montada durante cinco décadas, dando espaço de manobra a todos os prevaricadores que orientam a sua vida em projectos extremistas.

Hoje, Fukuyama fala em “grandes diferenças” no eixo transatlântico, referindo que a crispação entre os dois lados do oceano “não é apenas um problema transitório”. Também, Jeffrey Gedmin, director do Aspen Institute Berlin, fala sobre a “patologia” europeia no que se refere ao uso da força. Mas, foi, talvez, Robert Kagan a assumir sem preconceitos as divergências (enaltecidas nos últimos anos) entre os projectos europeu e americano sobre as relações internacionais, num mundo liderado por uma única superpotência. “É altura de se deixar de pensar que os europeus e os americanos partilham uma visão comum do mundo, ou até mesmo de que ocupam o mesmo mundo”, escrevia Kagan na “Policy Review”, no verão do ano passado.

A guerra ao Iraque é um reflexo da unipolarização do sistema internacional, assente na hiperpotência, Estados Unidos. A falência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a fractura do eixo transatlântico e a fragmentação na União Europeia elevam a guerra iraquiana e o período pós-Saddam, para um patamar ideológico e orientador do equilíbrio futuro entre os principais actores das relações internacionais.

Mais do que a uma guerra, para muitos analistas o mundo poderá estar a assistir à degradação do sistema de alianças forjado dos escombros da IIGM. “O mundo de Acheson está quase em ruínas, eu tenho medo”, referia esta semana ao “Los Angeles Times”, James Chace, professor de relações internacionais no Bard College. “Nós estamos numa nova era e as oportunidades são para ser aproveitadas”, afirmava ao mesmo jornal, William Kristol, um estratega republicano, seguindo o raciocínio do vice-presidente norte-americano, Dick Cheney, que considera que as instituições e alianças internacionais foram “criadas para lidar com conflitos do século XX…mas que podem não ser as estratégias, políticas e instituições mais adequadas para lidar com um novo tipo de ameaça”.

Numa altura em que a dinâmica dos povos está encarregue de finalizar um processo doutrinário tecnicamente iniciado há catorze anos, caberá aos líderes mundiais e seus povos (através de um mecanismo eficiente chamado globalização) afirmarem convictamente as suas visões para o futuro, e concertarem esforços para procederem a uma filtragem das organizações reguladoras do sistema internacional que serão, nas suas opiniões, fulcrais para a paz e segurança globais.

Aqui, a União Europeia, que ontem se reunião em Conselho de Ministros, terá a titânica tarefa de reconquistar a confiança no projecto de construção europeia, e retirar ilações desta crise, que, sem sombra de dúvida deixaram a Europa numa posição fragilizada, perante o mundo.

Se os Estados Unidos poderão estar predispostos para adoptarem atitude neo-isolacionista, dando uma lição à “velha Europa”, e deixando a sua defesa e estabilidade nas suas mãos, isto não quer dizer que os líderes europeus não possam tirar benefícios desta crise, catapultando a construção europeia para outros níveis de integração.

Mas, se a Rússia e a China surgem naturalmente nesta crise como actores relevantes do sistema internacional, a Europa no período pós-Saddam terá de fazer por isso. Durante os últimos catorze anos, o “velho continente” não quis pagar a factura do peso “geopolítico” nas relações internacionais. Hoje, não surpreende que os Estados Unidos estejam no Golfo Pérsico à revelia do Conselho de Segurança, e o contra a vontade da França e da Alemanha.

Nas próximas horas espera-se um ataque massivo no Iraque com a invasão do país pelas forças anglo-americanas. À Europa resta assistir à intervenção bélica, ciente, assim se espera, do quão será importante o eventual papel a desempenhar na reconstrução do Iraque. Neste capítulo, o famoso colunista do “New York Times”, Thomas Friedman, referia que os Estados Unidos não necessitam de aliados para ir para a guerra com o Iraque, mas no processo consequente de nation-building, aí os europeus são sem dúvida uma peça fundamental para o sucesso desta operação, e outras que seja desenvolvidas no futuro.

