2025/09/09

Tréguas a Sócrates só vão abrandar durante a presidência portuguesa

Em vez de fazer uma remodelação e afirmar a sua autoridade, Sócrates preferiu dar uma imagem de unidade do PS ontem à noite na Junqueira. Com a presidência da União Europeia à porta, o primeiro-ministro não quis correr riscos. Para já, Cavaco deu
o sinal que quer tréguas por causa da presidência e no PS também se travaram as críticas a Sócrates. Mas o desgaste vai continuar na imprensa: depois do currículo de Sócrates são os negócios do pai, os contratos dos aviões, as compras das armas, as adjudicações. Para a oposição, os seis meses de Presidência vão servir para passar para o País a imagem de que o PS é um grupo de interesses. Mendes, Santana, Portas e Cavaco Silva estão atentos. É o regresso da política, na sua forma mais básica e populista, da suspeita e da intriga.

O Partido Socialista reuniu-se ontem à noite, na Junqueira, para comemorar o 34.º aniversário da sua fundação. Dois mil militantes para apoiar José Sócrates e com Mário Soares a discursar. Depois de, nas últimas três semanas, a oposição interna ter achado que o primeiro-ministro poderia cair – o que levou à retirada estratégica de António Costa (ausente de férias agora, pois no Verão tem que estar atento aos incêndios, como ministro da Administração Interna) e às movimentações de Helena Roseta e do grupo de Manuel Alegre – é o velho patriarca, o ex-Presidente da República e fundador do PS, Mário Soares, que vem colocar uma pedra no assunto. O recuperar de Sócrates regista-se depois de ter sido controlada a contra-ofensiva dos dirigentes da Universidade Independente – que poderão aceitar a falência da UnI contra a fundação da Universidade Pedro Álvares Cabral – e de Cavaco Silva ter desvalorizado a questão e de Santana Lopes e Luís Filipe Menezes terem criticado Marques Mendes.
Mas estas tréguas, dentro e fora do PS, serão sol de pouca dura. Para a oposição, o primeiro-ministro está inevitavelmente afectado na sua credibilidade e já não tem condições para pedir rigor, disciplina e a principal exigência do seu mandato: qualificação. Basicamente, para Marques Mendes, o próprio o terá afirmado, “joga-se o tudo ou nada, ou ele ou Sócrates, um dos dois terá que cair”.

Depois da licenciatura de Sócrates
a corrupção nos contratos do Governo

Por outro lado, o desgaste vai continuar na imprensa, agora passando do carácter do primeiro-ministro a todos os actos da governação. Começa pelas suspeitas que vão ser lançadas em todos os contratos, desde a Ota até à compra de aviões para combate a incêndios – mais uma vez a israelitas – até aos fornecimentos de armas, aos airbus para a TAP, as adjudicações de empreitadas pela administração central, etc. O desgaste será durante o período da presidência sobre os ministros e os membros do Governo, devendo o primeiro-ministro ser poupado por causa da presidência da União Europeia.
Mas o cerco terá que ser feito à sua volta, podendo os negócios do pai e de outros amigos aparecerem metódica e organizadamente na imprensa para desgastar, todos os meses, durante os próximos tempos, o Governo socialista.
Basicamente, o que estrategicamente Marques Mendes pretende, como aliás disse o seu número dois, Azevedo Soares, é desgastar a imagem do primeiro-ministro e do seu Governo, para tornar inevitável a perda da maioria absoluta do PS em 2009, com Sócrates ou sem ele.
Note-se que actualmente se admite, mesmo no PSD, o cenário de Sócrates poder abandonar, como Guterres o fez, a liderança do PS, depois da presidência portuguesa da União Europeia, podendo suceder-lhe António Vitorino – que tem a confiança de Bruxelas e que poderá refazer, através de Francisco Pinto Balsemão e Durão Barroso, a sua relação com os EUA – ou António Costa, um homem bem visto pelos meios judaicos. Mas claramente o Aparelho guterrista (leia-se Coelho e Vitorino) poderá sempre jogar o nome de António José Seguro, cujas ligações internacionais apesar de tudo a Bruxelas e aos meios da “intelligence” americana e espanhola estão por se fazer. Neste particular, a ascensão de Pina Moura na Prisa/Média Capital poderá dar ao antigo controleiro do PCP uma relevância no jogo de cadeiras pós-Sócrates.
Mas, para já, José Sócrates conseguiu travar a ofensiva contra a sua pessoa, pensada, segundo os meios próximos do primeiro-ministro, por meios santanistas, há vários meses, e sobre a qual Marques Mendes foi obrigado a cavalgar, para evitar Santana Lopes, que, finalmente, apareceu, no fim, a tirar-lhe o tapete e a apoiar o primeiro-ministro, obviamente, depois do desgaste feito.
O PS reagiu a tempo colocando gente sampaísta na UnI para gerir os estragos, tendo a gestão das ameaças ao governo acabando por funcionar a favor do primeiro-ministro, numa manobra de propaganda genial – “notícias bombásticas”, anunciava-se no início da semana – que acabariam por transformar José Sócrates – como aliás antes aconteceu com Sá Carneiro – em vítima.
No caso, a vitimização do primeiro-ministro e a teoria da cabala do PSD acabaram por travar as garras que lhe foram deitadas dentro do próprio PS. Ao ver os “timings” a anteciparem-se, Belém dá dois sinais nas duas últimas semanas.
Por um lado, o Presidente da República desvaloriza o assunto em face dos problemas do País e, por outro, Cavaco Silva nos bastidores vai denunciando o desconforto da situação económica nacional.

