2025/07/03

Da visão rumsfeldiana à guerra das doutrinas militares

Que guerra estão os americanos a travar no Iraque? Depois de meses de discussão no Pentágono, Rumsfeld conseguiu fazer aprovar o Plan 1003, no qual o secretário de Defesa norte-americano aplicou um esboço daquilo que poderá vir a ser a sua visão para o futuro das forças armadas, já conhecida como a “doutrina da guerra digital”.

Na elaboração dos planos da Liberdade Iraquiana, o círculo restrito de assessores de Rumsfeld bateu-se pelo seu projecto, confrontando-se com os estrategos militares do Pentágono, que foram relegados para um papel secundário. O “Plan 1003” é claramente a consagração da visão de Rumsfeld em desfavorecimento do conservadorismo das hierarquias militares.

Desta forma, “o conflito com o Iraque não serve apenas para remover o Governo de Saddam Hussein. Serve também para estabelecer uma nova lição militar”.

“O inimigo que nós combatemos agora é um pouco diferente daquele que nós tínhamos concebido nos nossos cenários de guerra”, disse o tenente-general, William Wallace, que comanda o Quinto corpo do Exército americano no terreno.

Após duas semanas de guerra, este tipo de expressões começa a invadir as mentes dos soldados no terreno e está a ser utilizado pelas altas chefias militares anglo-americanas para justificarem os percalços de uma guerra, outrora anunciada rápida e triunfal.

Dia após dia a coligação anglo-americana vai-se enterrando num atoleiro, do qual a sua saída é ainda uma incógnita. As dificuldades têm surgido a cada quilómetro galgado no deserto iraquiano pelos blindados e soldados.

À medida que as forças britânicas e norte-americanas vão progredindo em direcção a Bagdad, para trás vão ficando bolsas de resistência iraquianas que, na verdade, têm impossibilitado a euforia em Washington e Londres e a aclamação do sucesso claro no cumprimento da operação Liberdade Iraquiana.

Apesar dos demais obstáculos, é o espírito de resistência das forças iraquianas que mais tem surpreendido os homens no terreno e as cúpulas política e militar. Mas, é sobretudo no seio da Administração Bush que a atitude das forças iraquianas e do próprio povo – longe de receber de braços abertos os “libertadores” – se assume como um factor desconcertante e humilhante nos decisores políticos e estrategos.

Se, por um lado, será incorrecto qualificar a actual situação do conflito, como um fracasso para as forças anglo-americanas e, consequentemente, como uma vitória para o regime de Bagdad, por outro lado, ao fim de quinze dias de confrontos bélicos é impossível deixar-se de constatar que algo se passa na abordagem estratégica que a coligação anglo-americana está a fazer no terreno.

Ou seja, se para as chefias militares é verdade – e tendo em conta a dimensão desta guerra e a titânica missão da coligação anglo-americana -, que este conflito poderá estar a seguir dentro dos padrões aceitáveis (por exemplo, até ao momento registou-se um número reduzido de baixas entre os soldados anglo-americanos), é igualmente verdade que os dias vindouros poderão proporcionar momentos de pesadelo aos militares ingleses e americanos, por imposição de contingências que talvez tenham sido descuradas na fase de planeamento estratégico nos meses que antecederam o início da operação Liberdade Iraquiana.

Não será, por isso, de estranhar que nos últimos dias tenham surgido notícias revelando divergências nos centros de decisão e cepticismo nos homens do terreno. A guerra do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, o “falcão dos falcões”, começa, assim, a provocar os primeiros danos colaterais políticos que, ironicamente, estão a rebentar no seio da Administração Bush, mais concretamente no Pentágono.

Richard Perle, um outro falcão da administração Bush, assessor do Pentágono, e até ao passado dia 27 de Março Presidente do Comité de Políticas de Defesa do Congresso, ficará para a história desta guerra como a primeira baixa política nos corredores de Washington. Um homem que não se coibiu de anunciar que o Exército de Saddam iria depô-lo através de um golpe de Estado está claramente desacreditado aos olhos das chefias militares.

“Eu não acredito que precisemos de destruir o Exército de Saddam. Eu penso que o Exército de Saddam irá destruir Saddam”, revelava Perle há uns tempos. Ainda na última edição do “El Pais” de domingo Perle vaticinou que esta guerra iria ser curta, “num abrir e fechar de olhos”.

Também outro assessor do Pentágono, Ken Adelman, escreveu há um ano que “a demolição do poder de Saddam Hussein e a libertação do Iraque” iria ser “um passeio agradável”. Relembre-se que Perle e Adelman são homens da confiança de Rumsfeld e de extrema relevância nas decisões políticas.

