A Europa e o Atlântico – um outro caminhopor G. d’Oliveira Martins
Começa agora o momento mais difícil e complexo da crise iraquiana
Depois da aventura militar – cujos perigos e riscos ficaram plenamente confirmados -, trata-se de saber em que medida haverá condições para reconduzir o processo à esfera das Nações Unidas (como bem têm defendido os britânicos) e de que modo poderá a comunidade internacional contribuir para a estabilização de uma região instável e perigosa.
Devo dizer que estou pessimista quanto a estas possibilidades – uma vez que foram cometidos demasiados erros e que a atitude estratégica da administração Bush parte de uma perigosíssima ignorância da História.
No entanto, julgo que há oportunidades interessantes a explorar, designadamente no tocante à política europeia. Neste ponto, penso que deve haver uma grande determinação, contra quaisquer tentações de cepticismo ou de cinismo. Sem ilusões, do que precisamos é de realismo – de modo a que a Constituição da União Europeia consagre um autêntico equilíbrio de poderes e uma capacidade de afirmação europeia na política externa de segurança e de defesa.
Eis porque a reaproximação europeia a que se tem assistido nos últimos dias deve ser prosseguida. Como tenho defendido, é indispensável que o eixo franco-alemão seja completado por uma Entente Cordiale, que inclua a perspectiva britânica e atlântica.
Jacques Amalric dizia há dias, no “Libération”, que uma vitória na guerra poderia transformar-se numa derrota na paz. Afinal, o resultado desde o início previsível para o conflito não impedirá só por si que “o sonho do Iraque democrático se torne a mais completa utopia”. E isto porque o país é um Estado medieval, com interesses e grupos contraditórios, e uma ditadura fundada em concepções arcaicas, situada no coração de uma das regiões mais explosivas do mundo.
Tudo aponta, de facto, para a eternização da raiva, do medo, da incerteza, da irracionalidade e da violência. E como reagirão as populações? Como será evitado o desenvolvimento de diversos pólos de radicalismo e de irracionalidade? Como será definido um fim à vista para uma situação de excepção que venha a ser decretada? Como reparar os estragos na ordem internacional já produzidos? Por que razão regressam as ameaças de violência? Como garantir eficazmente um combate contra o terrorismo internacional?
Todas estas perguntas representam sérios motivos de medo e de incerteza. A desconfiança instalou-se por toda a parte e as imagens dramáticas de uma guerra que se tem caracterizado por centenas de vítimas civis e pelos efeitos absurdos do “fogo amigo” vão perseguir daqui para a frente a posição norte-americana no mundo.
E o certo é que um dos efeitos imediatos da “desordem estabelecida”, da divisão da Europa e da tensão entre Estados Unidos e Velho Continente é já o enfraquecimento inexorável, com efeitos imprevisíveis, do pólo ocidental. A “lei da selva” ocupa o lugar do direito e de uma ética democrática.
Se nada for feito no sentido de inverter este estado de coisas poderemos temer o pior. A memória da destruição da Europa de 1945 está a desvanecer-se – e há cada vez mais aprendizes de feiticeiros a brincar com o fogo.
E a economia? A recuperação continua a ser adiada. E falta lucidez para encontrar políticas sérias e seguras de carácter anticíclico. As economias ocidentais precisam de investimentos reprodutivos, de políticas activas de emprego, de mais eficiência fiscal e de uma sábia síntese entre os progressos nas economias reais e no capital social e a melhoria da competitividade.
A desorganização da guerra só vai fazer piorar as coisas. Alguns limitar-se-ão a esperar por Godot – e perderão. Outros terão de se pôr ao caminho, tentando perceber que a paz e a reconstrução exigem o espírito de um New Deal mundial e o fim dos erros de um lado e do outro do Atlântico.
Afinal, europeus e norte-americanos têm de compreender que um caminho de divisão e de desinteligências conduzir-nos-á para o abismo, de um lado e do outro do Atlântico. Se os Estados Unidos perderem arrastarão a Europa – e o enfraquecimento da Europa só tornará mais débil a posição norte-americana. Quem apostar na cizânia europeia vê-la-á funcionar como um violento “boomerang”. E quem continuar a apostar na doutrina Monroe (“a América para os americanos”), fiando-se apenas no poder militar e na lógica da superpotência auto-suficiente, terá a surpresa desagradável de acordar um dia como império de pés de barro – como a História ensina, duramente.
Eis porque a parábola dos vimes merece ser recordada. Os vimes separados tornam-se frágeis e vulneráveis, mesmo para um Império, supostamente invencível. Os vimes unidos exigem, porém, na política internacional que não haja subserviência ou dependência, mas autonomia e complementaridade. E a opção europeia exige esta tomada de consciência – de que a união faz a força. E esta crise grave, e o que se lhe vai seguir, se revelou a divisão da Europa, demonstrou a exigência de mais Europa política e de uma tomada de consciência sobre a defesa dos valores e dos interesses comuns.
Há dias, o meu amigo Adam Michnik justificou o seu apoio à posição americana – e fê-lo com argumentos sérios que temos de respeitar. Mas temos de entender o porquê desta tomada de posição de um democrata de sempre e de um grande europeu (ao lado de Bronislaw Geremek ou de Vaclav Havel). No fundo, o que Michnik nos exigiu, a nós europeus, foi maior audácia na criação de instrumentos comuns orientados para a segurança e a paz no continente europeu e no mundo.
Exigiu-nos mais Europa política, como base de uma solidariedade necessária euro-atlântica, assente no multilateralismo e no respeito mútuo e numa convergência voluntária, nunca numa imposição unilateral.