Belém contra Constâncio

Belém atira directamente ao governador do Banco de Portugal e ao irresponsável relatório de Primavera de Vítor Constâncio, onde anuncia o fim da crise. Para Cavaco os problemas estão todos aí e a correcção do défice deve-se apenas a receitas extraordinárias e ao crescimento económico induzido pela Europa, que está a crescer muito mais. Nada mudou em Portugal e está tudo por fazer. O perfil da economia tem que mudar e obviamente é isso que explica que, nos últimos três anos, o investimento tenha caído 15%.
Cavaco Silva não está contente com os resultados. Mas publicamente não quer incómodos durante a presidência portuguesa da União Europeia. E depois tem toda a consciência que será ele a alternativa ao primeiro-ministro. Ou seja, se hoje Cavaco Silva se candidatasse ao PSD ou alguém evocando o seu beneplácito, era certo que seria derrotado. Mas Cavaco sabe que o dia em que criticar publicamente José Sócrates, obtém automaticamente a rendição do PSD e colocará à frente do partido quem quiser – desde Ferreira Leite a Paula Teixeira da Cruz.
É esta agenda que os santanistas e Marques Mendes temem e de alguma maneira a agitação e o desgaste do primeiro-ministro têm a ver com a necessidade de neutralizar o Presidente da República.
Corrigindo a “doutrina Joaquim Aguiar” da Cooperação Estratégica, o Presidente da República veio, esta semana, esclarecer, no sítio da Presidência (ver abertura da Política) os limites dessa actuação.
É um sinal de que está atento às movimentações santanistas e aos desajustes no PS.
Ataques ao primeiro-ministro e sistemáticas suspeitas de corrupção ou de nepotismo em negócios públicos vão colocar S. Bento e os socialistas sobre pressão nos próximos tempos. Ainda por cima, o impulso reformista que Cavaco Silva – com base nos poderes implícitos positivos – exige, cria inimigos na sociedade civil e nos funcionários públicos. A CGTP e o PCP tem uma greve geral marcada para 30 de Maio, o que vai desgastar ainda mais o já fragilizado Governo.
Do lado de José Sócrates, o momento é vital. O primeiro-ministro ainda por cima não tem tempo para parar e pensar. Parte hoje para o “Governo Presente” no Porto e a partir da próxima semana tem a agenda carregada com responsabilidades internacionais decorrentes da próxima presidência portuguesa da União Europeia.
Mas, no seu núcleo, a consciência que o desgaste vai continuar e que tem em vista debilitar a maioria obriga a um tocar a reunir nas hostes socialistas. Os próprios dirigentes máximos do PS puderam testemunhar que o PS estava envergonhado com as questões levantadas e a discussão sobre o carácter do primeiro-ministro. Só que o PS começa a perceber que a substituição de Sócrates pode significar o fim da maioria absoluta com Cavaco Silva em Belém, tal como aconteceu quando Barroso foi substituído por Santana Lopes.
Para já todos recuaram, a começar pelos próprios sampaístas, que já imaginavam Costa como primeiro-ministro. O primeiro passo foi na Independente.

Independente: UnI nega irregularidades
no caso Sócrates, mas não há registos

Nesse contexto, o presidente da empresa que gere a Universidade Independente (UnI) assegurou esta semana não ter detectado irregularidades no processo académico de José Sócrates, apesar de não existirem quaisquer elementos de avaliação, à excepção da prova de Inglês.
Na conferência de imprensa realizada a meio da semana, Lúcio Pimentel, o ferrista presidente da SIDES, afirmou que foi concluído o processo interno de averiguações à licenciatura do actual primeiro-ministro, mas não conseguiu explicar as incongruências divulgadas relativamente ao diploma de José Sócrates.
Relativamente à avaliação, o responsável afirmou que o dossier individual do ex-aluno integra cinco pautas, quatro das quais assinadas pelo professor António José Morais e datadas de 8 de Agosto de 1996 e uma, referente à disciplina de Inglês Técnico, assinada por Luís Arouca e sem qualquer data.
Segundo o responsável, Sócrates fez também uma prova oral a esta disciplina, além do trabalho já divulgado, mas não há qualquer registo relativo a esse elemento de avaliação.
“Os elementos de avaliação dos alunos não constam, nem podem constar do processo individual [dos estudantes], mas de um arquivo morto que, por regra, é destruído ao fim de cinco anos. Por erro, a prova de Inglês Técnico foi parar ao processo individual [de José Sócrates]”, explicou Nuno Tavares, vogal da direcção da SIDES.
Já no que diz respeito ao processo de equivalências, os responsáveis da instituição asseguraram que este “decorreu segundo os procedimentos em uso na Universidade Independente”, tendo o plano sido proposto pelo director do curso de Engenharia Civil e aprovado pela reitoria.
No entanto, o único elemento relativo a este processo que consta nos arquivos da UnI é o papel assinado por Luís Arouca, no qual estão referidas as cinco cadeiras que Sócrates teria que realizar para completar a licenciatura, não existindo qualquer registo do documento elaborado pelo director do curso.
Acresce que Luís Arouca não era reitor em 1995, quando enviou a Sócrates o papel com as cadeiras que tinha de fazer, como o próprio presidente da SIDES confirmou.
“De direito, à data, Luís Arouca não era reitor, mas não sabemos se houve algum procedimento de delegação de competências”, afirmou Lúcio Pimentel.
De acordo com o responsável da empresa, a universidade também não dispõe de livros de termos referentes àquele período, documentos obrigatórios por lei e relativos às disciplinas, onde estão especificados os nomes dos professores, os conteúdos curriculares e os elementos de avaliação.
“Em relação aos livros de termos, não os temos porque naquele período não existiam”, afirmou, acrescentando que a instituição também não tem registo informático do pagamento das propinas por parte de Sócrates.
No encontro com os jornalistas, os elementos da SIDES asseguraram que a conclusão da licenciatura do actual primeiro-ministro foi a 8 de Setembro de 1996, desvalorizando o facto de essa data corresponder a um domingo.
“É costume vir-se aqui trabalhar ao domingo. Não vejo que por aí possa haver alguma coisa que torne sofismável esta situação”, adiantou Nuno Tavares.
Quanto ao certificado enviado em 2000 para a Câmara da Covilhã, no qual se refere 8 de Agosto de 1996 como a data de conclusão da licenciatura, os responsáveis garantiram não existir na universidade qualquer registo desse documento, embora o próprio Luís Arouca já tenha revelado que de facto o tinha enviado à Câmara Municipal da Covilhã em 1999, a pedido dos interessados, e Sócrates seria alheio ao erro da data, admitindo tratar-se apenas de um erro de secretaria, mas sublinha que apresentará uma queixa nas autoridades, caso sejam encontrados indícios que apontem para uma falsificação.

