Blair está a trabalhar num projecto de resolução que consiga alcançar um consenso entre a posição anglo-americana e os restantes membros permanentes. Porém, ontem, afirmou que estaria disposto a avançar com a guerra. Entretanto, no terreno, unidades de operações especiais vão efectuando manobras de forma silenciosa, e os aviões anglo-americanos intensificam os ataques aéreos no sul do Iraque.
Hans Blix vai hoje ao Conselho de Segurança apresentar um novo relatório sobre os trabalhos de desarmamento de armas de destruição maciça a decorrer em solo iraquiano, e no qual deverá reportar um aumento da cooperação do regime de Bagdad, no último mês, com os esforços da equipa de inspectores da UNMOVIC.
No entanto, antecipadamente, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, disse na quarta-feira que Saddam Hussein não tem feito mais do que enganar e dividir a comunidade internacional. “Nada do que vimos desde que foi aprovada a resolução 1441 indica que Saddam tenha decidido estratégica e politicamente desarmar”, referiu Powell.
Washington continua empenhado na sua estratégia de remover Saddam Hussein do poder em Bagdad, mas a batalha diplomática no Conselho de Segurança está a provocar demasiadas “dores de cabeça” à Casa Branca, que chega ao final da semana muito mais isolada do que há uns dias.
A China, que até ontem se mostrava bastante reservada na sua atitude perante uma eventual segunda resolução do Conselho de Segurança, expressou a recusa clara em dar luz verde a uma iniciativa bélica da parte de Washington. “Pensamos que não é necessários introduzir uma nova resolução”, informou o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Tang Jiaxuan.
Acrescentou ainda que a posição de Pequim é “consistente” com a declaração anti-guerra, subscrita no dia anterior pelos chefes da diplomacia francesa, Dominique de Villepin, russa, Igor Ivanov, e alemã, Joscka Fischer.
Na iminência do maior “não” à prossecução dos interesses norte-americanos vindo do outro lado do Atlântico, nos últimos 50 anos, como analisava ontem o “New York Times”, Londres, juntamente com o México e com o Chile, tem estado a trabalhar secretamente na reformulação da futura segunda resolução a ser apresentada no Conselho de Segurança muito provavelmente na próxima semana.
De acordo com as informações divulgadas, este novo projecto de resolução terá como objectivo alcançar um compromisso com os restantes membros permanentes do Conselho de Segurança, e consistirá num autêntico ultimato final a Saddam, no qual lhe será dado um prazo concreto para desarmar.
Para Blair, o que está em causa é a sua própria sobrevivência política. À semelhança do que acontece com o primeiro-ministro espanhol, José Maria Aznar, o chefe do Governo britânico está isolado, sem o apoio do próprio partido. Uma segunda resolução surge como a sua tábua de salvação a nível interno.
Dificilmente os conservadores e o labour permitirão que a Inglaterra embarque numa ofensiva militar no Iraque à revelia das Nações Unidas, sem ter sido objecto de uma aprovação pelo Conselho de Segurança.
Apesar de Blair ter admitido ontem, durante um debate na cadeia de televisão MTV Europe, que estaria disposto a ir para a guerra mesmo com o veto de um ou mais Estados, Downing Street fez questão de reafirmar que Londres se mantém comprometida em encontrar um compromisso com os seus aliados.
Aviões anglo-americanos intensificam ataques no sul do Iraque
Precisamente há três semanas, no mesmo dia em que era apresentado o segundo relatório dos inspectores na ONU, o SEMANÁRIO referia que a guerra no Iraque já tinha começado. De uma forma camuflada e silenciosa, unidades de operações especiais norte-americanas já estavam a operar dentro do Iraque há mais de um mês, confirmavam fontes próximas do Pentágono, ao jornal “Washington Post”.
Estas estavam a operar em várias partes do Iraque à procura de locais onde estivessem escondidas armas, a estabelecer redes de comunicações e a capturar potenciais fugitivos pertencentes ao regime de Saddam.
Agora, quase dois meses depois do início das operações americanas em solo iraquiano, existem informações que indiciam que uma parte ocidental do Iraque já esteja controlada pelas forças anglo-americanas.
Tudo isto insere-se numa lógica de guerra silenciosa que Londres e Washington tem tentado manter afastada das câmaras de televisão.
Na verdade, depois dos sucessivos desmentidos do ministro da Defesa britânico, Geofrey Hoon, respeitantes uma eventual intensificação da actividade militar no Iraque, Washington divulgou esta semana que o número de voos anglo-americanos sobre a zona de exclusão aérea do sul, aumentou para mais do dobro.