Ou seja, bem ou mal, os Estados Unidos estão no Iraque a fazer uma guerra para remover Saddam Hussein. Agora, os líderes europeus terão que reagir coerentemente com as suas convicções e interesses e, realisticamente, enquadrarem-se activamente num sistema, que terá certamente espaço para a Europa, se os seus cidadãos estiverem dispostos a pagar o preço.

O acordo é impossível, a guerra é (mais que) provável

Ontem, a Casa Branca admitiu prolongar as negociações para uma nova resolução, depois de ter afirmado veementemente que a sua votação seria até ao final desta semana. Mas, colocou, igualmente, em cima da mesa, a hipótese de avançar para uma guerra à revelia da ONU. Entretanto, Blair apresentou uma nova proposta que não agradou aos homens de Washington. Pelo meio, está a França, que vetará qualquer projecto anunciada no Conselho de Segurança. A crise iraquiana transformou-se num episódio “kafkiano”, onde os intervenientes relegaram a diplomacia para um patamar incoerente e inócuo. Com uma estratégia ambígua, Washington poderá estar a ganhar tempo para obter apoios no Conselho de Segurança ou, muito simplesmente, à espera da sessão especial do Parlamento turco marcada para este fim-de-semana.

Afinal, e depois de dias de negociações e de muitos “recados políticos”, a apresentação de uma segunda resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas parece ser agora “menos provável do que nunca”, de acordo com as declarações feitas ontem pelo primeiro-ministro britânico, Tony Blair ao líder dos Conservadores britânicos, Ian Duncan Smith. “Isto quer dizer essencialmente que a guerra é mais provável”, acrescentou Smtih depois de ter saído do encontro no número 10 da Downing Street.

Inicialmente e a fazer fé na vontade norte-americana ( e no “New York Times” de ontem) o mundo estaria a poucas horas de conhecer o veredicto final da segunda resolução respeitante à crise iraquiana. Porém, agora nada é certo.

A Casa Branca, numa atitude de um passo à frente e dois atrás, disse ontem que pretende continuar com as negociações durante o fim-de-semana, e até mesmo ao longo da próxima segunda-feira se isso proporcionar a colheita de mais apoios. “[As negociações ] Podem ser concluídas amanhã. Podem continuar para a próxima semana”, informou ontem, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer.

Washington, que há muito delineou a sua estratégia relativamente ao Iraque, ao ponto de já ter no terreno 270 mil homens e um forte contingente bélico, iria eventualmente utilizar esta nova proposta como válvula de escape para a hecatombe de problemas que têm abalado os planos da Casa Branca nos últimos tempos.

Como a revista “The Economist” referia na sua última edição, por certo que quando Bush decidiu comandar a América numa guerra contra Saddam Hussein, não previu um desfecho diplomático mergulhado numa profunda divisão, de como aliás o Conselho de Segurança das Nações Unidas é reflexo.

Numa tentativa de atenuar as querelas políticas, a administração norte-americana afirmou na terça-feira que estaria disposta a prolongar “modestamente” o prazo das inspecções, que inicialmente expiraria na próxima segunda-feira, no entanto, rejeitou veementemente o apelo de algumas nações para estender o período de inspecções por mais um mês. Neste capítulo, Washington poderá ceder até 24 de Março, como prazo limite para o Iraque cumprir a resolução 1441.

Entretanto, numa nova revisão do projecto da segunda resolução, delineada pela Inglaterra, mas não subscrita pelos Estados Unidos e pela Espanha, farão parte seis exigências a Bagdad, uma das quais e, talvez, a mais polémica, obrigaria Saddam Hussein a admitir perante as câmaras de televisão a posse de armas de destruição maciça e a sua intenção de as destruir.

Seja como for, e apesar das intenções de Londres em tentar alcançar um compromisso entre o eixo transatlântico, o plano de Blair foi ontem rejeitado pela França. “A proposta do Reino Unido, Estados Unidos e Espanha, impõe um ultimato, 17 de Março. Pensamos que não é aceitável”, disse ontem o ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominique de Villepin, na cadeia de televisão France 2.