Sócrates com agenda europeia

Para José Sócrates os trabalhos não acabaram. As sondagens ainda não o penalizam, mas a sua autoridade e credibilidade estão em causa. Se fosse Salazar provavelmente já tinha feito uma remodelação e calado de vez os críticos internos. Poderia dar um sinal correndo com os ministros polémicos e mais desgastados ou, num acto de autoridade política, correndo mesmo com António Costa, cuja presença no executivo faz lembrar o Chanceler Brown em Londres, todos os dias a lembrar à opinião pública que se pode ser diferente no Governo. Foi esse o jogo de Botelho Moniz, quando ensaiou o golpe contra Salazar, e no dia seguinte estava demitido. Nunca mais foi ninguém no País ou nas Forças Armadas.
Mas ontem no PS, esse cenário era totalmente afastado. Sócrates preferiu dar para fora uma imagem de unidade em torno do Governo e da sua agenda reformista. Um dirigente do PS garantiu mesmo ao SEMANÁRIO que o cenário de uma remodelação antes da presidência europeia está totalmente afastado.
O caminho é estreito. Ao não remodelar, Sócrates já está a escolher os alvos dos ataques da oposição nos próximos seis meses. Um período muito longo em que o primeiro-ministro, ocupado com a agenda internacional e fragilizado com a polémica à volta do seu currículo académico, não poderá vir em socorro de ninguém.
As apostas estão abertas, como queria Marques Mendes: como chegará o Governo socialista ao fim da presidência portuguesa da União Europeia?

A incerteza do dogma

Ao colocar em cena no Teatro Maria Matos a peça “Dúvida”, do reputado autor e vencedor de um pulitzer, John Patrick Shanley, Diogo Infante – que interpreta um padre acusado de um crime sexual – mostra-nos por que é considerado um dos maiores actores da sua geração, revelando uma vez mais o seu enorme talento ao lado da sempre enigmática Eunice Muñoz.

Toda a nossa vida somos colocados perante situações difíceis, em que a imperatividade das nossas escolhas impõe-se de forma determinante quando precisamos de decidir algo que pode condicionar a nossa vida, ou mesmo a de outra pessoa. É, nesse momento, entre o dilema e a necessidade de agir, que surge a dúvida. Possivelmente, trata-se de uma das mais importantes características que temos enquanto seres humanos. A capacidade de questionar aquilo que nos é vinculado, mas sobretudo de questionarmos-nos a nós próprios, sem que percamos o sentido de justiça.
Esta problemática é colocada em evidência em “Dúvida”, de John Patrick Stanley, em cena no Teatro Maria Matos, com encenação de Ana Luísa Guimarães. A peça conta com um elenco de peso composto por Diogo Infante, Eunice Muñoz, Isabel Abreu e Lucília Raimundo.
A dúvida de que se fala nesta peça prende-se sob a suspeita que recai sobre um padre progressista, de um colégio católico do Bronx dos anos sessenta, acusado de um alegado abuso sexual sobre uma criança negra.
A década aqui retratada representa uma América que perdeu o seu idealismo e a sua inocência. Com a morte de John F. Kennedy instalou-se na sociedade norte-americana uma desconfiança e um desencanto próprios de quem perdera a capacidade de acreditar. John Shanley escreveu esta peça em 2004, numa altura em que a América se encontrava dilacerada pelo ataque às torres gémeas, o que reavivou toda essa descrença que outrora teria sido apanágio de uma sociedade ainda a definir a base da sua cultura com base nos direitos civis. Ana Luísa Rodrigues descreve justamente esta tendência maniqueísta quando fala da peça. “Actualmente, as pessoas estão um pouco como nos anos 60. Temos uma certa tendência para ver tudo a preto e branco. A peça lança um apelo para que nos possamos ouvir novamente. Trata-se de uma questão muito contemporânea, que podemos comparar ao 11 de Setembro de 2001”, diz a encenadora.
Esta necessidade de acreditar está espelhada na personagem do padre, interpretada por Diogo Infante. As suas palestras e liturgias enquanto professor e padre surgem como uma resposta à necessidade extrema de orientação. Trata-se de apontar diversos caminhos, sem que haja paternalismos nem condicionalismos nessa escolha, uma função que cada vez mais se encontra em falta no sacerdócio. A determinada altura o padre diz mesmo: “Não há que ter medo da dúvida. Ela existe e une-nos na incerteza.” Esta sua ambiguidade é um dos pontos-chave da peça. Será que ele cometeu o crime? Diogo Infante, ao construir essa personagem, teve o cuidado de não evidenciar qualquer culpa: “Achei que ele tinha de ter uma luz e um brilho próprio. Na minha percepção eu construi a personagem acreditando na sua inocência, embora prefira não revelar o que eu julgo ser a estória desta personagem. Curiosamente é muito mais fácil representar a culpa. Se enveredasse por esse caminho estava sempre a dar sinais nesse sentido, o que acabava por dar uma enfâse totalmente oposta ao que realmente importa evidenciar.”
Eunice Muñoz encarnou a personagem da Madre Superiora que serve de plataforma para esta acusação, num claro confronto entre duas forças opostas, uma parábola entre o progressismo e o conservadorismo, um conflito que define em muito os Estados Unidos da América, onde a esquerda e a direita têm uma importância relativa quando comparadas com a Velha Europa.
Os anos sessenta e o local escolhido são autobiográficos. John Patrick Shanley foi educado num colégio do Bronx gerido pelas “Irmãs da Caridade”. “(..) os velhos hábitos ainda dominavam os comportamentos, a forma de vestir, a moral, a maneira de olhar o mundo (..)”, diz Shanley, ao descrever esta época.
No entanto, mais uma vez a ambiguidade acaba por ser uma força motriz pela forma como é colocada pela Madre. Ela põe em dúvida o comportamento do padre, querendo ir mais além, não se rendendo perante o que parece ser evidente. Contudo, a forma como lança a dúvida acaba feita de forma perigosa, incorrendo no boato. Diogo Infante diz isso mesmo: “Ela levanta uma suspeita que não consegue provar, além dela própria. Hoje em dia há uma tendência para uma condenação pública, muitas vezes até pela própria imprensa e opinião pública. A dúvida nesse aspecto é terrível.”
A personagem da irmã James, interpretada por Isabel Abreu, funciona como paradigma de uma humanidade confusa, que quer acreditar na inocência, não só pelo padre, mas por toda uma crença epistemológica que pode desabar caso este abominável crime seja verdadeiro. Mas, acima de tudo, ela quer poder duvidar, formando o seu racocínio sem que para isso sirva os interesses da Madre Superiora.
A mãe do rapaz acaba por estar demasiado condicionada por uma cultura castradora em que o sucesso dos afro-americanos está a ser construído de forma muito discreta e delicada, nem que tenha de fechar os olhos perante o que apenas iria trazer sofrimento, caso fosse provado. A linguagem corporal evidenciada por Lucília Raimundo na sua única cena com a Madre Superiora revela muitas dessas amarras segregacionistas dos anos sessenta.
A peça ensina-nos que é importante duvidar e sentir que essa incerteza é natural e condição sine qua non para que nos possamos definir como membros responsáveis de uma socidedade. Mas também lança a pergunta: até onde podemos ir quando temos uma dúvida?|

