2025/07/03

A resposta de Sócrates à crise económica e social por Rui Teixeira Santos

O governo socialista está numa encruzilhada, diante da crise económica e social instalada e que não vai abrandar. Ou desce os impostos, mas com isso tem que remodelar o Governo e pode aguentar até ao fim da legislatura, ou, então, insiste na actual política de empobrecimento das classes médias e de destruição das PME e, desse modo, irá provocar uma crise política que, necessariamente, conduzirá, depois, a um governo de Bloco Central – uma inevitabilidade, para manter uma política de austeridade e uma polícia forte que mantenha a ordem nas ruas. Finalmente, sobre esse Bloco Central, pairará um Presidente da República mais interveniente e providencial. O problema é que esta deriva eanista de Belém pode bem, em vez de salvar o Sistema, arruinar o Regime.

O governo socialista está numa encruzilhada, diante da crise económica e social instalada e que não vai abrandar. Ou desce os impostos, mas com isso tem que remodelar o Governo e pode aguentar até ao fim da legislatura, ou, então, insiste na actual política de empobrecimento das classes médias e de destruição das PME e, desse modo, irá provocar uma crise política que, necessariamente, conduzirá, depois, a um governo de Bloco Central – uma inevitabilidade, para manter uma política de austeridade e uma polícia forte que mantenha a ordem nas ruas. Finalmente, sobre esse Bloco Central, pairará um Presidente da República mais interveniente e providencial. O problema é que esta deriva eanista de Belém pode bem, em vez de salvar o Sistema, arruinar o Regime.

O imposto Robin Hood ou a crise do sistema político
Durão Barroso adverte, na sua entrevista ao “Corriere della Será”, esta semana, que a introdução de impostos sobre os lucros das empresas petrolíferas, que é da competência dos Estados-membros, deve tomar em consideração o facto de poder colocar em causa os investimentos estratégicos das empresas petrolíferas e colocar em risco o abastecimento no futuro.
O Presidente da Comissão Europeia tem razão por dois motivos. Em primeiro lugar, a nacionalização da indústria na América do Sul conduziu, por exemplo, na Venezuela à travagem do investimento na prospecção e na manutenção das estruturas de produção e refinação, o que conduz necessariamente à redução da produção no futuro. E, portanto, políticas orientadas para o curto prazo podem ser manifestamente inflacionárias a médio e longos prazos.
Em segundo lugar, o problema do aumento dos preços dos combustíveis nada tem que ver com a venda de reservas compradas anos atrás pelas petrolíferas, mas sobretudo com dois factores: a introdução no preço do risco político e o aumento da receita fiscal por impacto do aumento das matérias-primas.
Era inevitável, depois de tantos anos de petróleo barato e depois do 11 de Setembro e das guerras contra o terrorismo, que o risco político passasse a ser incorporado nos preços do mercado.
O que não é inevitável é que as receitas fiscais continuem a aumentar, estando as classes médias mais empobrecidas, o crescimento económico ameaçado e a inflação a dar sinais graves de retoma.
O “imposto Robin Wood” não faz, portanto, sentido. O que agora faz sentido é baixar os impostos.

