Adelino Granja foi uma das figuras mediáticas que surgiram aquando do rebentamento do maior escândalo de pedofilia em Portugal. Deu a cara por um monstro escondido – a pedofilia – onde ele próprio não esqueceu a sua própria história. Advogado de duas das vítimas do processo “Casa Pia” e em tom crítico, diz que Catalina Pestana “não conseguiu irradiar os abusos sexuais no interior da instituição”, pois “numa época tão conturbada como a que foi nomeada, centrou-se mais, na colaboração com a investigação criminal”. Sem papas na língua, defende a posição de Marinho Pinto, relativamente à tentativa de decapitação do PS.
Adelino Granja foi um dos rostos públicos da denúncia de crimes no caso “Casa Pia”. Que balanço faz de todo este processo desde o início da mediatização?
Sobre o próprio processo judicial eu não me pronuncio, por questões éticas e deontológicas. Sobre o caso “Casa Pia” e toda a envolvente que criou junto da opinião pública, o balanço que faço terá que ter duas conclusões. A primeira é que as denúncias públicas serviram de emenda a vários níveis, nomeadamente, no campo da justiça, mas acima de tudo na defesa das crianças. Conforme referi publicamente, no início de 2003, as vítimas da Casa Pia serviram de cobaia para as alterações que se vieram a registar na esfera legislativa. A segunda é que não conseguiram manter a honorabilidade da instituição criada em 1780. A ligação da Casa Pia ao campo da pedofilia não dignificou a instituição nem quem por lá passou. Tanto assim, que até levou a actual gestão a alterar o seu símbolo, o que a meu ver não passa de um gesto de cobardia e traição para com uma história secular. O estranho é a passividade dos antigos alunos. Em termos conclusivos, alguma investigação jornalística ultrapassou os seus limites, invadindo e perturbando a investigação criminal.
Então na sua opinião a excessiva mediatização do caso “Casa Pia” afectou o processo de investigação?
Nesse contexto considero que alguma investigação jornalística afectou todo o processo, desde os primórdios e até à actualidade, influenciando a opinião pública, a qual já julgou e tem a sentença há muito tempo, e tentando, nesta parte final, pressionar quem tem o encargo de decidir.
Houve um aproveitamento, político, atirando nomes para a praça pública?
Conforme eu referi, em Janeiro de 2004, quando foi publicada uma notícia num diário, envolvendo o então presidente da República, Jorge Sampaio, e relembrando os nomes de altas individualidades quase todas conotadas com o Partido Socialista, fui de opinião que estava a ser criado um certo aproveitamento político, que não resultou conforme se verificou com os resultados das últimas Legislativas. Não me recordo de ter surgido nomes de altas individualidades ligadas a outros partidos políticos…
Quem são os culpados por este processo se arrastar por tanto tempo?
A culpa pelo arrastar deste processo é de todos nós. Ninguém estava preparado para um processo desta natureza. Daí ficar na história da nossa justiça, como o processo mais prolongado. Todos fomos apanhados de surpresa: a justiça, a política, os cidadãos e as próprias vítimas. De 2002 para cá, processos desta natureza tiveram um tratamento diferente. Lembremo-nos do caso dos Açores, “a Farfalha”. Com um número maior de arguidos e um julgamento rapidamente concluído. O nome e a notoriedade dos arguidos tornou o processo Casa Pia muito complexo.
Muitos criticaram as alterações ao Código Penal, dizendo que se adaptaram para atenuar as penas dos possíveis culpados. Concorda?
Não concordo que as alterações à legislação tivessem como objectivo atenuar as penas dos possíveis culpados. Este “caso” obrigou a alterarem-se as figuras processuais da prisão preventiva, escutas telefónicas, segredo de justiça, bem como as penais ligadas aos crimes contra as crianças. Foi pena ter acontecido após as barbáries relacionadas com crianças indefesas e desprotegidas.
Como classifica o trabalho de Catalina Pestana?
