2025/06/25

O acordo é impossível, a guerra é (mais que) provável

Ontem, a Casa Branca admitiu prolongar as negociações para uma nova resolução, depois de ter afirmado veementemente que a sua votação seria até ao final desta semana. Mas, colocou, igualmente, em cima da mesa, a hipótese de avançar para uma guerra à revelia da ONU. Entretanto, Blair apresentou uma nova proposta que não agradou aos homens de Washington. Pelo meio, está a França, que vetará qualquer projecto anunciada no Conselho de Segurança. A crise iraquiana transformou-se num episódio “kafkiano”, onde os intervenientes relegaram a diplomacia para um patamar incoerente e inócuo. Com uma estratégia ambígua, Washington poderá estar a ganhar tempo para obter apoios no Conselho de Segurança ou, muito simplesmente, à espera da sessão especial do Parlamento turco marcada para este fim-de-semana.

Afinal, e depois de dias de negociações e de muitos “recados políticos”, a apresentação de uma segunda resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas parece ser agora “menos provável do que nunca”, de acordo com as declarações feitas ontem pelo primeiro-ministro britânico, Tony Blair ao líder dos Conservadores britânicos, Ian Duncan Smith. “Isto quer dizer essencialmente que a guerra é mais provável”, acrescentou Smtih depois de ter saído do encontro no número 10 da Downing Street.

Inicialmente e a fazer fé na vontade norte-americana ( e no “New York Times” de ontem) o mundo estaria a poucas horas de conhecer o veredicto final da segunda resolução respeitante à crise iraquiana. Porém, agora nada é certo.

A Casa Branca, numa atitude de um passo à frente e dois atrás, disse ontem que pretende continuar com as negociações durante o fim-de-semana, e até mesmo ao longo da próxima segunda-feira se isso proporcionar a colheita de mais apoios. “[As negociações ] Podem ser concluídas amanhã. Podem continuar para a próxima semana”, informou ontem, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer.

Washington, que há muito delineou a sua estratégia relativamente ao Iraque, ao ponto de já ter no terreno 270 mil homens e um forte contingente bélico, iria eventualmente utilizar esta nova proposta como válvula de escape para a hecatombe de problemas que têm abalado os planos da Casa Branca nos últimos tempos.

Como a revista “The Economist” referia na sua última edição, por certo que quando Bush decidiu comandar a América numa guerra contra Saddam Hussein, não previu um desfecho diplomático mergulhado numa profunda divisão, de como aliás o Conselho de Segurança das Nações Unidas é reflexo.

Numa tentativa de atenuar as querelas políticas, a administração norte-americana afirmou na terça-feira que estaria disposta a prolongar “modestamente” o prazo das inspecções, que inicialmente expiraria na próxima segunda-feira, no entanto, rejeitou veementemente o apelo de algumas nações para estender o período de inspecções por mais um mês. Neste capítulo, Washington poderá ceder até 24 de Março, como prazo limite para o Iraque cumprir a resolução 1441.

Entretanto, numa nova revisão do projecto da segunda resolução, delineada pela Inglaterra, mas não subscrita pelos Estados Unidos e pela Espanha, farão parte seis exigências a Bagdad, uma das quais e, talvez, a mais polémica, obrigaria Saddam Hussein a admitir perante as câmaras de televisão a posse de armas de destruição maciça e a sua intenção de as destruir.

Seja como for, e apesar das intenções de Londres em tentar alcançar um compromisso entre o eixo transatlântico, o plano de Blair foi ontem rejeitado pela França. “A proposta do Reino Unido, Estados Unidos e Espanha, impõe um ultimato, 17 de Março. Pensamos que não é aceitável”, disse ontem o ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominique de Villepin, na cadeia de televisão France 2.

Também a Rússia já manifestou a intenção de vetar qualquer tipo de resolução que precipite uma guerra e não dê mais prazo aos inspectores da UNMOVIC.
Sem certezas no horizonte, os Estados Unidos não estão dispostos a dar mais tempo ao Iraque, e aparentemente já perderam o fôlego inicial para avançar para uma segunda resolução, admitindo que esta poderá nem vir a acontecer, evitando assim as divergências do Conselho de Segurança.

Para Washington, o cenário ideal seria a aprovação de uma segunda resolução no Conselho de Segurança, que impusesse um ultimato ao regime de Bagdad e abrisse caminho à intervenção militar, para os próximos dias. No entanto, e apesar da Casa Branca ter revelado o apoio de nove membros do Conselho de Segurança, a verdade é que os estrategas norte-americanos sabem que podem contar, eventualmente, com os vetos da França e da Rússia e, talvez, da China.

Sem uma segunda resolução, Washington poderá iniciar a guerra no Iraque sob a égide da resolução 1441, aprovada em Novembro último.

