Altas labaredas estão a consumir a política portuguesa, quase com a mesma intensidade com que a crueldade das chamas devora inúmeros hectares de floresta.
Altas labaredas estão a consumir a política portuguesa, quase com a mesma intensidade com que a crueldade das chamas devora inúmeros hectares de floresta. O clima político adensou-se inesperadamente e vai, até se concluírem os processos eleitorais, motivar tensões fortes, nos vários patamares de influência.
Mário Soares é o último elemento perturbador desta surpreendente subida da temperatura política. Perturbador em todas as áreas, mesmo que possa haver regozijos de uma falsa unanimidade à esquerda, para travar o passo, que já era estugado, à candidatura de Cavaco Silva. Para alguns, o que parecia um passeio triunfal do ex-primeiro ministro de duas maiorias absolutas transformou-se numa corrida que não está isenta de dificuldades. À certeza da vitória antecipada sucedeu-se o receio do confronto com Mário Soares, também primeiro ministro de três governos e Chefe do Estado durante uma década.
A pugna eleitoral vai, uma vez mais resolver-se no chamado Centrão político, uma palavra abrasileirada com que simpatizo pouco, mas onde é possível agregar o conjunto moderado dos eleitores, que vão da ala esquerda do PSD ao sector mais à direita do PS.
A candidatura de Mário Soares não é, à partida, uma candidatura forte que ajude o PS a colocar o seu candidato em Belém, mas pode criar-se à volta dela uma capacidade mobilizadora para evitar a eleição de Cavaco Silva. Esse é um perigo real, que deve ser salientado, sobretudo, por quem acredita que a vitória não fugirá ao professor, mas que também tem a noção de que esse juízo não se pode substituir ao julgamento dos eleitores.
Se Portugal fosse um país previsível nos seus parâmetros de normalidade, Cavaco Silva seria o próximo Presidente da República. Como persistimos em ser uma caixinha de surpresas e um laboratório permanente de experiências políticas, estamos perante uma incógnita cuja solução só os eleitores podem decidir à boca das urnas.
Vale a pena em todo o caso assumir alguns contornos do combate político e alinhar um conjunto de factos, uns inquestionáveis e outros doseados por alguma especulação.
Mário Soares tem uma dimensão política que ninguém beliscará, pelas sua obra política. Mesmo que se discorde dele em tanta coisa, ( e isso é possível) não pode ninguém furtar-lhe o papel de Patriarca da democracia portuguesa, lutador pelas liberdades, político que não fugiu às suas responsabilidades, mesmo quando foi forçado a meter o socialismo na gaveta. Mesmo com sombras escuras, Mário Soares foi um consequente opositor a Salazar e a Caetano, desde que ganhou consciência política. Foi preso e deportado, principal fundador do partido Socialista, ministro dos governos provisórios, primeiro ministro de três Governos Constitucionais, nos intervalos líder da Oposição, Presidente da República em dois mandatos e, depois disso, deputado ao Parlamento Europeu. Tem hoje quase 81 anos de idade. Provecta idade, que já o levou a dizer em relação à política activa: Basta!
Ora este “Basta!” constitui hoje, mais do que a idade ( embora esta seja um factor de peso – quem garante que Soares está em condições de fazer uma cansativa campanha eleitoral?…, por exemplo…) o obstáculo mais forte a uma fiabilidade de uma nova candidatura presidencial. Muito mais vezes do que seria desejável, depois de ter saído de Belém, Mário Soares disse uma coisa e o seu contrário, sempre com o à vontade com que bebe um copo de água e a consequente impunidade dos irresponsáveis. É este homem que, com estas características volúveis, o País precisa no palácio de Belém?
Cavaco Silva tem que ter em relação a Mário Soares o mesmo instinto “assassino” que o ex-Chefe de Estado não hesitou em revelar no derradeiro confronto com Freitas do Amaral, na memorável corrida que ditou, em duas voltas, o sucessor de Ramalho Eanes.
Há no entanto que prevenir estratégias laterais, que muitos ciciam em voz baixa, mas que ninguém admite publicamente. Uma dessas estratégias laterais conduz à seguinte pergunta: A entrada de Mário Soares na corrida presidencial é para jogar até ao fim ou o antigo presidente está a fazer de “lebre” ( como se diz em gíria desportiva) de outros interesses políticos, nomeadamente a candidatura de outra figura política, in extremis?
O assunto é sério. Mário Soares faz lembrar, com este corropio de consultas que vai fazendo, o seu sucessor, Jorge Sampaio, que convocou a Belém mais de 30 personalidades depois da ida de Durão Barroso para Bruxelas, quando se sabia previamente que ele não iria dissolver o parlamento, porque essa tinha sido a palavra dada ao novo Presidente da Comissão Europeia ( em privado e nas estruturas da coligação, Barroso tinha dito que se houvesse eleições ele não aceitaria ir para Bruxelas, toda a gente sabe disto). Portanto de duas uma, ou Mário Soares já decidiu candidatar-se e o que está a dizer que faz é pura encenação política, ou já interiorizou que não tem condições políticas para uma nova corrida presidencial, e então tem algum intuito deliberado e é preciso descortinar qual seja. Não deixa de ser estranho que João Soares, (filho de Mário Soares e que foi apoiado pelo Pai na corrida a secretário geral do PS, quando toda a gente sabia que não hipóteses de eleição) tenha referido publicamente, em mais do que uma ocasião, incluindo na entrevista que deu ao SEMANÁRIO, que o prof. Freitas do Amaral reúne as condições para ser um bom candidato presidencial do PS e da esquerda em geral. Fê-lo por sua conta e risco? Mas será possível que uma candidatura presidencial de Mário Soares tenha passado à margem do actual cabeça de lista do PS à Câmara de Sintra?
Por outro lado, no interior do Governo, Freitas do Amaral assume um protagonismo essencial junto do primeiro ministro. De tal modo, que é impensável admitir que o teor da entrevista recente ao Diário de Notícias, nomeadamente no que à sua própria candidatura presidencial diz respeito, não tenha sido do conhecimento prévio de José Sócrates.
Isto quer dizer que pode haver muito jogo ainda escondido na área do PS e que teremos de esperar até ao desfecho final, isto é até ao momento em que houver oficialmente um candidato presidencial apoiado pelas estruturas do partido maioritário. É possível que seja Mário Soares, mas, em boa verdade não será despropositado ensaiar o espírito para outro cenário.