A acrescentar a isto foram mobilizados para a zona os bombardeiros B-52, que já se treinam no norte do Golfo. Com cerca de 200 mil homens na região, também o General Tommy Franks, responsável máximo pelas tropas americanas no Golfo, já disse que está pronto para iniciar uma ofensiva em larga escala.
Esta eventual ofensiva contou com o apoio dos militares turcos que, após o bloqueio parlamentar de Ancara ao direito de passagem a 62 mil soldados americanos, classificaram a guerra como inevitável e, como tal, seria preferível cooperar com Washington e receber as respectivas contrapartidas financeiras.
“A nossa escolha não é entre o bom e o mau. A nossa escolha é entre o mau e o pior”, afirmou o chefe do Estado maior das forças armadas da Turquia, o general Hilmi Ozkok, num comunicado emitido na televisão.
Iraque pode recuar a 1945
O novo Iraque pós-Saddam Hussein, resultado da inimente intervenção dos EUA, pode recuar a 1945, quando, após a II Guerra Mundial, sob inspiração britânica, o país teve uma fugaz experiência democrática, com eleições, partidos políticos, sindicatos e imprensa livre.
O novo Iraque pós-Saddam Hussein pode recuar a 1945, quando, após a II Guerra Mundial, sob inspiração britânica, se tentou criar uma democracia no país, no governo de Tawfiq- al- Suwaidi. Seguindo de perto o recente livro do historiador britânico Charles Tripp, História do Iraque, editado em Portugal pela Europa-América – obra que alguns observadores têm referido estar a ser lida atentamente pelos americanos, com vista a obter respostas no passado para melhor recriar um novo Iraque – o governo de Suwaidi é apontado como tendo acabado com a lei marcial, encerrando o campo de internamento de al-Faw, levantado a censura à imprensa e introduzido uma nova lei eleitoral, dividindo o país numa centena de distritos eleitorais.
O novo governante também permitiu que se formassem novos partidos políticos, tendo os dois principais, o Partido Democrático Nacional e o Partido da Independência, correspondido às duas principais correntes de pensamento em evidência desde os anos 30. Registaram-se, também, no governo de Suwaidi, alguns partidos socialistas e, apesar de não terem conquistado muitos aderentes, o seu aparecimento indicou uma tendência crescente para a crítica às desigualdades sociais e económicas no Iraque, pelo menos entre a intelectualidade urbana. Ao mesmo tempo, o Partido Comunista Iraquiano intensificou a sua actividade.
Com o levantamento da censura à imprensa e o fim da lei marcial, ainda segundo Tripp, as actividades dos pequenos partidos da oposição tornaram-se mais visíveis nas principais cidades do Iraque e particularmente em Bagdad. Após anos de silêncio forçado reemergiu, também, uma imprensa e um sector editorial activos, dando voz a uma crítica mordaz das condições políticas e económicas e delineando ideias para o futuro do Iraque que eram radicais nas suas implicações.
A actividade dos sindicatos também foi incrementada. Esta primeira experiência democrática no país foi, porém, de curta duração. A liberdade súbita, aliada aos grandes problemas económico-sociais, acumulados nos últimos cinco anos, entre 1940 e 1945, levou a que os iraquianos desenvolvessem enormes protestos, designadamente greves, visando o aumento dos salários dos trabalhadores. Foi neste contexto de instabilidade política e social que Suwaidi, que não levava sequer um ano de governo, foi substituído, as liberdades revogadas e se regressou a um poder musculado e autoritário.
Villepin e os seus “mosqueteiros”
Quanto tempo mais irá o Conselho de Segurança resistir à autentica batalha diplomática que está assolar aquela instituição. Numa guerra política sem precedentes, as Nações Unidas vivem dias decisivos para sua sobrevivência, como fórum “onde todos fala com todos”, com refere Adriano Moreira.
Na iminência da sua falência, a ONU, tal como a NATO e a União Europeia, enfrenta o desafio do tempo e dos desajustamentos sistémicos.
Na verdade, a crise iraquiana transbordou as fronteiras de uma mera intervenção militar num qualquer estado ditatorial. Agora, Saddam Hussein passou a ser um espectador atento da deterioração das estruturas ocidentais, que regeram os princípios das suas civilizações durante as últimas décadas.
Mais do que a ordem no Médio Oriente, a questão iraquiana está a provocar um intenso debate sobre o futuro das relações internacionais no ocidente.
A ONU, a NATO e a UE, os três pilares fulcrais que garantiram a estabilidade sistémica na Europa e América do Norte desde a II Guerra Mundial, estão a ser assolados por crises sem paralelo. Os dias que se vivem estão a fazer história no seio destas organizações.