Nos preparativos para a guerra, o Governo de Ancara AKP, já sob os desígnios de Tayyip Erdogan, pretende convocar, para este fim-de-semana, uma sessão especial no Parlamento turco para abordar novamente a questão do direito de passagem aos 62 mil soldados americanos, para uma hipotética frente norte no Iraque.

Apesar dos Estados Unidos terem admitido que estariam a trabalhar num plano militar alternativo, que não precisasse da Turquia para desencadear a ofensiva em território iraquiano, a verdade é que o controlo da curdistão turco pelas forças americanas revela-se um factor crucial para garantir a estabilidade regional num cenário pós- Saddam.

De acordo com as informações que vão sendo veiculadas os Estados Unidos estão prontos para agir em larga escala. Convém relembrar unidades de operações especiais efectuam manobras em solo iraquiano há cerca de dois meses, visando o estabelecimento de uma rede de comunicações, a captura de potenciais fugitivos próximos de Saddam e a localização de locais com armas de destruição maciça. Tudo isto tem como propósito preparar terreno para a grande ofensiva.

“Se o Presidente tomar a decisão, eles (soldados) estão prontos para desarmar o Iraque”, revelou o chefe do Estado Maior das Forças Armadas americanas, o general Richard B. Myers.

Que é feito da diplomacia?
A crise iraquiana, e todo o processo a ela inerente, está a assumir contornos “kafkianos”, relegando a diplomacia para um patamar incoerente e inócuo. As certezas deram lugar às dúvidas, e os instrumentos diplomáticos, disponibilizados pela teoria internacional da negociação, passaram a ser usados em jogos perigosos entre os líderes mundiais.

A diplomacia deixou de ser feita de modo sério, por pessoas sérias dotadas de visão estratégica e sistémica. A questão do Iraque (e da guerra ao terrorismo) transformou-se num pretexto para ultimar a redefinição do sistema internacional, mergulhado num processo de metamorfose desde a queda do muro de Berlim, em 1989, e da consequente implosão da União Soviética, em 1991. Como referia há duas semanas, Fareed Zakaria, “isto já não é sobre o Iraque” e, na verdade, a remoção do regime de Saddam Hussein passou a ser uma questão acessória, perante um discurso de projectos e visões para o futuro do Ocidente e da ordem mundial.

Mas, o mais perturbador é que os líderes do eixo transatlântico envolveram-se numa realidade que eles próprios criaram, cheia de artimanhas e mecanismos obscuros da qual os Estados Unidos, a Rússia e a China poderão emergir realisticamente como actores internacionais de relevo, por modo a equilibrarem-se num sistema futuro.

A Europa, dividida e cada vez mais longe de ter uma voz única, afunda-se politicamente, em grande parte por não ter demonstrado vontade de pagar a factura do peso geopolítico, que tão valioso se revelaria a médio e a longo prazo nas relações internacionais. Num cenário que poderá condenar a ONU à efeméride, e consequentemente arrastar os pilares de uma ordem que garantiu cinco décadas de estabilidade na Europa, Bush lança o seu projecto imperial, concretiza aquilo que para muitos tornou-se logo uma evidência nos primeiros anos de 90: um sistema unipolar de cariz imperial, onde, muito provavelmente três actores desempenharão o seu papel nas relações internacionais (Rússia, China e uma ONU repensada).

Tratam-se apenas de conjecturas, que valem o que valem, mas que emergem naturalmente perante a indecisão e os dias históricas que se vivem no sistema internacional.

Bush retoma a retórica da Providência

Como reacção às ameaças impostas ao império, a administração Bush iniciou a partir do 11 de Setembro de 2001 uma guerra entre o bem e o mal, delineando muito claramente a linha de fronteira entre estas duas realidades do mesmo mundo. Acusado de ter um discurso simplista e maniqueísta, que não dá espaço à “zona cinzenta”, onde, afinal se jogam, na maioria do tempo, as relações internacionais, Bush não se coibiu de assumir imediatamente um tom messiânico.

Com um discurso mobilizador a nível interno, mas visto com desconfiança por sociedades externas, que não partilham as convicções políticas e religiosas dos norte-americanos, Bush falou de fé e com fé, para uma audiência que se rege pelos preceitos religiosos. A sociedade norte-americana continua fortemente vincada pelo conservadorismo religioso, e influenciada pelos seus conceitos e crenças.

A relação de Bush e Deus, e a dos americanos e Deus, é estreita e fiel. Intrinsecamente, a religião acaba por condicionar o dia a dia das pessoas, e consequentemente, por influenciar o pensamento estratégico norte-americano, assim como o seu discurso político. “Os ideais puritanos da Nova Inglaterra constituem, talvez, o factor mais importante na determinação do pensamento americano”, escrevia há umas décadas o professor Raymond G. Gettell, da Universidade da Califórnia.