Também a Rússia já manifestou a intenção de vetar qualquer tipo de resolução que precipite uma guerra e não dê mais prazo aos inspectores da UNMOVIC.
Sem certezas no horizonte, os Estados Unidos não estão dispostos a dar mais tempo ao Iraque, e aparentemente já perderam o fôlego inicial para avançar para uma segunda resolução, admitindo que esta poderá nem vir a acontecer, evitando assim as divergências do Conselho de Segurança.

Para Washington, o cenário ideal seria a aprovação de uma segunda resolução no Conselho de Segurança, que impusesse um ultimato ao regime de Bagdad e abrisse caminho à intervenção militar, para os próximos dias. No entanto, e apesar da Casa Branca ter revelado o apoio de nove membros do Conselho de Segurança, a verdade é que os estrategas norte-americanos sabem que podem contar, eventualmente, com os vetos da França e da Rússia e, talvez, da China.

Sem uma segunda resolução, Washington poderá iniciar a guerra no Iraque sob a égide da resolução 1441, aprovada em Novembro último.

Nos preparativos para a guerra, o Governo de Ancara AKP, já sob os desígnios de Tayyip Erdogan, pretende convocar, para este fim-de-semana, uma sessão especial no Parlamento turco para abordar novamente a questão do direito de passagem aos 62 mil soldados americanos, para uma hipotética frente norte no Iraque.

Apesar dos Estados Unidos terem admitido que estariam a trabalhar num plano militar alternativo, que não precisasse da Turquia para desencadear a ofensiva em território iraquiano, a verdade é que o controlo da curdistão turco pelas forças americanas revela-se um factor crucial para garantir a estabilidade regional num cenário pós- Saddam.

De acordo com as informações que vão sendo veiculadas os Estados Unidos estão prontos para agir em larga escala. Convém relembrar unidades de operações especiais efectuam manobras em solo iraquiano há cerca de dois meses, visando o estabelecimento de uma rede de comunicações, a captura de potenciais fugitivos próximos de Saddam e a localização de locais com armas de destruição maciça. Tudo isto tem como propósito preparar terreno para a grande ofensiva.

“Se o Presidente tomar a decisão, eles (soldados) estão prontos para desarmar o Iraque”, revelou o chefe do Estado Maior das Forças Armadas americanas, o general Richard B. Myers.

Que é feito da diplomacia?
A crise iraquiana, e todo o processo a ela inerente, está a assumir contornos “kafkianos”, relegando a diplomacia para um patamar incoerente e inócuo. As certezas deram lugar às dúvidas, e os instrumentos diplomáticos, disponibilizados pela teoria internacional da negociação, passaram a ser usados em jogos perigosos entre os líderes mundiais.

A diplomacia deixou de ser feita de modo sério, por pessoas sérias dotadas de visão estratégica e sistémica. A questão do Iraque (e da guerra ao terrorismo) transformou-se num pretexto para ultimar a redefinição do sistema internacional, mergulhado num processo de metamorfose desde a queda do muro de Berlim, em 1989, e da consequente implosão da União Soviética, em 1991. Como referia há duas semanas, Fareed Zakaria, “isto já não é sobre o Iraque” e, na verdade, a remoção do regime de Saddam Hussein passou a ser uma questão acessória, perante um discurso de projectos e visões para o futuro do Ocidente e da ordem mundial.

Mas, o mais perturbador é que os líderes do eixo transatlântico envolveram-se numa realidade que eles próprios criaram, cheia de artimanhas e mecanismos obscuros da qual os Estados Unidos, a Rússia e a China poderão emergir realisticamente como actores internacionais de relevo, por modo a equilibrarem-se num sistema futuro.

A Europa, dividida e cada vez mais longe de ter uma voz única, afunda-se politicamente, em grande parte por não ter demonstrado vontade de pagar a factura do peso geopolítico, que tão valioso se revelaria a médio e a longo prazo nas relações internacionais. Num cenário que poderá condenar a ONU à efeméride, e consequentemente arrastar os pilares de uma ordem que garantiu cinco décadas de estabilidade na Europa, Bush lança o seu projecto imperial, concretiza aquilo que para muitos tornou-se logo uma evidência nos primeiros anos de 90: um sistema unipolar de cariz imperial, onde, muito provavelmente três actores desempenharão o seu papel nas relações internacionais (Rússia, China e uma ONU repensada).