Acabar com o tabu
Não há volta a dar. Temos que acabar com o tabu definitivamente. O aumento da carga fiscal e a pressão da cobrança destruíram, nos últimos sete anos, as PME e levaram à proletarização de milhares de pequenos empresários e pequenos burgueses.
A pequena burguesia urbana, suporte do centro político, está actualmente empobrecida, e começa a ser óbvio, nas sondagens, que engrossam os mais radicais, nomeadamente, os partidos de esquerda – até porque, em Portugal, o PP, de Paulo Portas, não tem credibilidade.
Criou-se um tabu à volta da descida dos impostos. O papão do populismo em Portugal é igual à redução dos impostos. Ora, não há maior disparate em política e, sobretudo, não há maior erro económico.
Um estudo de Deloitte provou recentemente que se os preços dos combustíveis na fronteira fossem equivalentes aos de Espanha – ou seja, se o fisco cobrasse o IVA a 16% e reduzisse os impostos sobre os produtos petrolíferos, a receita fiscal nacional aumentaria. Ou seja, o que Ferreira Leite tem andado a dizer sobre o assunto é simplesmente errado.
Parece inevitável, depois dos protestos das últimas semanas, que a solução vai sempre passar pela redução dos impostos.
Não há outra solução com o agravamento da crise económica, com a subida dos preços energéticos e alimentares, e, sobretudo, com o colapso da economia espanhola e o prolongar da crise do crédito, por pelo menos mais seis a doze meses, sem que o Governo tenha incentivos à poupança nacional (bem pelo contrário, correu mal a tentativa de gerir mais eficientemente as remunerações dos Certificados de Aforro e as poupanças nacionais são melhor remuneradas no estrangeiro, onde, aliás, estão ao abrigo das perseguições do Fisco), nem que os bancos consigam fazer produtos de poupança para segurarem no País as disponibilidades das famílias ou desincentivarem o consumo.
Com os bancos sem crédito e com as famílias a terem de aceitar a moderação salarial apesar da inflação, é evidente que as classes médias estão a desaparecer, o que a curto prazo coloca em causa a sustentabilidade das finanças públicas, equilibradas basicamente à custa do crescimento económico e das receitas extraordinárias decorrentes da maior eficiência do fisco na cobrança dos impostos.
Essa eficiência da máquina fiscal custou 180 mil empresas encerradas no consulado de José Sócrates, o que daria mais de meio milhão de desempregados adicionais se, nos últimos anos, não tivesse voltado a triste “sangria” da emigração. As boas práticas, o benchmarking fiscal acabou por liquidar o empreendorismo e, actualmente, existindo apenas 180 mil empresas activas no país, cerca de 67 mil têm as contribuições fiscais por pagar, demonstrando que o fisco arruinou a economia nacional.
Só há, portanto, um caminho: descer os impostos e adiar para 2012/14 o objectivo do equilíbrio orçamental. Esta situação está aliás prevista no Pacto de Estabilidade e Crescimento e sobretudo na nossa Lei de Enquadramento Orçamental. Usar apenas as leis mal feitas da ASAE e do Fisco e não usar a favor da economia nacional a possibilidade de ajudar os portugueses é no mínimo má governação.
O problema é que as reformas de José Sócrates falharam. O Estado cresce, a despesa pública aumentou em termos absolutos e o Estado em vez de reduzir efectivos limitou-se a transferir despesa. Para tanto barulho, convenhamos, foi pouco. E seria estúpido fazer, agora que a crise internacional nos castiga mais, uma política pró-cíclica.

A crise política
Parece inevitável que, apesar da distracção do Europeu, dos Jogos Olímpicos e das ferias que se seguem, alguma coisa tem que ser feita. A contestação interna vai continuar e mesmo aqueles que, agora, conseguiram alguma coisa vão voltar a contestar.
Ainda por cima, o Governo não pagou às polícias e está em guerra com as Forças Armadas. Ora, esse é o pior cenário possível. Quando há crise económica e não solução interna ou externa, avança a polícia, para se manter a ordem. Foi o que Sócrates percebeu nesta última crise. Mas, é básico perceber que é necessário ter os polícias motivados e pagos, coisa que não acontece com a GNR ou a PSD. E, portanto, o governo socialista não pode esperar que as polícias respondam aos comandos e batam na população barricada, sem estarem devidamente motivados.
Neste contexto de agravamento da crise económica e social, o autismo é tão perigoso como o populismo. O Governo tem que fazer alguma coisa e não pode esperar pelos restantes países europeus, onde a intensidade da crise não é tão grande, nem se pode agarrar a princípios dogmáticos e evidentemente desajustados à “guerra” actual. E do mesmo modo que teve a coragem de subir os impostos, no início da legislatura, tem que ter, agora, o bom senso de os descer, para aliviar a situação das famílias e das empresas. Sobretudo, das PME, onde o problema é mais intenso e das quais depende cerca de 87% do emprego no País.
O primeiro-ministro vai ter que sacrificar o seu ministro de Estado e das Finanças, para que Fernando Teixeira dos Santos não perca a face – que o não merece – quando Sócrates avançar com a descida dos impostos. Se o fizer poderá chegar ao fim da legislatura – combinada com Cavaco Silva para Outubro de 2009, em simultâneo com as autárquicas – mas, se o não fizer, poderá precipitar uma crise política, que conduzirá a eleições gerais antecipadas e à mais que provável perda da maioria absoluta.