Foi o próprio secretário de Defesa que nem há um mês referiu que a guerra poderia durar no máximo “seis dias, seis semanas”, duvidando da sua extensão para seis meses. Mas, na verdade, a guerra já entrou na sua terceira semana e não se vislumbra num horizonte próximo o fim do conflito.

É nesta perspectiva que alguns militares de alta patente no terreno e em Washington começam a ficar pessimistas quanto ao desenrolar da guerra. O SEMANÁRIO abordava esta questão há precisamente uma semana, citando fontes militares ao “Washington Post”, o primeiro jornal a levantar o véu sobre esta questão, revelando que alguns militares confessaram em privado nas várias salas do Pentágono e no campo de batalha que a progressão da intervenção militar estava a ser mais difícil do que aquilo que se esperava antes do início das hostilidades. “Digam-me quando é que isto vai acabar”, desabafava um alto militar ao “Washington Post”.

À medida que se desenrolam as operações no terreno e as dificuldades emergem, as divergências entre os militares e os políticos do Pentágono são cada vez mais evidentes e tensas. O tenente-general, William Wallace, foi até agora o militar mais crítico ao trabalho do Departamento de Defesa.

São cada vez mais as queixas provenientes dos comandantes do Exército norte-americano que estão no Iraque. Estes acusam o Pentágono de não ter enviado o número de tropas necessário para o cumprimento das suas missões. “Ele (Rumsfeld) quis travar esta guerra de uma forma barata. Ele tem o que quis”, disse esta semana ao “New York Times”, um coronel do Exército americano.

Nesta lógica, as comparações entre Rumsfeld e o arquitecto da guerra do Vietname, Robert S. McNamara, secretário de Defesa de Kennedy, começam a ser óbvias.

Visões em confronto sobre o futuro das Forças Armadas

O debate é amplo e não se restringe apenas à guerra no Iraque. As críticas que surgem de um lado, e os argumentos dados pelo outro, enquadram-se em dois projectos para o futuro das Forças Armadas norte-americanas.

A intervenção militar no Iraque foi vista por muitos como o palco ideal para se começarem a aplicar determinados conceitos que, na perspectiva de Donald Rumsfeld, serão as linhas mestras das Forças Armadas do futuro.

Nunca foi segredo para ninguém que desde o dia em que Rumsfeld tomou posse como secretário de Defesa, procurou alterar o conceito da Defesa americana, de certa forma, como aconteceu noutros países, inclusive Portugal, que esteve durante meses mergulhado numa vasta discussão sobre a reformulação estratégica e teórica das FA.

Seguindo um princípio inovador, Rumsfeld quer umas Forças Armadas mais móveis, com armas de precisão a longas distância, retirar mais valias das novas tecnologias de reconhecimento e libertar a estrutura das forças armadas de um peso administrativo e operacional excessivo, na perspectiva do Pentágono.

Nesta reforma o factor monetário exerce com toda a certeza um papel preponderante, sendo que a nova estratégia de Rumsfeld visa tornar a guerra mais eficiente, menos mortal e mais barata. Foram com estes conceitos, aliados a alguns erros de análise da capacidade de resistência das forças iraquianas, que Rumsfeld e a sua equipa do Pentágono elaboraram o documento “Plan 1003”, a estratégia de ataque ao Iraque.

O “Plan 1003” é claramente a consagração da visão de Rumsfeld em desfavorecimento do conservadorismo das hierarquias militares.

Estes, seguindo uma tradição bélica adversa a rupturas de conceitos, representam a outra visão sobre o futuro das Forças Armadas. Aqui, o peso da estrutura e hierarquia militar faz todo o sentido para sustentar grandes Exércitos, preparados para grandes guerras.

A cirurgia dos ataques passa para segundo plano, salientando-se a conquista territorial com um largo número de homens e meios blindados. Por isso, os militares mais conservadores, ou cépticos, são os principais críticos de Rumsfeld e da sua estratégia, que o acusam de não ter enviado os soldados suficientes para a batalha de Bagdad e para assegurar as linhas de reabastecimento das forças da coligação com a retaguarda no Kuwait.

Desta forma, “o conflito com o Iraque não serve apenas para remover o Governo de Saddam Hussein. Serve também para estabelecer uma nova lição militar”, escreveu Michael R. Gordon no “New York Times”. Rumsfeld vê na superioridade aérea e nas operações especiais a espinha dorsal da visão que tem para as forças armadas, contrapondo a outra visão em conflito, a dos generais do Exército, que vêem nas grandes divisões de blindados o ponto nevrálgico de qualquer estratégia militar.