Papa não vem a Portugal como retaliação contra o Governo socialista

Vaticano recusa “aproveitamento” de Sócrates depois
das questões do Protocolo e do referendo ao aborto. Vital Moreira devia demitir-se.

É a primeira derrota política do primeiro-ministro em dois anos. O Papa recusa-se a vir a Portugal. Não quer dar ao primeiro-ministro a possibilidade deste se aproveitar politicamente da visita, depois de ter humilhado a Igreja Católica com a questão do protocolo de Estado, de ter mandado retirar os crucifixos das Escolas e sobretudo de ter mandado fazer um referendo sobre um aborto, onde provavelmente ganhará a abstenção, pois que a agenda político-social do Governo está divorciada dos interesses do País. Surpreendentemente, depois de ter apoiado sempre o poder político em Lisboa, desde a Primeira República, com excepção do anacronismo da guerra colonial, a Igreja Católica e o Vaticano põem-se de fora e excluem relações com Sócrates. Percebendo a gravidade das consequências, o primeiro-ministro já recuou no aborto. Mas, o primeiro-ministro vai ter que mexer ainda na Comissão das Comemorações do Centésimo Aniversário da República. Vital Moreira deveria apresentar a demissão, depois do embaraço causado à diplomacia e ao Governo de Portugal.
O Papa Bento XVI não vem este ano a Portugal. É com a maior clareza e toda a violência diplomática que o Vaticano responde ao convite do primeiro-ministro para que o Papa Bento XVI visite oficialmente Portugal, no âmbito das comemorações dos 90 anos das aparições de Fátima e para a inauguração da nova Basílica da Santíssima Trindade. Ao contrário de António Guterres, depois dos lamentáveis episódios com o protocolo de Estado e com o referendo sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, José Sócrates não vai contar com o apoio da Igreja Católica, em Portugal ou no Mundo.
José Sócrates tentou ainda na última semana controlar os estragos. Pediu aos socialistas para que não ataquem os portugueses que apoiem o não no referendo ao aborto de 11 de Fevereiro. Foi um recuo, depois de perceber que a Igreja se movimentou e mobilizou para provar que o aborto não pode ser um método contraceptivo e que o Estado não deve usar o dinheiro dos contribuintes para pagar abortos voluntários, preterindo os restantes casos do Serviço Nacional de Saúde.

Uma questão fracturante

Foi artilharia pesada. No início, quer os partidos da direita, quer mesmo a Igreja Católica, tinham dado sinais claros que a questão do aborto era uma questão que não era fracturante na sociedade portuguesa, e que por isso a Igreja não se envolveria. Não é uma questão religiosa. É uma questão moral e do foro da consciência dos cidadãos.
Estava, desse modo, dado o mote para que o assunto, de menor relevância política para os portugueses, pudesse passar ao lado de debate partidário.
Mas empurrado pela esquerda do PS, o primeiro-ministro viu no Referendo ao Aborto uma oportunidade para esmagar a direita e humilhar a Igreja Católica, anunciando a sua entrada na campanha para o referendo e sobretudo acentuando a fractura política.
O primeiro-ministro e o ministro da Presidência não avaliaram que estavam a cometer o maior erro político do executivo socialista desde a sua posse. Imediatamente esta posição gerou a reacção do Patriarcado e dos partidos da direita, apesar da incapacidade de Marques Mendes para gerir a situação no PSD.
A questão passava a ser política, como Sócrates queria, e a Igreja Católica anunciava então que se iria envolver profundamente também na questão.