O bloco central
Com a crise económica e a desordem social instalada e, sobretudo, com o empobrecimento das classes médias, o sistema político evoluirá para a constituição de três grandes blocos políticos, com praticamente o mesmo peso eleitoral, à volta dos 30/35%: o PS, que terá à sua esquerda a dupla BE/PCP e à sua direita o PSD.
Neste contexto, e sem margem de manobra no quadro da eurozona, com a ameaça de anarquia nas ruas, o sistema (e não só alguns grandes empresários, como diz Marcelo Rebelo de Sousa) irá exigir uma coligação entre o PS e o PSD, que garanta a Ordem e a estabilidade. E, isso significa uma política de austeridade e uma mão dura policial para calar a natural contestação nas ruas.
Nestes contextos não há espaço para o diálogo e será o Presidente da República a surgir necessariamente como figura central de equilíbrio.
O que será interessante discutir é se a mudança dos sistema político de partidos para essa afirmação presidencialista decorre da evolução da crise e dos acontecimentos, ou se ela foi pensada e desejada pelo Presidente Cavaco Silva.
O assunto está intimamente ligado ao regresso dos barrosistas e de Ferreira Leite ao poder no PSD, condenando o partido a uma periferia de Belém e a uma bengala de Sócrates ameaçado com a perda da maioria absoluta. A questão central é se Ferreira Leite, Pacheco Pereira, Morais Sarmento e José Luís Arnaut de regresso ao PSD, não significam, exactamente, o fim do próprio PSD ou a sua satelização relativamente à estratégia pessoal de um Presidente da República, que nunca quererá ser refém do seu próprio partido e da sua base eleitoral de apoio, e que sempre desejou ter Sócrates ou alguém do PS como primeiro-ministro.
E, será também curioso de ver se esse “bloco central” inevitável, em vez de salvar o sistema de partidos, não será o coveiro do regime republicano, tendo em consideração que, agora, ao contrário do que aconteceu em 1983/85, não há a expectativa de uma CEE, como solução externa para os problemas internos, com uma agenda de modernidade e fundos de coesão.|