De facto, o cunho de doutrina Rumsfeld é notório nesta guerra, ainda mais quando comparada com a de 1991. Na altura, o conflito começou com uma campanha aérea de 39 dias, que abriu caminho aos 500 mil soldados para derrotar o inimigo e proceder a uma retirada rápida. Hoje, a força é muito mais pequena, com cerca de 180 mil homens, metade dos quais a operar dentro do Iraque.

Desta vez foi um ataque terrestre que precedeu o ataque aéreo principal, numa estratégia que o Pentágono defendeu como necessária para causar o efeito surpresa, por modo, a proteger os vários campos petrolíferos.

Doutrinas em choque

As tensões que agora emergem entre os militares e o Pentágono resultam de um prolongamento de um debate que há meses que se tem vindo a fazer. Rumsfeld colocou a doutrina da “guerra digital”, como a revista “Bussines Week” a classifica, no centro das suas prioridades, deixando bem claro desde o início que seria este o caminho a seguir.

Enfrentando as resistências daqueles que querem manter o “status quo” dentro do sistema militar, ou seja, os militares da “velha guarda” que defendem que as guerras serão vencidas à maneira antiga – com muitos homens e poder de fogo -, Rumsfeld conseguiu levar o esboço da sua doutrina ao terreno iraquiano.

A resistência à doutrina de Rumsfeld tem surgido de alguns membros do Congresso, mas especialmente dos generais. O comandante das forças da coligação no Iraque, o general Tommy Franks, tinha deixado bem claro a Rumsfeld que era necessário uma mobilização inicial de pelo menos 250 mil homens, uma reivindicação ignorada pelo secretário da Defesa.

Num artigo pormenorizado da revista “New Yorker” é possível constatar-se a guerra de bastidores, e a fricção entre os defensores das duas visões. No Pentágono, o círculo restrito de Rumsfeld esteve praticamente incólume às influências dos conservadores militares. De acordo com um estratego militar do Pentágono à “New Yorker”, Rumsfeld foi o homem que convenceu George W. Bush a fazer este tipo de guerra.

Rumsfeld negligenciou todos os militares de alta patente do Pentágono, dando apenas voz ao clube restrito de assessores, assumindo decisões em áreas que normalmente não são da sua competência. Rumsfeld excedia diariamente as suas capacidades, relegando para segundo plano as opções dos militares do Pentágono.

“Ele (Rumsfeld) pensava que sabia mais do que os outros”, revelou à “New Yorker” o mesmo estratego. “Ele foi sempre o decisor em todas as alturas.”

Por várias vezes, as propostas apresentadas pelos especialistas militares do Pentágono foram recusadas por Rumsfeld, alegando, este, a necessidade de se reduzir o número de forças no terreno e apostar mais nas bombas inteligentes e nas unidades de operações especiais.

O momento crucial terá surgido no passado outono, segundo a “New Yorker”, quando Rumsfeld decidiu preterir do documento mais sofisticado de planeamento militar, o TPFDL (Lista das fases temporais de mobilização de forças), para o delineamento da estratégia a ser aplicada no Iraque. Para os estrategos militares, este acto foi interpretado como uma irresponsabilidade.

“Quando trabalhamos com o auxílio do TPFDL, tudo se move de uma forma ordeira”, salientou um antigo estratego. O documento em questão é, na opinião dos estrategos, uma peça fundamental para se iniciar o planeamento de uma guerra, sobre a qual “todos se treinam e planeiam”. Para um antigo estratego da Força Aérea, o TPFDL “é a forma como se conjuga um plano para aplicar no teatro” de operações.

“Quanto matamos o TPFDL, estamos a matar o planeamento militar central. A defesa não é uma empresa que pode alterar as suas estratégias de acordo com as contingências. (Devido à sua estrutura pesada) É a máquina mais ineficiente para o homem. É a sua redundância que salva vidas”, referiu um antigo oficial dos serviços secretos ao “New Yorker”, e ,como tal, não devem ser ignorados documentos que optimizem as forças armadas.


A Doutrina Rumsfeld no Iraque (tabela)

Ataques de surpresa e rápidos em território inimigo com poucos soldados, mas muito bem equipados.
Resultado: Razoável. As forças avançaram rapidamente, mas as tempestades de areias complicaram o trabalho do helicópteros. As tropas estão em perigo de ficarem sem linhas de abastecimento. A falta de apoio à eventual fadiga da 3º Infantaria poderá prolongar a batalha.

Ênfase nas bombas inteligentes e nos mísseis de precisão para fragmentar cadeia de comando e induzir à rendição os soldados iraquianos.
Resultado: Razoável. Muitos comandos e locais de controlo em Bagdad foram atingidos. Mas, a táctica de “choque e temor” não produziu rendições em massa.