Sócrates quis recuar no conflito com a Igreja

Ao ver o enorme estrago feito, o primeiro-ministro quis imediatamente recuar, anunciando que respeitará o resultado do referendo, mesmo que ele não seja válido juridicamente: ou seja, mesmo que a abstenção condene o referendo (só vale se votarem mais de 50% dos eleitores), se o não ganhar, a lei ficará como está, não sendo alargado por mais duas semanas a possibilidade de aborto voluntário.
Depois disso, José Sócrates dá sinais de não querer discutir a questão e passar ao lado dela. A semana passada deu mais um passo, ao exigir tolerância ao PS em face do Não ao Aborto.
Mas, tudo jogado, o primeiro-ministro chegou tarde. Porque a questão religiosa que Sócrates sem querer acabou por protagonizar, às mãos dos jacobinos ex-comunistas e anticlericais, que estão próximos do seu Governo, acabou por ter resultados.
De longe toda a questão religiosa está a ser pilotada de Coimbra por Vital Moreira, que tem os seus agentes no Governo e junto à maioria socialista.
É uma desforra para se fazer desde o Verão Quente, quando a esquerda portuguesa inteligentemente evitou repetir os erros da Primeira República, nomeadamente evitando a questão religiosa. E Sócrates não percebeu que essa deriva anticlerical em Portugal não teria o preço da espanhola, com o aborto, os casamentos homossexuais e o protocolo. Porque, ao contrário, em Portugal o peso da Igreja é ainda bastante significativo e, sobretudo, a Igreja Católica de Portugal nunca esteve colada ao regime e ao Estado quanto a espanhola, sabendo manter a sua autonomia e a sua identidade, mesmo nos piores momentos de deriva anticlerical. E, sobretudo, porque aqui, a Igreja está disponível para pagar pela mesma moeda ao poder político, sabendo que Cavaco Silva nunca permitirá “os disparates” de Jorge Sampaio.
Depois da humilhação da posição da Igreja Católica no protocolo de Estado, que o primeiro-ministro José Sócrates acabou por permitir, numa cruzada feita pelos anticatólicos do PS, comandados de fora por Vital Moreira, que o próprio Governo socialista nomeou para organizar as comemorações do centenário da República -momento sensível relativamente ao sentimento católico dos portugueses e que o Governo socialista poderá ter deixado nas mãos de um indivíduo que tem dado mostras de querer perseguir a Igreja portuguesa, abrindo as feridas da Primeira República, que ninguém quis levantar nos últimos trinta anos de Terceira República -, a questão dos crucifixos, levantada pelo mesmo Vital Moreira, viria a ter o apoio do Governo socialista e finalmente o aproveitamento do referendo ao aborto, como questão fracturante entre a sociedade civil e a Igreja e entre a direita e a esquerda na cena política portuguesa, desagradaram profundamente ao Vaticano, sobretudo, vindo de um Estado que, apesar de laico, nunca deixou na alma popular de considerar, tal qual o fez pela primeira vez, D. João V, Nossa Senhora como Rainha de Portugal.

Um sinal do Vaticano

Ora é exactamente este sinal claro que o Vaticano quer dar a José Sócrates. O Papa Bento XVI recusou, diplomaticamente, por questões de agenda, o convite para visitar Fátima em Outubro, por ocasião da inauguração da Igreja da Santíssima Trindade.
De acordo com a Conferência Episcopal Portuguesa, que na terça-feira fez o anúncio, o Santo Padre não virá a Fátima durante o ano de 2007 para presidir à inauguração da nova basílica de Fátima. Até Outubro, data prevista para a cerimónia de abertura da Igreja da Santíssima Trindade, o Papa Bento XVI deverá nomear um cardeal para o representar em Fátima. O escolhido presidirá às cerimónias de encerramento dos 90 anos das Aparições, na Peregrinação Internacional Aniversária do 13 de Outubro, e à inauguração da Igreja da Santíssima Trindade.
Para evitar agravar na opinião pública o conflito, a Conferência Episcopal deu algum espaço de manobra ao Governo socialista. Segundo ela, a ausência de Bento XVI durante o decorrer de 2007 já estava, de alguma forma, prevista, face à demora no processo de canonização dos Pastorinhos. O objectivo dos responsáveis do Santuário de Fátima seria juntar a inauguração da nova basílica com a canonização de Francisco e Jacinta.
Em 2006, por ocasião das comemorações dos 90 anos das Aparições, o presidente da CEP e o bispo de Leiria-Fátima pediram uma audiência ao Papa para fazer o convite, mas nem sequer esse pedido foi atendido pela Santa Sé. Segundo a Conferência Episcopal Portuguesa, Bento XVI gostaria de vir a Fátima, mas não era possível no ano de 2007.
D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, optou por não tecer qualquer comentário sobre o assunto, apesar da diplomacia querer contornar a questão central da ofensiva anticatólica da maioria socialista.

A primeira derrota de Sócrates

José Sócrates tinha programado, tendo em vista a repetição da maioria absoluta em 2009, todo um conjunto de iniciativas internacionais que o apresentariam à opinião pública como um estadista de primeiro plano. A visita à China, já no fim do mês de Janeiro, seria o primeiro passo para a preparação da Presidência Portuguesa da União Europeia, o que, conjugado com a visita de Cavaco Silva à Índia, resultaria numa ofensiva na Ásia, que poderia trazer benefícios também económicos para Portugal. Depois a própria presidência da UE e a tentativa de trazer em 2002 a conferência da NATO para Lisboa. A visita do Papa a Lisboa e a Fátima seria consagração final, a cereja sobre o bolo, para que José Sócrates tivesse o tapete de honra para a maioria absoluta.
Mas, pela primeira vez em dois anos, o Governo socialista falhou. É a primeira derrota política de José Sócrates. Culpado por não ter conseguido travar a ofensiva anticlerical dos ex-comunistas, Sócrates sofre o primeiro revés. O Papa não vem a Portugal, não por nenhuma questão de agenda, como diplomaticamente se fez constar, mas porque não quer emprestar o seu prestígio a um primeiro-ministro que permitiu a afronta do Protocolo, que defende o aborto e mandou retirar das escolas o símbolos da fé católica. É a primeira derrota política de José Sócrates. A segunda poderá ser no próximo dia 11 de Fevereiro, com a derrota do “sim” no referendo ao aborto.
José Sócrates só pode estar preocupado. E os sinais começam a ser evidentes, sobretudo no recuo na questão do aborto. Sócrates percebeu já tarde o embaraço, mas dá sinais que quer recuperar o tempo perdido, sobretudo porque a ruptura com a Igreja pode ser também fracturante em matéria de Regime. E o passo seguinte poderia passar, aliás, pelo próprio distanciamento do Governo em face de Vital Moreira, visto nos meios católicos como o instigador da luta anticatólica do Governo Sócrates. A sua demissão da Comissão para as Comemorações do Centenário da República poderia ser mais um sinal do primeiro-ministro, no sentido de amenizar a má disposição da Igreja e do Vaticano.