O trabalho de Catalina Pestana, numa época tão conturbada como a que foi nomeada, centrou-se mais na colaboração com a investigação criminal, do que com os objectivos estratégicos, de uma visão global, que um cargo daqueles exigia. Compreendo as dificuldades por que passou num momento tão complexo quanto o que estamos a narrar. Ela própria poderá explicar melhor os caminhos que trilhou e as dificuldades com que se deparou. Penso que se envolveu demasiado no auxílio à investigação criminal de factos praticados antes da sua nomeação, perdendo o controlo do destino da própria Instituição.
Mas considera que a ex-provedora foi importante para erguer moralmente a instituição?
Penso que a sua gestão, ou de qualquer outra pessoa que fosse nomeada, decorrente do cenário onde se inseriu, dificilmente conseguiria erguer moralmente a instituição. As mazelas foram tão profundas, quer na instituição quer na alma de muitos casapianos. A acrescentar o comportamento da actual gerência em nada honra essa alma e o espírito gansíado.
Foi preciso Catalina Pestana sair da Provedoria da Instituição, para vir dizer que continuam a existir abusos sexuais. Como encara estes acontecimentos?
As notícias que vieram a público, pouco tempo depois da saída de Catalina Pestana da gestão da Casa Pia, em nada dignificou a instituição, vindo antes a borrar a imagem que ela tinha tentado criar junto de alguns cidadãos, dando a percepção de que enquanto lá esteve, e foram mais de quatro anos, não conseguiu irradiar os abusos sexuais no interior da instituição. Recordo-me que no início do “caso Casa Pia”, Catalina Pestana chamou-me, juntamente com Pedro Namora, à Provedoria, para nos contermos sobre denúncias que foram publicadas no início de 2003 num matutino. Pedia-nos calma e serenidade. O que ela não fez, aquando da sua saída. Penso que outras razões terão levado Catalina Pestana a tomar aquela atitude. No entanto, a justiça trará a devida resposta. O que todos nós sabemos é que nunca mais se ouviu falar do processo que nasceu desse terramoto.
A actual responsável da Instituição, Joaquina Madeira, disse em Outubro de 2007 que não tinha conhecimento de tais abusos, mais tarde admitiu existirem suspeitas. Considera, que como sempre, não interessa se alguém é abusado ou não?
Pelo que a comunicação social nos deu a entender, nada se passou no interior do colégio. E esse caso não tomou, porque não poderia tomar, as consequências de casos que se prolongaram por décadas, como aquele que ainda está a ser julgado. Apesar das enormes dificuldades de vigilância num colégio interno, não acredito que logo que se tome conhecimento de um abuso, que os responsáveis actuais, ou as próprias vítimas não dêem conhecimento às autoridades competentes.
A posição de Joaquina Madeira ficou fragilizada com estes acontecimentos?
Penso que não. Não conheço estes casos, mas pelo que se observa a nível de notícias, penso que a pessoa de Joaquina Madeira, retirando aquele episódio após a saída de Catalina Pestana, não é muito badalado. A época é outra, mas a nível interno e na vida dos ax-alunos e amigos da Casa Pia, penso que esse nome virá a ser referenciado pela negativa, tendo em atenção a alteração ao símbolo e ao hino da Casa Pia.
A nova Provedora, na sua opinião foi uma boa escolha?
Antes da sua nomeação não conhecia quem viria a ocupar o cargo de gestão nos destinos da Casa Pia. Não sei se foi uma boa escolha ou não. Mas que existem pessoas altamente credíveis e que dariam excelentes orientadores dos destinos de uma instituição centenária, não tenho dúvidas. Entre essas pessoas destaco a Dra. Manuela Eanes, que há décadas dirige a melhor instituição ligada às crianças, o IAC-Instituto de Apoio à Criança e em especial às crianças desprotegidas.
Partilha da opinião, que Joaquina Madeira não merece confiança, porque foi nomeada por Vieira da Silva que, “enquanto porta-voz do PS, atacou claramente as vítimas, desacreditando-as”?