Aumento da utilização de operações especiais e acções camufladas contra alvos militares específicos, por modo a enfraquecer a resistência inimiga.
Resultado: Sucesso. Até ao momento, três aeroportos foram tomados pela coligação anglo-americana, assim como muitos campos de petróleo no sul do Iraque.

Utilização de engenhos autónomos, espiões satélites e aviões de vigilância para controlar o território inimigo.
Resultado: Razoável. As imagens são claras, mas as operações estão a ficar comprometidas pela falta de apoio logístico no solo e as demoradas decisões da cadeia de comando.

Fonte: Business Week

O jogopor Francisco Moraes Sarmento

Nos dias que correm é, cada vez mais, evidente o poder proporcionado pela informação.

Este poder sempre condiciona o modo de vida das pessoas e das sociedades, de tal forma que quem não a domina ou a ela não tem acesso directo, depende de quem a gera e origina.

Por exemplo, governos que não sejam, eles próprios, fonte de informação, daquela que alimenta a comunicação social, ficam subjugados às entidades e pessoas que as divulgam. Não há mercado se não houver comunicação.

A “guerra da informação”, e os seus aspectos mais espectaculares e dramáticos, é um aspecto a que se atende cada vez mais. Outra circunstância estranha, acentuada hoje, é a confusão entre o conhecimento da informação propriamente dita e os seus meios utilizados para sua massificação e divulgação.

A antiga expressão “quarto poder” é um exemplo desta confusão, fazendo esquecer que os instrumentos, não são uma finalidade em si mesmo, nem sede de poder, mas uma imensa tuba dos diversos agentes que determinam o conhecimento da informação e que detêm, efectivamente, o governo social.

Os sons, as imagens, os comentários expõem a bondade do pensamento ao escândalo moral, fazem-nos abstrair do nosso lugar e, por fim, levados pelo espírito gregário, fazem-nos ignorar a individualidade que nos caracteriza e faz de cada um de nós, um ser vário e original.

A comunicação proporcionada pela Internet, principalmente, através do correio electrónico e de funcionalidades como os fóruns, as salas de conversa em tempo real, permite uma experiência individual desta nova relação com o mundo, na qual a posição social, o sexo, o vestuário ou o aspecto físico não importam.

As convenções sociais e a moralidade decaem, as palavras exprimem, então, a mais pura subjectividade, muitas vezes encoberta pelo anonimato. A determinante mais decisiva é de carácter ético. O espírito que assiste a cada um revela a síntese entre a verdade e a liberdade designada por educação.

Agora, o “ser genérico”, poderoso, totalitário e demagógico, oferece, a cada um de nós, a ilusão de omnipresença, uma espécie de simulacro do rei do mundo. Todos podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo. A participação nos acontecimentos, e no extremo, a intervenção em todo o real, sustentada pelas novas tecnologias, é uma farsa que a vida acaba por revelar.

Hoje, o “ser genérico” está em guerra, logo participamos, de algum modo, nesse conflito, ignorantes dos aspectos invioláveis da natureza. A banalidade e, em muitos casos, a grosseria mesmo dos que se arrogam porta-vozes do mundo intelectual dominam a linguagem e a comunicação.

E desatentos, ficamos susceptíveis a um jogo de manipulações que só não é humanamente determinado e certo, porque a sorte e o joker são invioláveis e as finalidades transcendentes às gerações dos homens.

Repensar a maioria depois da censurapor Rui Teixeira Santos

Quando a oposição apresenta uma moção de censura ao Governo quer significar que, caso tivesse condições parlamentares, a oposição desejaria o derrube do Governo.

É a censura máxima em democracia e só deve ser colocada quando a acção do executivo é de tal maneira insuportável para a oposição que justifica a sua demissão.

Mas essa não era a intenção do PS, ao apresentar a moção esta semana no Parlamento, todos percebemos. Bem pelo contrário, o PS, que se estivesse no poder faria provavelmente o mesmo que Barroso, ou seja, ficar-se-ia pela retórica e apenas disponibilizaria ajuda humanitária findo o conflito e provavelmente legitimada por um voto nas Nações Unidas, o que pretendeu foi marcar o terreno de liderança da oposição, testando nomeadamente uma solução de Frente Popular, eventualmente a construir sob a égide do sampaísmo juntando, numa coligação pré ou pós-eleitoral, eventualmente PS, PCP e BE, e que, até agora, era impensável.