A República em crise

Perseguição de banqueiros e empresários, um milhão de processos do Fisco, desordem na magistratura, insubordinação de polícias, ameaças de militares – a Terceira República está em crise. Será a restauração da monarquia a solução? Ou ainda se vai passar por muscular a democracia com o reforço dos poderes presidenciais do Presidente da República? Toda
a história de uma “conspiração em marcha”…

A República, aparentemente, não consegue responder às necessidades dos cidadãos. O próprio Estado tornou-se a maior ameaça aos direitos do homem. A perversão da justiça e do Processo Penal resulta no linchamento popular e mediático dos arguidos, antes mesmo da formulação da culpa. Processos de escândalo nacional resultam na inexistência de penas. Antes mesmo de alguém ter sido condenado por corrupção desportiva, já o PSD está a pedir o aumento das penas. O Estado levantou nos últimos meses uns milhões de processos fiscais, ou seja, cerca de 20% da população activa está a contas com a justiça. A denúncia e a chantagem são armas de arremesso na vida privada, nas empresas, na Administração Pública e no futebol. Os maiores bancos são objectos de busca sem mandatos. As principais empresas de construção civil são vasculhadas à procura de corruptos. Até os Cafés Delta (Nabeiro) de Campo Maior. Bate-se à direita e à esquerda. Para todos, a República não serve.
A República deixou de servir a classe dirigente e dominante, tornou-se a maior inimiga das classes empresariais e, sobretudo, da classe média, que ainda pode pagar impostos e sobretudo que legitimou desde a primeira hora o Golpe de Estado do 25 de Abril.
A República passou a ser perversa, com os poderes excepcionais de investigação das polícias sem controlo, dos magistrados sem responsabilidade e dos juízes, a quem não são imputadas as más sentenças.
Por outro lado, as reformas em nome das Finanças Públicas ameaçam direitos adquiridos, ameaçam funcionários públicos, polícias e militares, que protestam, ameaçam mesmo o poder instituído, a classe política desacreditada pelo processo Casa Pia e pelos comportamentos populistas dos últimos Governos. Pior, depois de um Cavaco Silva distante que marca um referendo (sobre a IVG) com a solenidade de um acto constitucional decisivo e “que apenas fala de números”, o País tem pela frente a possibilidade de vir a escolher para futuro Presidente da República Durão Barroso, Marcelo ou Santana.
Chegando aqui, a República deixou de fazer sentido. Depois de Cavaco Silva a fazer de monarca constitucional, servindo menos de moderador e mais de agente de estabilidade, só falava termos Santana, Marcelo ou Durão como presidentes, como se prefigura! – dirão os detractores da Terceira República. Esta passou a ser o problema, em vez da solução.

Até que alguém diga: Basta!

Políticos desacreditados, funcionários ofendidos, polícias e militares descontentes, empresários e banqueiros perseguidos, Ministério Público em roda livre e Fisco ao serviço do poder discricionário (não há justiça quando há um milhão de processos), a Terceira República falhou. Até a ficção dos reguladores passou a ser do domínio do discricionário, do arbitrário, como se vê pelas decisões da Autoridade da Concorrência. Não há leis claras, reina a burocracia e a corrupção!
E, parece não haver espaço para recuo: mesmo que ninguém seja condenado no caso Casa Pia, é evidente que a política ficou desacreditada. Mesmo que o Governo conseguisse refazer a confiança na Economia com medidas acertadas, o primeiro-ministro José Sócrates nunca terá poder para levar o Presidente da República a fazer uma generalizada amnistia para acabar com a perseguição “pidesca” do Estado contra os empresários, ou do Estado contra o futebol, num espectáculo miserável que diverte os medias. Pelo contrário. As respostas são no sentido da censura prévia à comunicação social – como pretende o projecto lei do Governo, em vez da regulação inteligente que garanta o direito ao bom nome das pessoas e a liberdade de expressão. Pelo contrário, o que António Costa fez quando foi ministro da Justiça de António Guterres foi consagrar poderes no Ministério Público – e, agora, tenta o mesmo nas polícias -, que conduziram a perversões como as escutas telefónicas – mais de 14 mil horas no caso da Casa Pia, ou as escutas em nome de denúncias anónimas (das quais cerca de 80%, alegadamente, teriam origem nas próprias polícias ou no Ministério Público, como tem denunciado Garcia Pereira), provocando a devassa e a violação dos direitos mais elementares dos cidadãos. Até Jorge Coelho viu a sua casa violada pela polícia, sem que depois disso ninguém tenha sido responsabilizado. (Aliás, as polícias podem hoje entrar na casa de suspeitos à noite, coisa que nem a PIDE do Estado Novo poderia fazer!)
A República que, com a adesão à União Europeia, quis resolver o problema de desenvolvimento e do crescimento económicos, que, com a nova Constituição, alargou os direitos e as garantias dos cidadãos, nos últimos dez anos, destruiu todo o acervo democrático da República e entrou em crise: a crise republicana está evidente na falta de respeito pelos cidadãos e seus direitos constitucionalmente consagrados, na criminalização de milhares de comportamentos – que, aliás, deviam ser apenas eticamente condenáveis -, nas perseguições policiais do Estado, do ambiente generalizado de abusos de poder por parte dos magistrados e dos juízes – que detêm cidadãos só para prestarem declarações e que ainda por cima permitem que se avisem as televisões, como aconteceu no caso “Portucale” a Luís Nobre Guedes, caso que meses depois foi arquivado, sem que ninguém fosse responsabilizado, ou no caso do Apito Dourado, onde parece óbvio que se pretende apurar tudo menos fazer justiça.
Explorando a inveja, a denúncia e o “voyeurismo” nacionais, o populismo dos últimos Governos e a acção do investimento espanhol em Portugal acabaram por criar nos media e na população o espaço vital para a crise desta República, mas também da própria Nação. Uma crise social que se transforma em crise política de identidade, porque desapareceram os elementos simbólicos aglutinadores e a consciência de uma história comum – afinal, a razão que provoca o desânimo dos portugueses e que nos faz capitular perante Espanha. A Terceira República está em crise… E o ambiente começa a ser propício para que alguém diga: “Basta!” Basta desta República…