Tratam-se apenas de conjecturas, que valem o que valem, mas que emergem naturalmente perante a indecisão e os dias históricas que se vivem no sistema internacional.

Bush retoma a retórica da Providência

Como reacção às ameaças impostas ao império, a administração Bush iniciou a partir do 11 de Setembro de 2001 uma guerra entre o bem e o mal, delineando muito claramente a linha de fronteira entre estas duas realidades do mesmo mundo. Acusado de ter um discurso simplista e maniqueísta, que não dá espaço à “zona cinzenta”, onde, afinal se jogam, na maioria do tempo, as relações internacionais, Bush não se coibiu de assumir imediatamente um tom messiânico.

Com um discurso mobilizador a nível interno, mas visto com desconfiança por sociedades externas, que não partilham as convicções políticas e religiosas dos norte-americanos, Bush falou de fé e com fé, para uma audiência que se rege pelos preceitos religiosos. A sociedade norte-americana continua fortemente vincada pelo conservadorismo religioso, e influenciada pelos seus conceitos e crenças.

A relação de Bush e Deus, e a dos americanos e Deus, é estreita e fiel. Intrinsecamente, a religião acaba por condicionar o dia a dia das pessoas, e consequentemente, por influenciar o pensamento estratégico norte-americano, assim como o seu discurso político. “Os ideais puritanos da Nova Inglaterra constituem, talvez, o factor mais importante na determinação do pensamento americano”, escrevia há umas décadas o professor Raymond G. Gettell, da Universidade da Califórnia.

Por vezes, os Estados Unidos revelam sinais de uma pura teocracia. Por exemplo, o “Deus abençoe a América”, no fim de todos os discursos políticos do Presidente, retira a laicidade a um momento que se quer politicamente solene. A famosa frase, “Em Deus confiamos”, estampada nas notas de dólar, reflectem a predisposição norte-americana para a invasão religiosa na história da vida privada e pública da América.

No modo de vida norte-americano, Deus está acima de tudo e todos. Por detrás de um Presidente americano, está sempre Deus, encaminhado os desígnios da nação americana da forma mais justa. A sua presença é assumida pelo dirigentes do país que não se inibem de referir Deus de uma forma constante, contrastando com o carácter laico e histórico das sociedades europeias.

Bush não tem dúvidas ao afirmar que a sua presidência surgiu em parte de um “plano divino”, chegando mesmo a dizer a um amigo durante os tempo de Governador do Texas: “Eu penso que Deus quer que eu me candidate para Presidente.”

Longe das crenças e das convicções de cada cidadão, este é um discurso que as nações europeias perderam durante a revolução francesa, e que se afastou por completo durante o conturbado e revolucionário século XIX. Já Nicolau Maquiavel (1469-1527) fazia ensaios que visavam a secundarização da religião ao nível das relações internacionais. O realismo político dava aqui os seus primeiros passos, seguidos, curiosamente pelo cardeal francês, Richelieu.

Apesar de Nietzche ter “morto Deus”, o cariz religioso na Europa não desapareceu, no entanto, a sua intervenção nos assuntos de Estado e da própria sociedade, reduziu-se ao campo privado. Uma evolução que os americanos não seguiram, nem as respectivas administrações. Paradoxalmente os próprios ensinamentos de Locke (1632-1704) ou Montesquieu (1689-1755) acabaram por ser violados, de certa forma, pela intromissão de Deus nos assuntos políticos.

É o próprio Bush a assumir que os “acontecimentos não são movidos pela cegueira e oportunidade”, mas “pela mão justa e providencial de Deus”. O Presidente americano não se reserva a personificar a vontade de Deus num ataque ao Iraque. Convicto de que está a combater o mal, materializado por Saddam Hussein, bin Laden, entre outros, Bush transformou uma questão estratégica e política (friamente inserida na lógica das relações internacionais) numa cruzada contra o infiel.