O que ficou claro é que a oposição não quis ir até ao fim, pois de outro modo teria pressionado Sampaio a demitir Barroso, em face da evidente oposição entre ambos em matéria de política externa. Sampaio e o PS não quiseram transformar num conflito institucional o que era um evidente conflito de orientação política, numa matéria onde a opinião do Presidente é decisiva e se espera exista consenso nacional.

E a oposição não quis ir mais longe, nem o Presidente da República quis colocar entraves por agora à estabilidade política, já não por qualquer “diktat” de Bruxelas, como acontecia quando, a contragosto, Sampaio sustentava o governo de Guterres, mas porque os sampaístas estão convencidos que é a partir de meio do mandato que o desgaste de Barroso mais se fará sentir, e que a situação económica arrastará o governo para níveis de popularidade de tal maneira insuportáveis, que o Presidente não terá outra alternativa que não seja demitir o Governo e provocar eleições antecipadas.

E esse é, aliás, na óptica do PS, o “timing” ideal para preparar as presidenciais. Porque a esquerda sabe bem que perderá as presidenciais, se Barroso e a direita estiverem no governo quando elas se realizarem.

A esquerda espera por 2004

Por outro lado, a esquerda espera que, apesar da política a contraciclo do governo de Barroso, a partir de meados de 2004, a retoma da economia internacional poderá proporcionar condições para a retoma interna e que, portanto, nessa altura, tudo deverá fazer para assegurar o seu regresso ao poder. Porque, pensam os estrategas da esquerda, esse será o momento, e também aquele em que Barroso estará mais fragilizado, pois permite fazer coincidir a retoma económica com o regresso do PS ao Governo.

Dentro deste tacticismo político, aliás, bem ao nível do que António Guterres nos habituou, movem-se agora os interesses da esquerda. E, ninguém tenha ilusões quanto à tentação de Jorge Sampaio fazer, como o próprio Guterres fez, que foi o de trair a sua base social de apoio, na esperança da direita, que não votou nele, o apoiar depois. Sampaio, embora seja o Presidente de todos os portugueses, sabe que já não volta a votos e que a História julgará a sua coerência pela herança que deixar.

Quem conhece Sampaio sabe que ele jamais fará como Guterres, que desejou o caos para a esquerda, depois da sua saída. Sampaio tem, aliás, provas dadas, no modo como conduziu a Câmara de Lisboa e como, inclusivamente, assegurou a vitória seguinte da esquerda, com João Soares que, por conta própria, falharia para Santana Lopes a sua reeleição.
Isto quer dizer que, no momento oportuno, Jorge Sampaio não deixará de jogar de acordo com os seus princípios e o seu entendimento do interesse nacional, ou seja, não deixará de criar condições para que depois da sua saída de Belém a esquerda fique no poder. Só isso vale a pena repetir, é coerente com a sua maneira de estar na política.

Assim sendo, a oportunidade destas moções de censura deveria servir à maioria para reflectir sobre o que tem andado a fazer no Governo. Se a aplicar o seu programa ou, pelo contrário, se a cumprir a agenda do PS que, em face da situação económica, abandonou o poder, mas continua a mandar nos Ministérios principais como nas Finanças ou na Segurança Social, enquanto a crise não passa?

Reformas prometidas e não cumpridas

Porque não basta ter agido com inteligência em política externa, jogando do lado do obviamente vencedor e acautelando protagonismo para consumo interno e advertência à Espanha. Passada a crise internacional, demorada apenas, não por falta de poder de fogo da Coligação Internacional, mas porque se pretende evitar efeitos colaterais e a destruição de Bagdad, regressam os problemas nacionais, a necessidade das reformas elencadas no programa eleitoral do PSD, que o País sufragou, mas que infelizmente não vê concretizadas.

Porque não se pode esperar que na insensatez de políticas de contraciclo promovidas pelo Governo, como o aumento de impostos e a venda de activos simbólicos e estratégicos do Estado, o País se reveja, quando as despesas públicas continuaram a aumentar e a recessão económica é mais grave em Portugal que nos outros países. Porque há alternativas e elas ainda por cima estão no programa de governo do maior partido da coligação.

Um ministro que anuncia um conjunto de reformas e, seja por que razão for, não consegue fazer aprovar nenhuma, faz sucessivamente leis inconstitucionais ou vetadas pelo Presidente da República, num Estado democrático e civilizado, no mínimo demite-se.

Mas, coitado, andou o homem uma vida a querer ser ministro e vai agora demitir-se, quando está a adorar sê-lo. Bem pelo contrário, não podendo fazer o que prometeu, põe-se a inventar reformas que não constam do plano do Governo, que são mesmo contraditórias com as políticas do mesmo Governo, e ninguém lhe chama a atenção.