O problema é político

A República não tem como se defender, aparentemente: mesmo com o ministro das Finanças a anunciar redução de impostos para 2009, mesmo com a API a fechar mais de três mil milhões de euros em novo investimento, o certo é que o País continua a divergir da média europeia e que Portugal é o maior perdedor do alargamento da União Europeia e não tem conseguido resistir à deslocalização das indústrias e do capital.
Tudo ingredientes que estiveram presentes no final da Monarquia: o musculamento da democracia, na altura com a ditadura de João Franco, a crise financeira, com o País endividado e com os empresários cercados pelo Estado. Por isso a burguesia, os empresários, mas também os conservadores e os progressistas todos estiveram de acordo em derrubar, finalmente, a Monarquia Constitucional.
Agora, é a vez da República aparecer aos olhos dos cidadãos, das elites, dos empresários dos professores, dos militares, dos cultos e dos caciques provinciais, como razão de todos os males, como sistema desacreditado, com políticos menores e sem sentido de responsabilidade.
A última das proclamações seria mesmo Manuel Alegre, quando apresentou a biografia sobre D. Duarte Pio e a Democracia editado pela Bertrand, a fazê-la: já é tempo do País se pronunciar no referendo sobre a forma de Governo: República ou Monarquia!
Uma biografia séria, muito séria mesmo, em que metade do livro é a apresentação de documentos autênticos, que prova a legitimidade do duque de Bragança, como pretendente ao trono do Reino de Portugal, ele, cujos pais reconciliaram os dois ramos dos Bragança (miguelistas e liberais) e que, com o casamento com D.ª Isabel de Herédia, se reconciliou também com a aristocracia golpista.

Provocação ou golpe?

Não há mais espaço para haver golpes de Estado e muito menos revoluções. Aliás, a passagem da República à Monarquia, tal como aconteceu em Espanha depois de Franco, a acontecer em Portugal depois de Cavaco Silva, nunca seria uma revolução, no sentido marxista do termo, porquanto num e noutro regime sempre se está perante o mesmo grupo dominante e a mesma classe social dirigente.
Subitamente, o País parece incomodado e já não é só com a agenda reformista de José Sócrates. Parece que, aproveitando o vazio da transição de poderes na Procuradoria-Geral da República e à margem do novo procurador-geral, uma agenda secreta se colocou em marcha para atacar todos os poderes fácticos, todos os empresários e a elite dirigente, da banca aos cafés, da construção aos restaurantes, do têxtil e ao calçado, a grandes e pequenos, para que todos possam dizer a uma só voz: Basta! A República deixou de servir os cidadãos e passou a perseguir.
A República deixou de ser o governo dos cidadãos e da participação para ser o Regime da discricionaridade, da falta de transparência e da perseguição que destrói a economia e a vontade de ser uma nação.
Ainda por cima, os próximos anos serão difíceis: a discussão do aprofundamento da União Europeia obriga, naturalmente, ao reforço dos elementos simbólicos na Nação. E, nesse particular, a República não tem dado os melhores exemplos e a própria intervenção da mulher do Presidente da República – numa entrevista à “Visão” – contra a direita e o centro-direita que elegeu o seu marido – parece não ter ajudado.
Para a História fica como relevante que entre a República e o Conselho de D. Duarte há uma figura tutelar, uma espécie de condestável: Rocha Vieira, o homem forte da candidatura de Cavaco Silva a Belém e cujo depoimento na biografia de D. Duarte é da maior relevância.
Para a História ficará que tudo se passa na semana em que os coronéis disseram basta, mesmo nos “Prós e Contra”, da RTP, na mesma altura em que “militarmente”, na Procuradoria, os processos parecem atingir alvos poderosos, a margem do poder republicano que nomeou Pinto Monteiro.
Haverá um planeamento por detrás disto? – A pergunta faz sentido, dada a qualidade da rápida desmontagem da República, dado o acelerado descrédito das instituições e, sobretudo, do cirúrgico ataque aos interesses e à base social de apoio do próprio regime republicano.
A “intelligence”, claramente, estará atenta ao que se passa. Mas, o certo é que a imagem de D. Duarte e da Monarquia democrática está a fazer o seu caminho. Seriamente, como se fosse um livro de Natal, numa entrevista a Maria João Avillez, num aparecimento público da família real.
D. Duarte legitimado, por um cavaquismo sem sucessor, por uma República que não o soube ser, mas que, como instinto de sobrevivência da classe dominante, saberia fazer uma transição democrática para a Monarquia, evitando ver Marcelo, Santana ou Barroso em Belém,
Com Cavaco Silva cumprir-se-ia a sina dos presidentes algarvios que dão cabo dos Regimes, como aconteceu com Teixeira Lopes, também algarvio, sério, deprimido e que não chegou ao fim do seu mandato, renunciando antes do final da Primeira República.

Referendo em 2010?

Quando? Conspiração ou não, a República tem a sua data: comemora cem anos a 5 de Outubro de 2010. Uma data suficientemente longínqua para preparar o lado monárquico, sem pressas, como parecem querer alguns republicanos avisados. Com tempo de tornar evidente que o Regime republicano faliu, afundado em dívidas, incompetência e, sobretudo, desordem. Porque a República se virou contra o cidadão comum e ameaçou a própria Nação. Porque a República não é melhor que nomear o anticlerical e ex-comunista Vital Moreira para organizar o seu centenário jacobino.
Será uma conspiração?
… É que a alternativa será sempre contra os direitos dos cidadãos confiscados, contra a desordem na magistratura e os militares insubordinados, o reforço dos poderes do Presidente da República, como De Gaulle exigiu quando fundou a V República.
Como dizia António Sérgio: “Monarquia… República… Oh, a balbúrdia ignóbil dos mitos que nada exprimem!”

António Guterres não legitima José Sócrates

António Guterres foi uma ausência muito notada no Congresso do PS do passado fim-de-semana, o que pode ter sido um sinal de que a amizade com Sócrates já não é a de antigamente. Este distanciamento de Guterres tem paralelo com o que Cavaco teve em relação às lideranças que lhe sucederam no PSD, designadamente a de Fernando Nogueira e Durão Barroso, tendo conduzido Cavaco a Belém. O SEMANÁRIO sabe que Guterres não quer nem ouvir falar em presidenciais, mas o facto é que o ex-PM saiu mal da política em 2001 e pode ser tentado a reescrever a história. Como aconteceu com Cavaco, que saiu mal em 1994 e voltou em 2006.