Uma solução viável para o Tratado de Lisboa

O primeiro-ministro irlandês, Brian Cowen, pediu algum tempo à União Europeia, após a rejeição do Tratado de Lisboa no seu país, considerando que ainda é “muito cedo” para apresentar uma solução para o impasse institucional em que caiu a União Europeia.
Depois das respostas infantis dos líderes europeus, logo a seguir ao Referendo Irlandês, o bom senso parece estar de volta à Europa.
A aprovação do Tratado de Lisboa na câmara alta do Parlamento britânico, na quarta-feira, deu a indicação firme que o Tratado de Lisboa vai mesmo para a frente.
Desde o princípio defendi que o modelo do tratado reformador, sobre o qual se basearia a União Europeia, não deveria ser mais que um enunciado de dez ou quinze princípios sobre os direitos humanos, sociais e económicos e uma arquitectura institucional básica da União, documento verdadeiramente constitutivo dessa nova realidade política, à qual os Estados-membros aderiam, ou sobre o qual se faria um referendo europeu.
Tudo o resto seria remetido para legislação regulamentar a ser aprovada nos órgãos legislativos da União Europeia: o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu.
Foi esta, aliás, a solução encontrada por Thomas Jefferson, quando o problema se colocou aos estados americanos, quando proclamaram a independência dos EUA e, também, não havia entendimento.
É certo que a ideia de uma “mini-Constituição” rompe com a tradição jurídico-constitucional francesa, na qual se inspiram os modelos continentais, nomeadamente a nossa. Mas, talvez seja o momento das elites políticas e académicas europeias, em vez de querem mudar o mundo, perceberem como ele funciona.
Acabou por vencer o pragmatismo. A Europa precisa de Tratado de Lisboa, ou seja, precisa de um modelo institucional que a torne mais operacional. A solução está à vista: os governos dos 27 continuarão as ratificações até ao final do ano e darão aos irlandeses condições exclusivas.
Era inevitável que a “Europa do directório” teria como contrapartida uma “Europa a várias velocidades”.
Mas, isso não serve os propósitos hegemónicos de países como a Alemanha ou a França que, obviamente, querem, nas próximas décadas, ter uma palavra a dizer no mundo e que, para tanto, necessitam a União económica e politicamente relevante. Portanto, a questão do “minitratado” vai, mais tarde ou mais cedo, colocar-se: será a verdadeira Constituição da União Europeia e substituirá os tratados anteriores.
Eu votarei nela.|

SOBE E DESCE

A Subir

Cristiano Ronaldo – A elegância é tudo. Considerado o melhor jogador do mundo, foi, também, eleito o mais sexy jogador do Euro 2008. Um português na mais brasileira selecção da Europa.

Pinto da Costa – Apesar das armadilhas, o Futebol Clube do Porto entra na Champions. Pinto da Costa tem agora tempo para limpar os seus inimigos. E já no próximo ano terá o seu candidato à câmara do Porto para assegurar que Rui Rio perde as eleições e Elisa Ferreira seja a próxima presidente da Câmara do Porto.

Manuel Fino – Apesar de apertado pelo BCP e pela CGD e da Cemex andar a dizer que pode comprar a sua posição na Cimpor para “negociar” a paz com os franceses no mercado espanhol, o certo é que Manuel Fino tem mais compradores, como Stanley Ho, Joe Berardo ou João Rendeiro. E, naturalmente, não venderá a sua posição na Cimpor, pois ela é o seu seguro de vida. Mas, está no ponto que a Pedro Teixeira Duarte quer: fica, mas não manda… Não é assim que se controlam empresas sem meter um tostão?

António Barroca Rodrigues – É o grupo de construção da moda, no regime de Sócrates. Foi sugerido para todos os grandes projectos, desde o aeroporto às auto-estradas e tem o maior grupo de comunicação social regional. Chegará, agora, à imprensa nacional, querendo, para isso, comprar, por mais de 22 milhões de euros, o “Diário Económico” e o “Semanário Económico”.

Manuela Ferreira Leite – Hoje, em Guimarães, é o seu Congresso. Será consagrada como líder, mas falta saber se controla os órgãos nacionais do Partido Social Democrata. Se Pedro Santana Lopes e Passos Coelho se entenderem, Ferreira Leite pode mesmo ser a primeira líder social-democrata a não controlar a sua Comissão Política. Há quem aposte que esta não é uma solução a prazo e que o PSD pode voltar a directas já no início do próximo ano, quando a crise económica e bancária estiverem no seu auge. Talvez por isso nem Santana Lopes, nem Passos Coelho, queiram aparecer ligados à antiga ministra das Finanças de Durão Barroso

A Descer

José Sócrates – Líderes europeus ficaram decepcionados com vitória do “não” no referendo irlandês. Sócrates considerou uma derrota pessoal.