Não concordo com essa opinião. Como também não concordei com a opinião de quem nomeou Catalina Pestana, em Novembro de 2002. A minha interpretação nessa altura foi, como é que uma senhora que na década de 70, uma mulher da considerada extrema-esquerda, é nomeada por um Ministro da Direita. Penso que se deverá separar a crítica que todos os casapianos possam fazer a Vieira da Silva, por aquilo que proferiu durante a investigação do “caso Casa Pia”, com esta nomeação. Penso que foi uma mera coincidência. O que não achei na nomeação desse Senhor para a tutela da Casa Pia. Penso que teria sido politicamente mais correcto nomear uma outra pessoa que nunca tivesse tido qualquer ligação com este caso tão mediático.
Na sua convicção, o que se passou com os alunos da Instituição foi um acto isolado? Ou fazia parte de uma rede internacional?
Essa questão faz parte da investigação criminal e do próprio julgamento em curso. Pelo que retiro dos dados recolhidos junto da comunicação social, penso que não estamos perante a existência de uma rede internacional, como se pretendeu fazer crer no início de todo este processo. Considero também que o que se passou com os alunos da Casa Pia, sempre se passou noutras instituições de acolhimento, como se veio a provar por denúncias de outros casos. O que relevou em todo este caso, foi a referência a pessoas de conhecimento público com a ajuda da comunicação social.
Uma das figuras tão ou mais mediáticas do que os arguidos foi o juiz Rui Teixeira. Considera que foi graças a ele que o processo avançou da simples investigação para acusações formais?
Penso que um dos momentos mais nítidos da imparcialidade da justiça e da quebra do segredo e do sigilo profissional foi quando todos nós observámos a deslocação de Rui Teixeira ao Parlamento para notificar o deputado Paulo Pedroso. Ainda hoje estou para perceber qual o objectivo da referida publicidade a uma mera notificação. Comparo este acto àquele em que no dia 25 de Maio de 2003, quando era do conhecimento público que eu e o Pedro Namora iríamos participar num programa de Herman José, que a autoridade policial decidiu notificá-lo para uma diligência a realizar-se no final da semana seguinte. Foi mais o aparato noticioso desse tipo de notificação, em que se juntavam os ex-alunos mais mediáticos com mais um nome publicamente conhecido, do que do próprio programa. Penso que os actos praticados por Rui Teixeira, integrados no início do rebentar do escândalo, não deixaram de ter o seu ímpeto no espírito de uma população ávida de saber quais teriam sido os que trataram mal tantas crianças. E o juiz Rui Teixeira era, nessa altura, o herói, como se verificou com a “Marcha Branca”.
No seu entendimento, nos momentos em que este juiz esteve à frente do processo, houve justiça?
Sempre acreditei na justiça. Não penso que essa justiça apenas tenha existido no tempo em que Rui Teixeira teve a condução do processo. O que confio é que até ao trânsito em julgado, em que intervêm tantos agentes da justiça – magistrados do Ministério Público, os advogados e os próprios juízes – se concluirá pela decisão mais justa. Agora o que foi criado na opinião pública foi o facto de alguém, depois de acusado por um elevado número de crimes vir a ser despronunciado e não ser levado a julgamento, e outros, no mesmo processo, que foram acusados por um menor número de crimes tenham sido submetidos a julgamento. Não quero com isto dizer que os que estão a ser julgados deveriam ter sido despronunciados. O que quero dizer é que são situações publicamente idênticas e com caminhos completamente diferentes, o que para um cidadão livre de opinião, suscita enormes dúvidas.
Adelino Granja é advogado de algumas das vítimas e ainda esteve envolvido no caso, pois foi aluno da instituição. Até que ponto isto não foi prejudicial para a investigação?
A minha participação como advogado na defesa do “Joel” surgiu no âmbito de um processo em que apenas havia quatro vítimas e um arguido. Nunca esperava que um simples processo judicial fosse “apanhado” por um segundo processo que ficou denominado como “processo Casa Pia”. A minha vida, como aluno interno da Casa Pia, durante onze anos, serviu para dar a conhecer uma vida por vezes muito dramática, nomeadamente no que se refere aos abusos sexuais. A minha participação terá sido para a investigação a mesma que outros alunos e ex-alunos, por forma a tentar explicar ao exterior como durante décadas o poder político se calou perante denúncias desta natureza, como prova a “Revolta dos Gansos”, de Julho de 1980, em que foi dado conhecimento ao Governo e ao Presidente da República de então, casos dessa natureza.