A aldrabice de Bagão

O caso desta semana de Bagão Félix, que mais uma vez viu chumbado o diploma do rendimento mínimo que anunciou como basilar da sua política e que não fez, mas, pelo contrário, anunciou a criminalização dos empresários e o impedimento dos gestores de empresas com dívidas à Segurança Social, medida que jamais Ferro Rodrigues proporia e que nem Lourdes Pintasilgo se lembraria, demonstra bem a nível de insensatez e incompetência a que chegou a falta de coordenação política dentro do Governo.

Estes indivíduos da esquerda católica sempre foram bem mais perigosos que os comunistas, já o sabíamos, desde o tempo dos Governos provisórios. Mas, a maioria não pode estar a querer promover o investimento e a confiança (com o plano Tavares e a dedicação de Cadilhe, Talone ou Líbano Monteiro) e a fazer aos empresários o mesmo que Pina Moura lhes fez (e que justificou uma fuga de capitais de cerca de dois mil milhões de contos de Portugal arruinando de vez a economia de Portugal).

Se, no plano externo, Durão Barroso está a demonstrar o seu profissionalismo, como aliás ficou provado no debate das moções de censura, a maioria governamental está nitidamente com um défice de coordenação política e estratégica, no plano interno, à mercê de ministros incompetentes e que se agarram aos expedientes de uma Administração Pública corrupta e incapaz, infiltrada pela esquerda, e que se aproveita das suas fraquezas e vaidades.

A maioria não pode anunciar umas reformas e depois fazer outras, como o está a fazer Bagão Félix, porque isso é uma aldrabice política. Ferreira Leite ainda teve a desculpa do Plano de Estabilidade e Crescimento. Bagão, ou é incompetente, ou é desonesto, e não percebe que um Governo de centro-direita só perde se começar a governar mais à esquerda que a própria esquerda. Porque, para isso, pensará a esquerda, antes o autêntico, porque pelo menos é coerente.

Porque não foi para isso, pensará o eleitorado de direita, que elegemos este governo. E não basta nomear uns “boys”, como fez Bagão, ou algumas figuras notáveis, como fez Tavares, para se ter uma política.

Portas na hora da verdade

A hora da verdade aproxima-se. Esta maioria tem mais um ano. E Barroso tem que estar consciente que será julgado, não pelo seu protagonismo internacional mas pelo que conseguir fazer da economia nacional e no plano interno.

Ainda por cima o melhor ministro do Governo está manietado, por inveja, culpa própria ou simplesmente interesse táctico. Mas, que o PSD tem que estar consciente desse cenário, nada impedirá, depois, Paulo Portas de se ver livre de Bagão e até do PSD, que sempre o ameaça, para fazer o acordo com o PS, evitando uma alegada Frente Popular, que se viu nas censuras ao Governo desta semana. Uma jogada política ao nível do que Portas já uma vez fez a Monteiro, sempre justificável pela chocante incoerência ideológica da actual maioria e até porque, quer se queira, quer não, o PP esteve sempre mais à vontade no governo com o PS, do que com o PSD.

Uma solução, aliás, que ainda por cima poderia resolver a questão da autonomia estratégica do CDS/PP, que passaria a ser o “partido de charneira” que os seus fundadores sempre defenderam, agora que, pela importância que Portas deu à Nova Democracia de Monteiro e pela resposta de José Luís Arnault contra a fusão dos partidos da maioria, o CDS/PP só pode esperar, no quadro da actual coligação, ver reduzir-se, qual “beijo da morte”, a sua base social de apoio.

Estamos no plano dos cenários e não da irresponsável instabilidade política, que nesta conjuntura só prejudicariam o interesse de Portugal. Mas Barroso tem que começar a desenhar já os contornos da sua defesa, consciente que, até agora, tem estado no poder, não apenas porque está legitimado pelos votos da maioria, mas porque Jorge Sampaio lhe deu e manteve a confiança política.

Um Governo de combatepor Pedro Cid

A guerra segue o seu caminho. Mediática na amplitude que os contendores entenderem conveniente.

Seguramente muito restrita na informação substantiva do ponto de vista militar. Apesar da pressão das parabólicas e da vontade dos jornalistas, nunca saberemos com exactidão, ou com absoluto rigor, o que se passa, em cada momento, no teatro da guerra.

Só conheceremos o desfecho final, quando ele ocorrer. Haverá quem possa dar mais ou menos informações de acordo com as conveniências dos beligerantes. Contudo, haverá, sempre, a face oculta da guerra.

Basta dizer que, de certa forma, os jornalistas, correspondentes de guerra ou não, correndo maiores ou menores riscos, estão sempre dependentes dos aparelhos militares. O que, como se compreende, é fortemente limitativo do ponto de vista jornalístico.