António Guterres foi uma ausência muito notada no Congresso do PS do passado fim-de-semana, o que pode ter sido um sinal de que a amizade com Sócrates já não é a de antigamente. Este distanciamento de Guterres tem paralelo com o que Cavaco teve em relação às lideranças que lhe sucederam no PSD, designadamente a de Fernando Nogueira e Durão Barroso, tendo conduzido Cavaco a Belém. O SEMANÁRIO sabe que Guterres não quer nem ouvir falar em presidenciais mas o facto é que o ex-PM saiu mal da política em 2001 e pode ser tentado a reescrever a história. Como aconteceu com Cavaco, que saiu mal em 1994 e voltou em 2006.
Guterres foi desafiado por apoiantes a apresentar-se como candidato do PS às presidenciais de 2006 mas nunca deu sinais de desejar fazê-lo. Apesar de até contar com o apoio declarado de Sócrates, ao invés do que tinha acontecido com Ferro Rodrigues que, em matéria de presidenciais, Esta falta de vontade, aliada a algumas resistências de sectores socialistas à candidatura de Guterres, contribuiram para fechar o pano sobre o assunto. Um dos socialistas mais críticos com a hipótese da candidatura de Guterres foi João Cravinho, declarando que Guterres precisava de explicar primeiro porque se tinha ido embora em Dezembro de 2001. Quando surgiu a possibilidade de ir para Alto Comissário para as Nações Unidas, Guterres não pensou duas vezes.
Num Congresso que formalizou a neutralização das tendências do partido por parte de José Sócrates, Guterres foi, de facto, o grande ausente. O ex-primeiro-ministro socialista continua empenhado nas suas funcões de ACNUR e, dizem os seus mais próximos, está por vezes a anos-luz do que se passa na política portuguesa. Se Guterres primou pela ausência, em três dias de Congresso também não se ouviu uma palavra sequer sobre Guterres e os seus anos de governo. Ouviu-se apenas Sócrates lembrar, na sua intervenção da passada terça-feira que “os governos anteriores” tinham deixado uma herança pesada. Como Sócrates não clarificou se eram só os governos de direita, abre-se a dúvida se os dois executivos presididos por Guterres não estariam também incluídos nas críticas de Sócrates.

A agenda de esquerda de Sócrates

O antigo guterrismo tem sido gradualmente enfraquecido nos últimos anos, primeiro com Ferro e depois com Sócrates que, apesar de ser um apoiante do ex-PM, cortou radicalmente com muita coisa do passado guterrista. O PS de Sócrates tem quase horror à negociação, preferindo a accão constante. Sócrates foi mesmo chamado de “anti-Guterres” por parte de Sócrates. Outra grande diferença em relação a Guterres é o facto de Sócrates estar empenhado na campanha pelo “sim” ao aborto, tendo o antigo PM, que era adepto do “não”, mantido o silêncio no referendo ao aborto de há oito anos. No Congresso do PS e na sua antecâmara voltou a ser patente o processo de declínio dos antigos guterristas que nunca se adaptaram bem a Sócrates ou não tiveram hipóteses para o fazer. Enquanto António José Seguro aceitou um lugar oferecido por Sócrates, como responsável pela reforma do Parlamento, o destino de outros guterristas de gema foi diferente. Narciso Miranda e Miguel Coelho não fazem parte da Comissão Nacional do partido e Francisco Assis foi colocado na humilhante posição 64, o que motivou um pedido de desculpas do próprio Sócrates, aparentemente alheio à formacão das listas pela sua “entourage” no partido, onde pontifica José Lello. Narciso Miranda e Francisco Assis fazem parte do PS-Porto, uma estrutura que foi essencial no apoio a Sócrates aquando da corrida para secretário-geral em 2004. Aliás, a situação na Invicta só não explodiu pelos paninhos quentes de Sócrates e pelo facto de o poderoso Orlando Gaspar ter entrado para a Comissão Nacional na vigésima posição. Também Miguel Coelho apoiou Sócrates na corrida à liderança, ainda que no caso do responsável pela concelhia de Lisboa possa estar em causa uma saída estratégica, com vista a ganhar distanciamento para as próximas autárquicas em Lisboa, que poderão realizar-se muito mais cedo do que o calendário previsto face à ruptura na coligação entre o PSD e o PP
Ao mesmo tempo que sacrificou os seus apoiantes oriundos do antigo guterrismo, Sócrates compensou o soarismo e o ferrismo, pacificando o partido em vésperas de um ano de 2007 muito absorvente para Sócrates, com a presidência portuguesa da União Europeia a começar em Junho.
Convidado para pertencer à Comissão Política Nacional, João Soares aceitou o lugar, no que foi visto por alguns sectores do partido como um beijo da morte dado por Sócrates. Ainda há quinze dias Soares tinha criticado o caminho neoliberal dos governos. No Congresso calou qualquer crítica à política de Sócrates. Também Ana Gomes que, nos últimos meses foi muito crítica para o governo, aceitou o convite para a Comissão Nacional e surpreendeu pelas suas declarações alinhadas com as reformas de Sócrates. Curiosamente, também Paulo Pedroso, outro ferrista, deu no fim-de-semana uma entrevista à RTP-N, onde se mostrou confiante de que o executivo vai garantir os direitos sociais nos próximos anos. Curiosamente, no seu discurso de encerramento no Congresso, Sócrates definiu uma agenda de esquerda para os próximos anos, que passa pela luta contra a pobreza e a desigualdade, o aumento do salário minímo nacional, o fortalecimento dos direitos dos imigrantes. Esta agenda de Sócrates pode querer dizer que o líder do PS decidiu estabelecer algumas convergências com o ferrismo, com vista ao equilíbrio de forças no partido, à necessidade pacificação interna e à estratégia de começar a fixar votos à esquerda, com vista às legislativas de 2009.