As soluções de recurso alcançadas têm um efeito retardador, que adiará para um futuro próximo, decisões importantes para a manutenção, ou não, dessas organizações. Tudo dependerá dos líderes e dos seus projectos. Das suas ambições e das suas expectativas quanto ao sistema internacional que pretendem.
Os Estados, integrados nas várias organizações internacionais, reagem de acordo com os seus interesses e com os seus projectos de afirmação no mundo. Por isso, não será de estranhar que perante uma crise séria, como é a questão do Iraque, os Governos comecem a ceder às tentações soberanistas, adoptando posições historicamente racionais, mas pouco arrojadas ideologicamente. A questão do Iraque despoletou apenas uma realidade que esteve sempre presente no eixo transatlântico.
Como se podia ler num artigo de análise do jornal, “Le Monde”, o Iraque revelou uma profunda divisão na Europa. Em poucos meses, o Velho Continente redesenhou-se, chegando mesmo a falar-se de uma “velha” e “nova” Europa. Estas conceitos não são mais do que o ressurgimento de antigos projectos e ideias de Europa, assentes em antigos impérios.
Claramente se define uma “nova Europa”, como aquela que olha para o Atlântico e Estados Unidos, como um espaço de apetência natural e historicamente viável para alianças. Aqui o Reino Unido, a Espanha e Portugal são exemplos de Estados que não hesitaram na sua escolha e de uma forma lógica colocaram-se ao lado de um país tradicionalmente aliado (os Estados Unidos).
Esta “Europa americana” contrapõe uma “Europa europeia”, vincada pelo espírito continental do império carolíngio e pelo Sacro Império. A brecha entre estas duas realidades existiu sempre nos últimos cinquenta anos, embora estivesse camuflada por contingências do sistema bipolar reinante em toda a Guerra Fria.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a consequente implosão da União Soviética, em 1991, começou-se a falar em “dividendos da paz” e do triunfo dos valores e instituições comuns euro-americanas, com o “final da História”, de acordo com Francis Fukuyama.
Hoje, este autor fala em “grandes diferenças” no eixo transatlântico, referindo que a crispação entre os dois lados do oceano “não é apenas um problema transitório”. Também, Jeffrey Gedmin, director do Aspen Institute Berlin, fala sobre a “patologia” europeia no que se refere ao uso da força, argumentando que as visões dos Estados Unidos e da Europa nesta matéria são agora tão diferentes que “a velha Aliança (NATO) terá poucas possibilidades de continuar a figurar proeminentemente no pensamento estratégico global norte-americano”.
Poucos meses depois da evocação do artigo 5, pela primeira vez na história da NATO, o espírito de solidariedade deu lugar à recriminação, tendo os laços de relacionamento entre os aliados se deteriorado dramaticamente. Robert Kagam foi, talvez, o primeiro analista a assumir sem preconceitos as divergências entre os projectos europeu e americano sobre as relações internacionais, num mundo liderado por uma única superpotência.
“É altura de se deixar de pensar que os europeus e os americanos partilham uma visão comum do mundo, ou até mesmo de que ocupam o mesmo mundo”, escrevia Kagan na “Policy Review”, no verão do ano passado.
É num contexto de iminente falência do sistema ocidental, que a França emerge como a defensora dos projectos criados dos escombros da II Guerra Mundial e de cariz universalista. A todo o custo tenta manter instituições, nas quais se assume como grande nação e faz sentir todo o seu peso. A União Europeia e o Conselho de Segurança são organizações que dão a projecção mundial à França como uma grande potência. Uma fábula que à semelhança do seus antecessores o Presidente, Jacques Chirac, continua a acreditar que é verdade.
Desta forma, a França pretende manter um modelo de relações internacionais em que funcione uma União Europeia, para integrar uma Europa marcada por séculos de guerras, e uma ONU, depositária do direito internacional e instrumento regulador das políticas entre os Estados.
Numa altura em que os Estados Unidos parecem estar a contar menos com a Europa e dispostos a marginalizarem a ONU, não é de estranhar a defesa acérrima que Paris tem feito para a credibilização do Conselho de Segurança, especialmente através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominique de Villepin.
Desta forma, o “templo” de Villepin terá de ser defendido a todo custo pelos homens de Paris, mesmo estes sabendo que dificilmente evitarão a guerra.
A batalha política da França para evitar a guerra, muito provavelmente, fracassará, mas a França sabe também que na derrota à vitórias que se ganham.
“Acima de tudo existe a vitória de um princípio. Os Estados Unidos cometem um grave erro se crêem que a França se limitou a adoptar uma atitude mesquinha e grosseira. Chirac e Villepin acreditam, que eles, e só eles em última instância, estão a defender a visão europeia da ordem mundial frente ao inimigo mais perigoso dessa visão: os Estados Unidos”, escrevia Kagan, no “El País”.