Em Portugal, a guerra inquinou o ambiente político. O PS e o PSD divergiram em pontos essenciais da política externa, fazendo tábua rasa de um consenso tão velho quanto os 29 anos que levamos de democracia. Houve uma aproximação tácita de todos os partidos de esquerda, com uma liderança difusa, mas onde o Bloco de Esquerda surge claramente como locomotiva, perante a incomodidade do sector moderado do Partido Socialista.

Este é um facto novo na política portuguesa, que já se vinha desenhando com certa nitidez, mas agora assumido plenamente por Ferro Rodrigues, para surpresa de muita gente. A questão está agora em saber como vai funcionar essa coligação de esquerda em termos de poder. Fica, de momento, por esclarecer, se esta convergência na censura ao Governo é uma mera manobra táctica do PS, ou se se insere numa estratégia de médio prazo, num empenhamento colectivo para derrubar o actual Governo, de preferência antes do termo da legislatura, contando, eventualmente, com a cumplicidade discreta do actual Presidente da República.

Cumpre reconhecer que os tempos não são fáceis para o Governo, nem para Durão Barroso e mais difíceis se tornarão se a guerra se prolongar muito para além do previsto. Há duas frentes políticas muito exigentes diria quase absorventes – a política externa e a situação interna do País. O primeiro-ministro não pode perder de vista o que se passa dentro deste pequeno rectângulo continental e das duas regiões autónomas.

Infelizmente, para Durão Barroso o seu Governo original não é um supermodelo de competências, e há ministérios onde as tensões de topo são já indisfarçáveis. O Governo deve apurar, agora, mais do que nunca, a sua sensibilidade social. O aumento de desemprego origina gastos muito vultuosos no subsídio do desemprego. Então, talvez seja justo e oportuno repensar como é que essas verbas podem ser utilizadas, não para subsidiar desempregados mas para criar mais emprego.

Apesar da rigidez da ministra das Finanças, em épocas de crise, as obras públicas são um pilar essencial, como fonte de emprego. E nessa área ainda temos muito para fazer.

Há conceitos inovadores na política do Governo, como a chamada diplomacia económica. Mas como entender que se projecte encerrar o consulado português de Porto Alegre, onde estão sediadas empresas portuguesas, e que se situa estrategicamente, de tal modo que há quem a apelide Porto Alegre a capital do Mercosul?

E o consulado português de Hong-Kong, também não tem justificação o seu encerramento. É uma visão redutora falar-se da sua proximidade com Macau – é diferente a todos os títulos, desde a génese até à sua vocação como ponto nuclear de representação dos interesses portugueses.

E já se analisaram, com rigor, os efeitos desastrosos da política junto das comunidades portuguesas que está a ser seguida pelo secretário de Estado, José Cesário, de quem aliás sou amigo e por quem tenho uma enorme consideração pessoal? Que ideia é essa de criar dois Conselhos das Comunidades – um de eleitos e outro de nomeados? E que dizer das questões relativas aos Transportes Marítimos, que tanto preocupam o Secretário de Estado, Vieira de Castro, e que revelam, porventura, má informação e deficiente coordenação?

Situações excepcionais podem justificar decisões excepcionais. É o primeiro ministro que tem a responsabilidade de fazer a avaliação das situações decorrentes da conjuntura internacional. Em todo o caso, creio poder dizer que o País precisa de um verdadeiro Governo de combate, onde a negligência e sobretudo a incompetência não possam ter lugar.

Se a guerra se prolongar e com isso for retardada a retoma da economia por que todos ansiamos, talvez se justifique a adaptação da estrutura do Governo à própria crise, com uma antecipada remodelação, avalizada por uma moção de confiança.

O primeiro-ministro precisa de ter a capacidade para recrutar três ou quatro grandes figuras da vida portuguesa, mesmo independentes, reduzir as secretarias de Estado, eliminar alguns parasitas que já se sentam à mesa do Orçamento.

A situação excepcional justificará, porventura, a indicação de um vice-primeiro-ministro político, com especial sensibilidade para as questões sociais e económicas.

Durão Barroso já enfileira nos estadistas que a democracia forjou. Muitos se admiram com a sua coragem, sentido de determinação, capacidade de decisão e de liderança. Seria injusto que fosse a guerra a derrotar os seus objectivos de implantar o novo modelo que idealizou para o País.

“Primavera” curda à espera de desabrochar

Há treze anos que os curdos iraquianos vivem uma espécie de “primavera” na sua sociedade. Depois de décadas sob o jugo de Bagdad, o “protectorado” da ONU no norte do Iraque permitiu aos curdos desenvolverem um “oásis” político, económico e social, numa região composta por regimes autoritários.