Este espírito providencialista foi criticado há duas semanas por Mário Soares, que denunciou o “carácter religioso” do discurso de Bush, salientando que a expressão “eixo do mal” é perigosa e “sem sentido”, descendo ao nível da retórica de Saddam Hussein.
No entanto, o providencialismo foi o farol dos líderes americanos na condução das suas políticas ao longo de mais de dois séculos de História.”

Por vezes, ao serviço de ideias nobres, servindo como um antídoto para as tragédias de uma nação, como fez o Abraham Lincolon ao evocar a Providência ao Norte e ao Sul com forma de reconciliação, e de sarar as feridas, refere o autor, Jackson Lears.

Porém, esta Providência tornou-se também um instrumento nas mãos de determinados dirigentes, como o senador Albert Beveridge e outros imperialistas no final do século XIX, que não se inibiram de insistir que Deus “marcou” o povo americano para liderar a “redenção no mundo”. Foi com base no providencialismo que os nativos foram expulsos pelo povo americano, ao qual Deus tinha dado a sua terra.

Da mesma forma que o Presidente, Woodrow Wilson, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, usou a retórica da redenção para alcançar uma paz justa, Bush utiliza os argumentos religiosos para justificar uma “guerra justa”, “desencorajando o debate e reduzindo a diplomacia à coação”.

Familiarizado com o discurso do antigo Presidente, Ronald Reagan, Bush criou um “eixo do mal”, uma versão pós Guerra Fria do “império do mal”. Na verdade, o actual residente da Casa Branca voltou a pôr o providencialismo “na moda”, assumindo uma democracia conduzida pela mão de Deus, num princípio que sempre regeu a propagação deste fenómeno no seio da nação norte-americana desde a sua criação, e que Alexis Tocqueville formalizou na sua famosa e histórica obra “Da Democracia na América”.

Para Bush, Saddam Hussein é um prevaricador dos princípios democráticos, violador das crenças americanas baseadas num puritanismo religioso. Tocqueville escreveu que “querer deter a democracia seria então como que lutar contra o próprio Deus”, o que enquadrado no contexto iraquiano coloca em conflito Saddam e o mesmo Deus que guia e ilumina a política de George W. Bush.

Americanos intensificam ataques aéreos no Iraque

Blair está a trabalhar num projecto de resolução que consiga alcançar um consenso entre a posição anglo-americana e os restantes membros permanentes. Porém, ontem, afirmou que estaria disposto a avançar com a guerra. Entretanto, no terreno, unidades de operações especiais vão efectuando manobras de forma silenciosa, e os aviões anglo-americanos intensificam os ataques aéreos no sul do Iraque.

Hans Blix vai hoje ao Conselho de Segurança apresentar um novo relatório sobre os trabalhos de desarmamento de armas de destruição maciça a decorrer em solo iraquiano, e no qual deverá reportar um aumento da cooperação do regime de Bagdad, no último mês, com os esforços da equipa de inspectores da UNMOVIC.

No entanto, antecipadamente, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, disse na quarta-feira que Saddam Hussein não tem feito mais do que enganar e dividir a comunidade internacional. “Nada do que vimos desde que foi aprovada a resolução 1441 indica que Saddam tenha decidido estratégica e politicamente desarmar”, referiu Powell.

Washington continua empenhado na sua estratégia de remover Saddam Hussein do poder em Bagdad, mas a batalha diplomática no Conselho de Segurança está a provocar demasiadas “dores de cabeça” à Casa Branca, que chega ao final da semana muito mais isolada do que há uns dias.

A China, que até ontem se mostrava bastante reservada na sua atitude perante uma eventual segunda resolução do Conselho de Segurança, expressou a recusa clara em dar luz verde a uma iniciativa bélica da parte de Washington. “Pensamos que não é necessários introduzir uma nova resolução”, informou o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Tang Jiaxuan.

Acrescentou ainda que a posição de Pequim é “consistente” com a declaração anti-guerra, subscrita no dia anterior pelos chefes da diplomacia francesa, Dominique de Villepin, russa, Igor Ivanov, e alemã, Joscka Fischer.