Fernando Teixeira dos Santos – A saída de investidores dos certificados de aforro continua, embora tenha acalmado em Maio, com uma taxa de remuneração recorde, aproximando-se dos valores de Dezembro de 2000. As amortizações ascenderam a 197 milhões de euros, em Maio, o que representa uma descida de 16% face aos 234 milhões de euros do mês anterior, segundo o boletim do Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público (IGCP). O aumento dos juros, aliado à carta que o Governo enviou aos 700 mil aforradores, pode ter contribuído para travar a saída dos investidores. No documento, o Executivo expôs as vantagens destes títulos e convidou os subscritores a não trocar os certificados por outros produtos financeiros, nomeadamente os depósitos a prazo. De Fevereiro até Maio, os portugueses retiraram dos certificados 933 milhões de euros, o que corresponde a cerca de oito milhões por dia. No mesmo período, as emissões da nova série C ascenderam a 414 milhões de euros, o que se traduz num saldo negativo de 519 milhões de euros.

Vítor Santos – O presidente da ERSE deveria no mínimo pedir a demissão depois de ter proposto fazer os consumidores pagar as facturas incobráveis e que os preços sejam ajustados de três em três meses. A entidade não regula nada. Limita-se a fazer o que a EDP quer. Mas quem foi que escolheu Mexia para a EDP e Vítor Santos para a Entidade Reguladora do Sector Energético? Não foi Manuel Pinho, o mesmo que diz achar isto de “mau senso”?

Américo Amorim – Depois dos problemas com o Fundo Social Europeu é a vez dos problemas com a “Operação Furacão”. Não há dinheiro que chegue para advogados…

Luís Filipe Vieira – A falta de patriotismo e o acto miserável do presidente do Benfica a pedir a uma instância internacional que condene um clube português, afectando o prestígio do País e o nome de Portugal, ficará na história como um dos momentos mais baixos da vida pública nacional. |

Uma crise não é uma catástrofepor Manuel dos Santos

O Tratado de Lisboa derivou do Tratado Constitucional que tinha sido redigido por uma Convenção que reuniu publicamente e onde estavam representados em pleno todos os Parlamentos Nacionais, bem como o Parlamento Europeu.