Ainda representa alguns dos jovens que foram molestados sexualmente?
Ainda represento dois ex-alunos da Casa Pia, no âmbito deste processo que decorre em julgamento, aguardando apenas a fase das alegações finais.
Qual é o estado de espírito deles, numa altura que o caso parece esquecido?
Desconforto e desilusão perante o demorar de uma decisão cujo desfecho desconhecem. Sobre um processo que os conduzirá por muitos e muitos anos.
Porque é que tão poucas pessoas vêm defender os jovens que supostamente sofreram os abusos?
A justiça é assim. Mas penso que hoje as crianças têm maior protecção e há cada vez mais advogados, apoiados pela sociedade, que avançam na defesa de crianças abusadas sexualmente. Existe é casos de crianças muito pobres que não conseguem cativar quem os defenda, ao contrário de crianças de famílias mais poderosas que conseguem mediaticamente arrastar multidões de afectos e não só.
Acredita na Justiça?
Sempre acreditei na justiça. Demore o tempo que demorar. Como este processo. Mas também já senti mágoa por não ter conseguido perceber certas decisões que diferem de juiz para juiz ou de tribunal para tribunal.
Na sua opinião, os suspeitos envolvidos são demasiado poderosos para existir justiça?
Não acredito que o poder económico ou a fama de certas pessoas influencie a decisão da justiça. Agora que quem tem dinheiro, encontrando melhores advogados, consegue defender melhor, lá isso acredito. É como a saúde. Dizem que o dinheiro não dá saúde, mas quem tiver mais dinheiro poderá socorrer-se de metodologias diferentes das que não tenham essas capacidades, tornando a sua vida mais prolongada.
O actual procurador-geral da República está a dar suficiente atenção ao processo?
Penso que o actual procurador-geral da República tem outros processos mais mediáticos e mais actuais do que um processo que já se encontra em fase terminal. O actual responsável pela PGR já não tem que se preocupar por este “processo casa Pia”, mas terá que estar atento por outros processos desta natureza, apertado o cerco a presumíveis pedófilos que tentem renascer em volta da instituição.
O actual bastonário, Marinho Pinto, disse que “o processo ‘Casa Pia’ visou decapitar o PS”. Como reage a estas declarações?
Compreendo a posição do actual Bastonário da Ordem dos Advogados. Comungo das suas opiniões sobre a interpretação que faz das sucessivas notícias que envolviam apenas nomes de altas individualidades do PS, uma vez que apenas referiam nomes deste partido. Através de algumas notícias, como em qualquer outro caso, verificou-se a tentativa de ligar esse caso ao PS. Mas isso não passou de uma orientação estratégica de alguns órgãos de comunicação social. O processo nasce de verdadeiros abusos sexuais e com vista a decapitar pedófilos e não determinado partido. Essa interpretação surge da orientação jornalística. Aliás, este é o homem certo no lugar certo, contra um poder enraizado há décadas na Ordem.
Estamos a assistir a uma manipulação da opinião pública na fase final do processo?
Na fase final de cada processo tenta-se auscultar as opiniões que cada um tem sobre o seu desfecho. Ao contrário do final das telenovelas, este caso não terá um fim ao gosto de cada um dos telespectadores ou dos que ao longo destes quase quatro anos têm acompanhado o julgamento do “processo Casa Pia”. Mas penso que ao contrário das telenovelas, quem tem o encargo de decidir não será influenciado pelas opiniões de cada cidadão. O tal julgamento popular, seja qual for a decisão que vier a ser judicialmente decretada, dificilmente se alterará, devido ao enraizamento das notícias massivamente publicadas desde Novembro de 2002. Mas acredito na justiça dos tribunais.|