Quando a oposição apresenta uma moção de censura ao Governo quer significar que, caso tivesse condições parlamentares, a oposição desejaria o derrube do Governo.
É a censura máxima em democracia e só deve ser colocada quando a acção do executivo é de tal maneira insuportável para a oposição que justifica a sua demissão.
Mas essa não era a intenção do PS, ao apresentar a moção esta semana no Parlamento, todos percebemos. Bem pelo contrário, o PS, que se estivesse no poder faria provavelmente o mesmo que Barroso, ou seja, ficar-se-ia pela retórica e apenas disponibilizaria ajuda humanitária findo o conflito e provavelmente legitimada por um voto nas Nações Unidas, o que pretendeu foi marcar o terreno de liderança da oposição, testando nomeadamente uma solução de Frente Popular, eventualmente a construir sob a égide do sampaísmo juntando, numa coligação pré ou pós-eleitoral, eventualmente PS, PCP e BE, e que, até agora, era impensável.
O que ficou claro é que a oposição não quis ir até ao fim, pois de outro modo teria pressionado Sampaio a demitir Barroso, em face da evidente oposição entre ambos em matéria de política externa. Sampaio e o PS não quiseram transformar num conflito institucional o que era um evidente conflito de orientação política, numa matéria onde a opinião do Presidente é decisiva e se espera exista consenso nacional.
E a oposição não quis ir mais longe, nem o Presidente da República quis colocar entraves por agora à estabilidade política, já não por qualquer “diktat” de Bruxelas, como acontecia quando, a contragosto, Sampaio sustentava o governo de Guterres, mas porque os sampaístas estão convencidos que é a partir de meio do mandato que o desgaste de Barroso mais se fará sentir, e que a situação económica arrastará o governo para níveis de popularidade de tal maneira insuportáveis, que o Presidente não terá outra alternativa que não seja demitir o Governo e provocar eleições antecipadas.
E esse é, aliás, na óptica do PS, o “timing” ideal para preparar as presidenciais. Porque a esquerda sabe bem que perderá as presidenciais, se Barroso e a direita estiverem no governo quando elas se realizarem.
A esquerda espera por 2004
Por outro lado, a esquerda espera que, apesar da política a contraciclo do governo de Barroso, a partir de meados de 2004, a retoma da economia internacional poderá proporcionar condições para a retoma interna e que, portanto, nessa altura, tudo deverá fazer para assegurar o seu regresso ao poder. Porque, pensam os estrategas da esquerda, esse será o momento, e também aquele em que Barroso estará mais fragilizado, pois permite fazer coincidir a retoma económica com o regresso do PS ao Governo.
Dentro deste tacticismo político, aliás, bem ao nível do que António Guterres nos habituou, movem-se agora os interesses da esquerda. E, ninguém tenha ilusões quanto à tentação de Jorge Sampaio fazer, como o próprio Guterres fez, que foi o de trair a sua base social de apoio, na esperança da direita, que não votou nele, o apoiar depois. Sampaio, embora seja o Presidente de todos os portugueses, sabe que já não volta a votos e que a História julgará a sua coerência pela herança que deixar.
Quem conhece Sampaio sabe que ele jamais fará como Guterres, que desejou o caos para a esquerda, depois da sua saída. Sampaio tem, aliás, provas dadas, no modo como conduziu a Câmara de Lisboa e como, inclusivamente, assegurou a vitória seguinte da esquerda, com João Soares que, por conta própria, falharia para Santana Lopes a sua reeleição.
Isto quer dizer que, no momento oportuno, Jorge Sampaio não deixará de jogar de acordo com os seus princípios e o seu entendimento do interesse nacional, ou seja, não deixará de criar condições para que depois da sua saída de Belém a esquerda fique no poder. Só isso vale a pena repetir, é coerente com a sua maneira de estar na política.
Assim sendo, a oportunidade destas moções de censura deveria servir à maioria para reflectir sobre o que tem andado a fazer no Governo. Se a aplicar o seu programa ou, pelo contrário, se a cumprir a agenda do PS que, em face da situação económica, abandonou o poder, mas continua a mandar nos Ministérios principais como nas Finanças ou na Segurança Social, enquanto a crise não passa?
Reformas prometidas e não cumpridas
Porque não basta ter agido com inteligência em política externa, jogando do lado do obviamente vencedor e acautelando protagonismo para consumo interno e advertência à Espanha. Passada a crise internacional, demorada apenas, não por falta de poder de fogo da Coligação Internacional, mas porque se pretende evitar efeitos colaterais e a destruição de Bagdad, regressam os problemas nacionais, a necessidade das reformas elencadas no programa eleitoral do PSD, que o País sufragou, mas que infelizmente não vê concretizadas.
