Ao colocar em cena no Teatro Maria Matos a peça “Dúvida”, do reputado autor e vencedor de um pulitzer, John Patrick Shanley, Diogo Infante – que interpreta um padre acusado de um crime sexual – mostra-nos por que é considerado um dos maiores actores da sua geração, revelando uma vez mais o seu enorme talento ao lado da sempre enigmática Eunice Muñoz.
Toda a nossa vida somos colocados perante situações difíceis, em que a imperatividade das nossas escolhas impõe-se de forma determinante quando precisamos de decidir algo que pode condicionar a nossa vida, ou mesmo a de outra pessoa. É, nesse momento, entre o dilema e a necessidade de agir, que surge a dúvida. Possivelmente, trata-se de uma das mais importantes características que temos enquanto seres humanos. A capacidade de questionar aquilo que nos é vinculado, mas sobretudo de questionarmos-nos a nós próprios, sem que percamos o sentido de justiça.
Esta problemática é colocada em evidência em “Dúvida”, de John Patrick Stanley, em cena no Teatro Maria Matos, com encenação de Ana Luísa Guimarães. A peça conta com um elenco de peso composto por Diogo Infante, Eunice Muñoz, Isabel Abreu e Lucília Raimundo.
A dúvida de que se fala nesta peça prende-se sob a suspeita que recai sobre um padre progressista, de um colégio católico do Bronx dos anos sessenta, acusado de um alegado abuso sexual sobre uma criança negra.
A década aqui retratada representa uma América que perdeu o seu idealismo e a sua inocência. Com a morte de John F. Kennedy instalou-se na sociedade norte-americana uma desconfiança e um desencanto próprios de quem perdera a capacidade de acreditar. John Shanley escreveu esta peça em 2004, numa altura em que a América se encontrava dilacerada pelo ataque às torres gémeas, o que reavivou toda essa descrença que outrora teria sido apanágio de uma sociedade ainda a definir a base da sua cultura com base nos direitos civis. Ana Luísa Rodrigues descreve justamente esta tendência maniqueísta quando fala da peça. “Actualmente, as pessoas estão um pouco como nos anos 60. Temos uma certa tendência para ver tudo a preto e branco. A peça lança um apelo para que nos possamos ouvir novamente. Trata-se de uma questão muito contemporânea, que podemos comparar ao 11 de Setembro de 2001”, diz a encenadora.
Esta necessidade de acreditar está espelhada na personagem do padre, interpretada por Diogo Infante. As suas palestras e liturgias enquanto professor e padre surgem como uma resposta à necessidade extrema de orientação. Trata-se de apontar diversos caminhos, sem que haja paternalismos nem condicionalismos nessa escolha, uma função que cada vez mais se encontra em falta no sacerdócio. A determinada altura o padre diz mesmo: “Não há que ter medo da dúvida. Ela existe e une-nos na incerteza.” Esta sua ambiguidade é um dos pontos-chave da peça. Será que ele cometeu o crime? Diogo Infante, ao construir essa personagem, teve o cuidado de não evidenciar qualquer culpa: “Achei que ele tinha de ter uma luz e um brilho próprio. Na minha percepção eu construi a personagem acreditando na sua inocência, embora prefira não revelar o que eu julgo ser a estória desta personagem. Curiosamente é muito mais fácil representar a culpa. Se enveredasse por esse caminho estava sempre a dar sinais nesse sentido, o que acabava por dar uma enfâse totalmente oposta ao que realmente importa evidenciar.”
Eunice Muñoz encarnou a personagem da Madre Superiora que serve de plataforma para esta acusação, num claro confronto entre duas forças opostas, uma parábola entre o progressismo e o conservadorismo, um conflito que define em muito os Estados Unidos da América, onde a esquerda e a direita têm uma importância relativa quando comparadas com a Velha Europa.
Os anos sessenta e o local escolhido são autobiográficos. John Patrick Shanley foi educado num colégio do Bronx gerido pelas “Irmãs da Caridade”. “(..) os velhos hábitos ainda dominavam os comportamentos, a forma de vestir, a moral, a maneira de olhar o mundo (..)”, diz Shanley, ao descrever esta época.
No entanto, mais uma vez a ambiguidade acaba por ser uma força motriz pela forma como é colocada pela Madre. Ela põe em dúvida o comportamento do padre, querendo ir mais além, não se rendendo perante o que parece ser evidente. Contudo, a forma como lança a dúvida acaba feita de forma perigosa, incorrendo no boato. Diogo Infante diz isso mesmo: “Ela levanta uma suspeita que não consegue provar, além dela própria. Hoje em dia há uma tendência para uma condenação pública, muitas vezes até pela própria imprensa e opinião pública. A dúvida nesse aspecto é terrível.”
A personagem da irmã James, interpretada por Isabel Abreu, funciona como paradigma de uma humanidade confusa, que quer acreditar na inocência, não só pelo padre, mas por toda uma crença epistemológica que pode desabar caso este abominável crime seja verdadeiro. Mas, acima de tudo, ela quer poder duvidar, formando o seu racocínio sem que para isso sirva os interesses da Madre Superiora.
A mãe do rapaz acaba por estar demasiado condicionada por uma cultura castradora em que o sucesso dos afro-americanos está a ser construído de forma muito discreta e delicada, nem que tenha de fechar os olhos perante o que apenas iria trazer sofrimento, caso fosse provado. A linguagem corporal evidenciada por Lucília Raimundo na sua única cena com a Madre Superiora revela muitas dessas amarras segregacionistas dos anos sessenta.
A peça ensina-nos que é importante duvidar e sentir que essa incerteza é natural e condição sine qua non para que nos possamos definir como membros responsáveis de uma socidedade. Mas também lança a pergunta: até onde podemos ir quando temos uma dúvida?|