Na iminência do maior “não” à prossecução dos interesses norte-americanos vindo do outro lado do Atlântico, nos últimos 50 anos, como analisava ontem o “New York Times”, Londres, juntamente com o México e com o Chile, tem estado a trabalhar secretamente na reformulação da futura segunda resolução a ser apresentada no Conselho de Segurança muito provavelmente na próxima semana.

De acordo com as informações divulgadas, este novo projecto de resolução terá como objectivo alcançar um compromisso com os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança, e consistirá num autêntico ultimato final a Saddam, no qual lhe será dado um prazo concreto para desarmar.

Para Blair, o que está em causa é a sua própria sobrevivência política. À semelhança do que acontece com o primeiro-ministro espanhol, José Maria Aznar, o chefe do Governo britânico está isolado, sem o apoio do próprio partido. Uma segunda resolução surge como a sua tábua de salvação a nível interno.

Dificilmente os conservadores e o labour permitirão que a Inglaterra embarque numa ofensiva militar no Iraque à revelia das Nações Unidas, sem ter sido objecto de uma aprovação pelo Conselho de Segurança.

Apesar de Blair ter admitido ontem, durante um debate na cadeia de televisão MTV Europe, que estaria disposto a ir para a guerra mesmo com o veto de um ou mais Estados, Downing Street fez questão de reafirmar que Londres se mantém comprometida em encontrar um compromisso com os seus aliados.

Aviões anglo-americanos intensificam ataques no sul do Iraque

Precisamente há três semanas, no mesmo dia em que era apresentado o segundo relatório dos inspectores na ONU, o SEMANÁRIO referia que a guerra no Iraque já tinha começado. De uma forma camuflada e silenciosa, unidades de operações especiais norte-americanas já estavam a operar dentro do Iraque há mais de um mês, confirmavam fontes próximas do Pentágono, ao jornal “Washington Post”.

Estas estavam a operar em várias partes do Iraque à procura de locais onde estivessem escondidas armas, a estabelecer redes de comunicações e a capturar potenciais fugitivos pertencentes ao regime de Saddam.
Agora, quase dois meses depois do início das operações americanas em solo iraquiano, existem informações que indiciam que uma parte ocidental do Iraque já esteja controlada pelas forças anglo-americanas.

Tudo isto insere-se numa lógica de guerra silenciosa que Londres e Washington tem tentado manter afastada das câmaras de televisão.

Na verdade, depois dos sucessivos desmentidos do ministro da Defesa britânico, Geofrey Hoon, respeitantes uma eventual intensificação da actividade militar no Iraque, Washington divulgou esta semana que o número de voos anglo-americanos sobre a zona de exclusão aérea do sul, aumentou para mais do dobro.

A acrescentar a isto foram mobilizados para a zona os bombardeiros B-52, que já se treinam no norte do Golfo. Com cerca de 200 mil homens na região, também o General Tommy Franks, responsável máximo pelas tropas americanas no Golfo, já disse que está pronto para iniciar uma ofensiva em larga escala.

Esta eventual ofensiva contou com o apoio dos militares turcos que, após o bloqueio parlamentar de Ancara ao direito de passagem a 62 mil soldados americanos, classificaram a guerra como inevitável e, como tal, seria preferível cooperar com Washington e receber as respectivas contrapartidas financeiras.

“A nossa escolha não é entre o bom e o mau. A nossa escolha é entre o mau e o pior”, afirmou o chefe do Estado maior das forças armadas da Turquia, o general Hilmi Ozkok, num comunicado emitido na televisão.

Iraque pode recuar a 1945

O novo Iraque pós-Saddam Hussein, resultado da inimente intervenção dos EUA, pode recuar a 1945, quando, após a II Guerra Mundial, sob inspiração britânica, o país teve uma fugaz experiência democrática, com eleições, partidos políticos, sindicatos e imprensa livre.