O Tratado de Lisboa derivou do Tratado Constitucional que tinha sido redigido por uma Convenção que reuniu publicamente e onde estavam representados em pleno todos os Parlamentos Nacionais, bem como o Parlamento Europeu. A Convenção manteve ainda um diálogo constante com organizações da sociedade civil. O Tratado de Lisboa foi o resultado de longas negociações visando um compromisso que foi aceite e assinado pelos Governos de todos os Estados-membros. Os Parlamentos Nacionais tiveram um papel vital na sua concepção.
O Tratado de Lisboa deverá fazer a União Europeia progredir em muitas áreas. Os benefícios que dele resultam são numerosos do ponto de vista do equilíbrio institucional em matéria de Negócios Estrangeiros e nas áreas da Liberdade, Segurança e Justiça; todos esses benefícios, tal como todo o duro trabalho das Instituições e dos Estados-membros se perderiam se não encontrarmos uma solução para a crise actual. A União Europeia não pode avançar com base no Tratado de Nice.
O Parlamento Europeu participou no processo de negociação através dos seus representantes, os quais se bateram e defenderam a dimensão democrática e parlamentar da União Europeia. Eles protegeram e aumentaram os poderes dos Parlamentos Nacionais. Os Parlamentos Nacionais são, pois, grandes vencedores do Tratado de Lisboa. Sem o Tratado de Lisboa os Parlamentos Nacionais, como o Parlamento Europeu, perderiam as suas novas competências e manteríamos o actual quadro de menor democracia.
O verdadeiro perdedor seria a Europa e os seus cidadãos. Devemos permitir que isto aconteça? A resposta é “Não”.
Os Parlamentos da União Europeia; Parlamentos Nacionais e Parlamento Europeu devem trabalhar, por isso, mais juntos do que nunca. Devem agir para resolver a actual situação política. Os parlamentares têm de defender em conjunto este “acquis” comum, ou seja, o futuro da Europa e o futuro dos nossos cidadãos.
A primeira reacção ao voto “Não” Irlandês deverá ser, assim, o reforço da nossa convicção acerca da necessidade da reforma, acerca dos objectivos europeus comuns e, nesse sentido, de que o processo de ratificação deverá continuar.
Alguns governos anunciaram que o Tratado de Lisboa morreu ou já “não existe”. Não podemos esquecer que 19 Estados-membros já ratificaram o Tratado de Lisboa. Os Parlamentos podem provar que o Tratado está vivo e forte completando o processo de Ratificação nos 7 Estados-membros em falta. A Ratificação por 26 Estados-membros seria a melhor resposta aos que não acreditam no projecto europeu. O Parlamento Europeu adoptou uma Resolução, em Fevereiro de 2008, apoiando as disposições do Tratado e o processo de Ratificação.
Os Parlamentos Nacionais podem ter um importante papel para salvar o Tratado de Lisboa. O Parlamento Europeu apreciou muito o envolvimento de deputados irlandeses na campanha do “Sim”. A esmagadora maioria de deputados do Parlamento irlandês apoia o Tratado de Lisboa. Porém, os resultados do referendo mostram a distância que separa a visão parlamentar da percepção dos cidadãos. Acredito que este é um assunto a que teremos de nos dedicar todos no próximo futuro.
Temos de levar para a frente o projecto europeu e converter este movimento num sucesso a longo prazo para todos os 450 milhões de cidadãos da União Europeia.
Apesar do optimismo, mesmo se ancorado em excessivo voluntarismo, das instituições europeias (Comissão, Parlamento e Conselho) é óbvio que a União vive uma crise. O importante, contudo, é evitar que essa crise se transforme numa catástrofe.
Isso seria extremamente negativo para o processo de integração europeia, que deve prosseguir com o vigor necessário, mas seria, de igual modo, negativo para os principais agentes desta reforma institucional importante que deu origem ao Tratado de Lisboa.
E, sobretudo, não o mereceria a acção política de intermediação activa exercida pelo primeiro-ministro português, José Sócrates, enquanto presidente do Conselho Europeu, nem a qualidade notável da Presidência Portuguesa.|

Deputado do PS no PE

A crise dos combustíveis e a crise da Europa

Quando hoje os camionistas se revoltam, um pouco por toda a Europa, e paralisam a actividade económica europeia, estão a dar o murro na mesa perante a inépcia dos seus governos, o murro na mesa que a Europa nunca soube dar aos interesses do crude negro. Já desde o choque petrolífero de 1973.

“Havia muito tempo que dominava um sentimento generalizado de que os princípios e os metódos da velha política e da sua diplomacia estavam a enterrar a Europa e, para além disso, já se entrara no período em que os especialistas começavam a ser rejeitados.”
Robert Musil, “O Homem sem Qualidades”