Treze anos depois da implementação de uma zona de segurança no norte do Iraque, os curdos voltam a enfrentar a potencial ira vinda de Bagdad. Hoje, os 5 milhões de curdos que habitam naquela região encontram-se literalmente entalados entre as forças de Saddam Hussein e as tropas governamentais de Ancara.

Mas, se as primeiras poderão ficar inoperativas assim que o ditador de Bagdad caia aos pés da coligação anglo-americana, já o mesmo não se poderá aplicar aos soldados turcos. Estes poderão estar na iminência de invadir o curdistão iraquiano, naquilo que poderia ser visto pela Turquia como uma forma de resolver um problema de décadas e que tem provocado ondas de terrorismo naquele país.

Aliás, tem sido esta incógnita que estará a complicar a estratégia de Washington e alimentar os piores receios dos dirigentes e populares curdos. Conscientes do perigo que correm perante os intentos de Ancara, os curdos parecem estar dispostos a defender o seu pedaço de território a todo o custo. Como escrevia há uns anos na revista “Grande Reportagem”, Peter Strandberg classificava o curdistão como a “terra da insolência”, que jamais se vergaria às vontades do Governo turco.

Foi neste espírito de resistência que em 1978 Abudllah Ocalan, um antigo estudante da Universidade de Ancara, fundou o PKK (antigo partido de inspiração marxista) para, seis anos mais tarde, iniciar uma campanha terrorista contra a Turquia. Ocalan tornou-se a partir de 1984 o inimigo público número um de Ancara, mas também o símbolo de libertação do povo curdo. Conotado como uma organização terrorista, o PKK foi estabelecendo relações com outras organizações curdas como o ARGK (Exército Popular do Curdistão), o ERNK (Frente Popular do Curdistão), entre outras.

Também no exterior o PKK foi estabelecendo ligações, nomeadamente no Médio Oriente, mais especificamente no Líbano, no vale de Beka, controlado pelo exército sírio. Finalmente, no ano passado, o PKK mudou o nome para KADEK (Congresso para a Libertação e Democracia no Curdistão), numa estratégia de reformulação do partido, depois do histórico líder Ocalan ter sido preso em 1999 no Quénia.

Na arena política, o KDP e o PUK são os partidos de maior relevo no curdistão iraquiano, tendo o primeiro vencido as eleições legislativas de 12 de Março de 1992, as primeiras depois daquele território ter adquirido autonomia face a Bagdad, com a aplicação da resolução 688 das Nações Unidas, em 1991.

Actualmente, o KDP e o PUK partilham o mesmo número de lugares no parlamento curdo e são as frentes políticas das reivindicações independentistas do curdistão iraquiano.

Há mais de meio século que os curdos do norte do Iraque se têm tentado libertar do jugo de Bagdad, no entanto, esses esforços revelaram-se sempre infrutíferos e foram muitas vezes castigados com duras represálias pelas forças de Saddam, como foi exemplo o massacre de Halajba, em 1988, no qual morreram 5 mil curdos.

Com a invasão iraquiana do Kuwait, em 1990, e a consequente guerra do Golfo, os curdos beneficiaram de uma espécie de “protectorado” das Nações Unidas, que lhes permitiu na última década desenvolver um país dentro de outro país, onde, na verdade, se distinguiu dos outros “curdistões”, por seguir uma linha democrática, com liberdade de expressão e tolerância religiosa e às minorias étnicas.

Este pequeno “oásis” começou a ser criado numa primeira fase em 1991, com a Frente Unida do Curdistão (coligação de seis partidos), e depois das eleições de 1992, nas quais o KDP de Barzani obteve 51 assentos do parlamento, contra os 49 do PUK de Talabani. Em Julho de 1992 é então formado um Governo de unidade nacional, que provocou imediatamente reuniões trimestrais dos ministros dos Negócios Estrangeiro de Damasco, de Teerão e de Ancara para “vigiar a situação no norte do Iraque”.

Pela primeira vez depois de mais de um século, os curdos administram, por um tão longo período de tempo, uma parte do seu território histórico. Na verdade, os últimos anos foram benéficos para a sociedade curda iraquiana, nos campos político, económico e cultural. “E, no conjunto, eles saem-se bem.

Esta primavera curda suscita bastantes esperanças junto dos 25 a 30 milhões de curdos que vivem dispersos na Turquia, Irão e Síria”, escrevia Kendal Nezan, Presidente do Instituto Curdo de Paris, no “Le Monde Diplomatique”, em Agosto de 2001.