Porque não se pode esperar que na insensatez de políticas de contraciclo promovidas pelo Governo, como o aumento de impostos e a venda de activos simbólicos e estratégicos do Estado, o País se reveja, quando as despesas públicas continuaram a aumentar e a recessão económica é mais grave em Portugal que nos outros países. Porque há alternativas e elas ainda por cima estão no programa de governo do maior partido da coligação.
Um ministro que anuncia um conjunto de reformas e, seja por que razão for, não consegue fazer aprovar nenhuma, faz sucessivamente leis inconstitucionais ou vetadas pelo Presidente da República, num Estado democrático e civilizado, no mínimo demite-se.
Mas, coitado, andou o homem uma vida a querer ser ministro e vai agora demitir-se, quando está a adorar sê-lo. Bem pelo contrário, não podendo fazer o que prometeu, põe-se a inventar reformas que não constam do plano do Governo, que são mesmo contraditórias com as políticas do mesmo Governo, e ninguém lhe chama a atenção.
A aldrabice de Bagão
O caso desta semana de Bagão Félix, que mais uma vez viu chumbado o diploma do rendimento mínimo que anunciou como basilar da sua política e que não fez, mas, pelo contrário, anunciou a criminalização dos empresários e o impedimento dos gestores de empresas com dívidas à Segurança Social, medida que jamais Ferro Rodrigues proporia e que nem Lourdes Pintasilgo se lembraria, demonstra bem a nível de insensatez e incompetência a que chegou a falta de coordenação política dentro do Governo.
Estes indivíduos da esquerda católica sempre foram bem mais perigosos que os comunistas, já o sabíamos, desde o tempo dos Governos provisórios. Mas, a maioria não pode estar a querer promover o investimento e a confiança (com o plano Tavares e a dedicação de Cadilhe, Talone ou Líbano Monteiro) e a fazer aos empresários o mesmo que Pina Moura lhes fez (e que justificou uma fuga de capitais de cerca de dois mil milhões de contos de Portugal arruinando de vez a economia de Portugal).
Se, no plano externo, Durão Barroso está a demonstrar o seu profissionalismo, como aliás ficou provado no debate das moções de censura, a maioria governamental está nitidamente com um défice de coordenação política e estratégica, no plano interno, à mercê de ministros incompetentes e que se agarram aos expedientes de uma Administração Pública corrupta e incapaz, infiltrada pela esquerda, e que se aproveita das suas fraquezas e vaidades.
A maioria não pode anunciar umas reformas e depois fazer outras, como o está a fazer Bagão Félix, porque isso é uma aldrabice política. Ferreira Leite ainda teve a desculpa do Plano de Estabilidade e Crescimento. Bagão, ou é incompetente, ou é desonesto, e não percebe que um Governo de centro-direita só perde se começar a governar mais à esquerda que a própria esquerda. Porque, para isso, pensará a esquerda, antes o autêntico, porque pelo menos é coerente.
Porque não foi para isso, pensará o eleitorado de direita, que elegemos este governo. E não basta nomear uns “boys”, como fez Bagão, ou algumas figuras notáveis, como fez Tavares, para se ter uma política.
Portas na hora da verdade
A hora da verdade aproxima-se. Esta maioria tem mais um ano. E Barroso tem que estar consciente que será julgado, não pelo seu protagonismo internacional mas pelo que conseguir fazer da economia nacional e no plano interno.
Ainda por cima o melhor ministro do Governo está manietado, por inveja, culpa própria ou simplesmente interesse táctico. Mas, que o PSD tem que estar consciente desse cenário, nada impedirá, depois, Paulo Portas de se ver livre de Bagão e até do PSD, que sempre o ameaça, para fazer o acordo com o PS, evitando uma alegada Frente Popular, que se viu nas censuras ao Governo desta semana. Uma jogada política ao nível do que Portas já uma vez fez a Monteiro, sempre justificável pela chocante incoerência ideológica da actual maioria e até porque, quer se queira, quer não, o PP esteve sempre mais à vontade no governo com o PS, do que com o PSD.
Uma solução, aliás, que ainda por cima poderia resolver a questão da autonomia estratégica do CDS/PP, que passaria a ser o “partido de charneira” que os seus fundadores sempre defenderam, agora que, pela importância que Portas deu à Nova Democracia de Monteiro e pela resposta de José Luís Arnault contra a fusão dos partidos da maioria, o CDS/PP só pode esperar, no quadro da actual coligação, ver reduzir-se, qual “beijo da morte”, a sua base social de apoio.
Estamos no plano dos cenários e não da irresponsável instabilidade política, que nesta conjuntura só prejudicariam o interesse de Portugal. Mas Barroso tem que começar a desenhar já os contornos da sua defesa, consciente que, até agora, tem estado no poder, não apenas porque está legitimado pelos votos da maioria, mas porque Jorge Sampaio lhe deu e manteve a confiança política.