A crise dos camionistas um pouco por toda a Europa é o espelho da falência de soluções na Europa. Continente praticamente sem petróleo, com excepção da Rússia, a Europa viveu um choque petrolífero de 1973 com a corda ao pescoço mas, quando a tempestade passou, deixou-se ficar praticamente na mesma. É verdade que o discurso das energias alternativas se foi intensificando, ano após ano, mas, também não menos verdade sempre sem resultados pioneiros e amplos. Os países, as cidades, a vida dos habitantes, continuaram a ser organizados, tendo o petróleo como paradigma. O que faz pensar que o discurso das energias alternativas e do ambiente não passou, durante todo este tempo, no que se refere à política real do Estado e às suas mudanças, de mera propaganda, com fins eleitoralistas ou querendo dar uma imagem moderna e civilizacional que não corresponde à realidade.
É no sul da Europa que o problema é maior, com as cidades organizadas em torno do automóvel, muito menos do que na Europa do Norte, como se houvesse uma correlação entre desenvolvimento menor, primazia aos interesses e corrupção e a dependência do petróleo. É no sul da Europa que a carga fiscal em relação aos combustíveis é uma das maiores. É na< Europa do Sul, Portugal, Espanha, França, Itália, que os protestos dos camionistas têm sido mais intensos.
Mas este agravamento dos problemas a sul não nos devem fazer afastar, nunca, do problema político do petróleo. Serventuários ou reféns dos múltiplos e poderosos interesses económicos que modelam a economia global, tanto a norte como a sul, muitos países europeus parecem, na verdade, nunca ter tido vontade política para substituir o petróleo como paradigma energético. Ou, se quisermos ser mais benevolentes, nunca os deixaram, verdadeiramente, caminhar para um novo modelo. Os lobbies do petróleo americanos, do Médio Oriente, da Rússia, que andam de mãos dadas com o poder político dos respectivos países e que, em muitos casos o sustentam financeiramente, podem ter feito, até hoje, um bloqueio às mudanças.
Quem não tem autonomia e independência económica acaba também por ficar condicionado politicamente. Quando a Europa se verga politicamente aos EUA, por exemplo na questão da Guerra do Iraque, dos campos de prisioneiros de Guantanámo ou dos voos ilegais da CIA, é também a questão do petróleo que está na berlinda. Quando a Europa não fala grosso com a Rússia, é também no petróleo do Cáucaso que está a pensar. Quando a Europa faz tanta coisa que a envergonha, como disputar as graças do ditador Hugo Chávez ou de alguns ditadores africanos com petróleo como recurso, é novamente o petróleo que está em questão. Há muitos exemplos a dar, mas, para ficarmos por Portugal, e até porque Sócrates tem sido particularmente prolixo nestas matérias, convém lembrar o “namoro” com Chávez, que já envolveu vários encontros com Sócrates.
Quando hoje os camionistas se revoltam, um pouco por toda a Europa, e paralisam a actividade económica europeia estão a dar o murro na mesa perante a inépcia dos seus governos, o murro na mesa que a Europa nunca soube dar aos interesses do crude negro. Porque não soube e porque não quis. A maneira como hoje se governa no continente europeu é não só defensora do “status quo” e dos interesses que giram, e sempre giraram à volta do crude, como é acomodada e facilitista.
Na origem directa dos protestos dos camionistas tem estado, como reivindicação principal, a descida dos impostos que oneram os combustíveis, representando, em muitos casos, cerca de metade do preço final da gasolina e do gasóleo. Os governos europeus habituaram-se a esta forma simples e garantida de ganhar dinheiro, explorando, ano, após ano, os seus cidadãos através dos impostos. Os governos conseguiram, década após década, tornar esta questão um dado adquirido, alienando os cidadãos para a sua necessidade financeira, de formar a gerir e equilibrar as contas públicas. Está tudo invertido. A urgência deveria ser a de a Europa cortar com o paradigma do petróleo. A urgência deveria ser a de a Europa encontrar fontes alternativas de financiamento das contas públicas através de receitas fiscais, de forma a compensar as que seriam perdidas com a gasolina e o gasóleo.
Em vez disso, ano após ano, a Europa tem-se afundado nesta teia, neste sistema perverso. Hoje, as finanças dos Estados estão muito dependentes dos impostos dos combustíveis, ao ponto de não conseguirem passar sem o grosso destes encargos. Exactamente, porque ao longo dos anos não criaram alternativas. O autismo e a indiferença de alguns governos europeus em relação aos protestos dos camionistas tem muito a ver com esta espécie de nó górdio que se criou, sendo capazes de utilizar todos os estratagemas e artifícios demagógicos para manter o sistema. Também aqui, o nosso primeiro-ministro, José Sócrates foi campeão da demagogia e da manutenção do satut quo. Sem a originalidade de um Nicolas Sarkozy e até a audácia, imagine-se, de um José Zapatero que sempre foi considerado demasiado sonso, Sócrates andou a dizer nos últimos dias que Portugal não podia baixar os impostos sobre os combustíveis porque seria onerar aqueles que não têm carro e que não utilizam combustíveis nas suas vidas profissionais. Como se tudo não fosse movido a petróleo na vida de hoje, directa ou indirectamente, exactamente o mundo criado e sustentado pelos governos europeus.
Não é admissível que Sócrates use um argumento demagógico e falacioso deste tipo. Já esta semana, a propósito da paralisação dos camionistas, Sócrates criticou com dureza a iniciativa por impedir quem quer trabalhar, de o fazer. Apesar dos episódios dramáticos que aconteceram durante a paralisação, como a morte de um camionista que estava num piquete de greve, Sócrates tem obrigação, também aqui, de não ser demagógico e não tentar tapar o Sol com uma peneira. É nestes momentos que vê a têmpera dos homens. Até aqui, Sócrates tem resistido com receitas que consistem apenas em esperar que os protestos parem, que a chuva páre, sem ter praticamente nada que dar em troca e não tendo que se esforçar por soluções complexas ou arrojadas da parte de um governante. Sócrates acaba por viver da imagem que conseguiu criar, de que o país está em estado de necessidade, e que todos os sacrifícios podem ser exigidos. A cooperação estratégica de Cavaco com o governo também tem dado margem a Sócrates para não ter que se esforçar. Ora, hoje, com a crise dos combustíveis tudo foi diferente e foi aqui que se viu se Sócrates tem, ou não têmpera, se esteve, ou não, à altura da situação. Ora, parece ter ficado a ideia de que Sócrates usou a fórmula habitual de Sócrates de actuar, de esperar que a tempestade passasse. Ora, a tempestade não passou, o bloqueio colocou o país numa das situações mais difíceis desde o PREC e arriscou em demasia, com prejuízo para a economia portuguesa. O que faria Sócrates se não tivesse tido acordo com os camionistas. Parece notório que o primeiro-ministro não tinha Plano B.