O novo Iraque pós-Saddam Hussein pode recuar a 1945, quando, após a II Guerra Mundial, sob inspiração britânica, se tentou criar uma democracia no país, no governo de Tawfiq- al- Suwaidi. Seguindo de perto o recente livro do historiador britânico Charles Tripp, História do Iraque, editado em Portugal pela Europa-América – obra que alguns observadores têm referido estar a ser lida atentamente pelos americanos, com vista a obter respostas no passado para melhor recriar um novo Iraque – o governo de Suwaidi é apontado como tendo acabado com a lei marcial, encerrando o campo de internamento de al-Faw, levantado a censura à imprensa e introduzido uma nova lei eleitoral, dividindo o país numa centena de distritos eleitorais.

O novo governante também permitiu que se formassem novos partidos políticos, tendo os dois principais, o Partido Democrático Nacional e o Partido da Independência, correspondido às duas principais correntes de pensamento em evidência desde os anos 30. Registaram-se, também, no governo de Suwaidi, alguns partidos socialistas e, apesar de não terem conquistado muitos aderentes, o seu aparecimento indicou uma tendência crescente para a crítica às desigualdades sociais e económicas no Iraque, pelo menos entre a intelectualidade urbana. Ao mesmo tempo, o Partido Comunista Iraquiano intensificou a sua actividade.

Com o levantamento da censura à imprensa e o fim da lei marcial, ainda segundo Tripp, as actividades dos pequenos partidos da oposição tornaram-se mais visíveis nas principais cidades do Iraque e particularmente em Bagdad. Após anos de silêncio forçado reemergiu, também, uma imprensa e um sector editorial activos, dando voz a uma crítica mordaz das condições políticas e económicas e delineando ideias para o futuro do Iraque que eram radicais nas suas implicações.

A actividade dos sindicatos também foi incrementada. Esta primeira experiência democrática no país foi, porém, de curta duração. A liberdade súbita, aliada aos grandes problemas económico-sociais, acumulados nos últimos cinco anos, entre 1940 e 1945, levou a que os iraquianos desenvolvessem enormes protestos, designadamente greves, visando o aumento dos salários dos trabalhadores. Foi neste contexto de instabilidade política e social que Suwaidi, que não levava sequer um ano de governo, foi substituído, as liberdades revogadas e se regressou a um poder musculado e autoritário.

Villepin e os seus “mosqueteiros”

Quanto tempo mais irá o Conselho de Segurança resistir à autentica batalha diplomática que está assolar aquela instituição. Numa guerra política sem precedentes, as Nações Unidas vivem dias decisivos para sua sobrevivência, como fórum “onde todos fala com todos”, com refere Adriano Moreira.

Na iminência da sua falência, a ONU, tal como a NATO e a União Europeia, enfrenta o desafio do tempo e dos desajustamentos sistémicos.
Na verdade, a crise iraquiana transbordou as fronteiras de uma mera intervenção militar num qualquer estado ditatorial. Agora, Saddam Hussein passou a ser um espectador atento da deterioração das estruturas ocidentais, que regeram os princípios das suas civilizações durante as últimas décadas.

Mais do que a ordem no Médio Oriente, a questão iraquiana está a provocar um intenso debate sobre o futuro das relações internacionais no ocidente.
A ONU, a NATO e a UE, os três pilares fulcrais que garantiram a estabilidade sistémica na Europa e América do Norte desde a II Guerra Mundial, estão a ser assolados por crises sem paralelo. Os dias que se vivem estão a fazer história no seio destas organizações.

As soluções de recurso alcançadas têm um efeito retardador, que adiará para um futuro próximo, decisões importantes para a manutenção, ou não, dessas organizações. Tudo dependerá dos líderes e dos seus projectos. Das suas ambições e das suas expectativas quanto ao sistema internacional que pretendem.

Os Estados, integrados nas várias organizações internacionais, reagem de acordo com os seus interesses e com os seus projectos de afirmação no mundo. Por isso, não será de estranhar que perante uma crise séria, como é a questão do Iraque, os Governos comecem a ceder às tentações soberanistas, adoptando posições historicamente racionais, mas pouco arrojadas ideologicamente. A questão do Iraque despoletou apenas uma realidade que esteve sempre presente no eixo transatlântico.