Por vezes, os Estados Unidos revelam sinais de uma pura teocracia. Por exemplo, o “Deus abençoe a América”, no fim de todos os discursos políticos do Presidente, retira a laicidade a um momento que se quer politicamente solene. A famosa frase, “Em Deus confiamos”, estampada nas notas de dólar, reflectem a predisposição norte-americana para a invasão religiosa na história da vida privada e pública da América.

No modo de vida norte-americano, Deus está acima de tudo e todos. Por detrás de um Presidente americano, está sempre Deus, encaminhado os desígnios da nação americana da forma mais justa. A sua presença é assumida pelo dirigentes do país que não se inibem de referir Deus de uma forma constante, contrastando com o carácter laico e histórico das sociedades europeias.

Bush não tem dúvidas ao afirmar que a sua presidência surgiu em parte de um “plano divino”, chegando mesmo a dizer a um amigo durante os tempo de Governador do Texas: “Eu penso que Deus quer que eu me candidate para Presidente.”

Longe das crenças e das convicções de cada cidadão, este é um discurso que as nações europeias perderam durante a revolução francesa, e que se afastou por completo durante o conturbado e revolucionário século XIX. Já Nicolau Maquiavel (1469-1527) fazia ensaios que visavam a secundarização da religião ao nível das relações internacionais. O realismo político dava aqui os seus primeiros passos, seguidos, curiosamente pelo cardeal francês, Richelieu.

Apesar de Nietzche ter “morto Deus”, o cariz religioso na Europa não desapareceu, no entanto, a sua intervenção nos assuntos de Estado e da própria sociedade, reduziu-se ao campo privado. Uma evolução que os americanos não seguiram, nem as respectivas administrações. Paradoxalmente os próprios ensinamentos de Locke (1632-1704) ou Montesquieu (1689-1755) acabaram por ser violados, de certa forma, pela intromissão de Deus nos assuntos políticos.

É o próprio Bush a assumir que os “acontecimentos não são movidos pela cegueira e oportunidade”, mas “pela mão justa e providencial de Deus”. O Presidente americano não se reserva a personificar a vontade de Deus num ataque ao Iraque. Convicto de que está a combater o mal, materializado por Saddam Hussein, bin Laden, entre outros, Bush transformou uma questão estratégica e política (friamente inserida na lógica das relações internacionais) numa cruzada contra o infiel.

Este espírito providencialista foi criticado há duas semanas por Mário Soares, que denunciou o “carácter religioso” do discurso de Bush, salientando que a expressão “eixo do mal” é perigosa e “sem sentido”, descendo ao nível da retórica de Saddam Hussein.
No entanto, o providencialismo foi o farol dos líderes americanos na condução das suas políticas ao longo de mais de dois séculos de História.”

Por vezes, ao serviço de ideias nobres, servindo como um antídoto para as tragédias de uma nação, como fez o Abraham Lincolon ao evocar a Providência ao Norte e ao Sul com forma de reconciliação, e de sarar as feridas, refere o autor, Jackson Lears.

Porém, esta Providência tornou-se também um instrumento nas mãos de determinados dirigentes, como o senador Albert Beveridge e outros imperialistas no final do século XIX, que não se inibiram de insistir que Deus “marcou” o povo americano para liderar a “redenção no mundo”. Foi com base no providencialismo que os nativos foram expulsos pelo povo americano, ao qual Deus tinha dado a sua terra.

Da mesma forma que o Presidente, Woodrow Wilson, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, usou a retórica da redenção para alcançar uma paz justa, Bush utiliza os argumentos religiosos para justificar uma “guerra justa”, “desencorajando o debate e reduzindo a diplomacia à coação”.

Familiarizado com o discurso do antigo Presidente, Ronald Reagan, Bush criou um “eixo do mal”, uma versão pós Guerra Fria do “império do mal”. Na verdade, o actual residente da Casa Branca voltou a pôr o providencialismo “na moda”, assumindo uma democracia conduzida pela mão de Deus, num princípio que sempre regeu a propagação deste fenómeno no seio da nação norte-americana desde a sua criação, e que Alexis Tocqueville formalizou na sua famosa e histórica obra “Da Democracia na América”.

Para Bush, Saddam Hussein é um prevaricador dos princípios democráticos, violador das crenças americanas baseadas num puritanismo religioso. Tocqueville escreveu que “querer deter a democracia seria então como que lutar contra o próprio Deus”, o que enquadrado no contexto iraquiano coloca em conflito Saddam e o mesmo Deus que guia e ilumina a política de George W. Bush.

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