Como se podia ler num artigo de análise do jornal, “Le Monde”, o Iraque revelou uma profunda divisão na Europa. Em poucos meses, o Velho Continente redesenhou-se, chegando mesmo a falar-se de uma “velha” e “nova” Europa. Estas conceitos não são mais do que o ressurgimento de antigos projectos e ideias de Europa, assentes em antigos impérios.

Claramente se define uma “nova Europa”, como aquela que olha para o Atlântico e Estados Unidos, como um espaço de apetência natural e historicamente viável para alianças. Aqui o Reino Unido, a Espanha e Portugal são exemplos de Estados que não hesitaram na sua escolha e de uma forma lógica colocaram-se ao lado de um país tradicionalmente aliado (os Estados Unidos).

Esta “Europa americana” contrapõe uma “Europa europeia”, vincada pelo espírito continental do império carolíngio e pelo Sacro Império. A brecha entre estas duas realidades existiu sempre nos últimos cinquenta anos, embora estivesse camuflada por contingências do sistema bipolar reinante em toda a Guerra Fria.

Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a consequente implosão da União Soviética, em 1991, começou-se a falar em “dividendos da paz” e do triunfo dos valores e instituições comuns euro-americanas, com o “final da História”, de acordo com Francis Fukuyama.

Hoje, este autor fala em “grandes diferenças” no eixo transatlântico, referindo que a crispação entre os dois lados do oceano “não é apenas um problema transitório”. Também, Jeffrey Gedmin, director do Aspen Institute Berlin, fala sobre a “patologia” europeia no que se refere ao uso da força, argumentando que as visões dos Estados Unidos e da Europa nesta matéria são agora tão diferentes que “a velha Aliança (NATO) terá poucas possibilidades de continuar a figurar proeminentemente no pensamento estratégico global norte-americano”.

Poucos meses depois da evocação do artigo 5, pela primeira vez na história da NATO, o espírito de solidariedade deu lugar à recriminação, tendo os laços de relacionamento entre os aliados se deteriorado dramaticamente. Robert Kagam foi, talvez, o primeiro analista a assumir sem preconceitos as divergências entre os projectos europeu e americano sobre as relações internacionais, num mundo liderado por uma única superpotência.

“É altura de se deixar de pensar que os europeus e os americanos partilham uma visão comum do mundo, ou até mesmo de que ocupam o mesmo mundo”, escrevia Kagan na “Policy Review”, no verão do ano passado.

É num contexto de iminente falência do sistema ocidental, que a França emerge como a defensora dos projectos criados dos escombros da II Guerra Mundial e de cariz universalista. A todo o custo tenta manter instituições, nas quais se assume como grande nação e faz sentir todo o seu peso. A União Europeia e o Conselho de Segurança são organizações que dão a projecção mundial à França como uma grande potência. Uma fábula que à semelhança do seus antecessores o Presidente, Jacques Chirac, continua a acreditar que é verdade.

Desta forma, a França pretende manter um modelo de relações internacionais em que funcione uma União Europeia, para integrar uma Europa marcada por séculos de guerras, e uma ONU, depositária do direito internacional e instrumento regulador das políticas entre os Estados.

Numa altura em que os Estados Unidos parecem estar a contar menos com a Europa e dispostos a marginalizarem a ONU, não é de estranhar a defesa acérrima que Paris tem feito para a credibilização do Conselho de Segurança, especialmente através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominique de Villepin.

Desta forma, o “templo” de Villepin terá de ser defendido a todo custo pelos homens de Paris, mesmo estes sabendo que dificilmente evitarão a guerra.
A batalha política da França para evitar a guerra, muito provavelmente, fracassará, mas a França sabe também que na derrota à vitórias que se ganham.

“Acima de tudo existe a vitória de um princípio. Os Estados Unidos cometem um grave erro se crêem que a França se limitou a adoptar uma atitude mesquinha e grosseira. Chirac e Villepin acreditam, que eles, e só eles em última instância, estão a defender a visão europeia da ordem mundial frente ao inimigo mais perigoso dessa visão: os Estados Unidos”, escrevia Kagan, no “El País”.