A crise dos camionistas

Mesmo que não tenham um pensamento sofisticado e consciência política, os camionistas têm, certamente, a percepção de que a sua luta foi difícil, pelas teias que o sistema e o modo como está organizado, no paradigma e nas relações intrincadas e espúrias em torno do petróleo, lhes tenta lançar, visando o fracasso da sua acção. A Antram, a associação dos Transportadores, foi a primeira força adversa aos seus próprios associados. Recorde-se que esta associação, curiosamente assessorada pela Cunha e Vaz e associados, talvez a agência de comunicação que hoje tem mais clientes daquilo a que se chama o “establishement”, é acusada por muitos pequenos e médios transportadores de representar, em grande medida, os interesses dos grandes transportadores. Mantendo negociações com o governo, que se arrastam há meses sem resultados expressivos, a Antram demarcou-se da paralisação. Foi a primeira expressão do sistema que fala, em prol do “status quo”, sensível ao discurso governativo de que há que fazer sacrifícios para o país vencer a crise e avançar. Ora, a questão, e pode ter residido aqui o erro fatal da Antram, auto-investida numa condição colaborante com o governo, é que não se pode ser patriota ou solidário quando está tudo errado no mundo do petróleo em que a Europa deixou de enredar. Este princípio aplica-se, da mesma maneira, à intervenção do Presidente da República, no 10 de Junho, pedindo que os portugueses sejam exigentes e rigorosos consigo próprios, outra fórmula para pedir sacrifícios às pessoas. Num país como Portugal, cheio de desigualdades e onde as reformas de Sócrates já levam três anos mas ainda não tiveram resultados no nível de vida das pessoas, é difícil pedir sacrifícios e ser atendido ou respeitado. Por outro lado, houve uma sensação de autismo e irrealidade ao ver Cavaco falar na história e no orgulho de ser português e, como país numa grave convulsão e com rupturas
A segunda voz do sistema a falar foi Marcelo Rebelo de Sousa, no domingo passado, considerando a paralisação ilegal, arriscando pesadas penalizações. Depois, durante a semana, foram falando as vozes mais óbvias do sistema, Sócrates, Mário Lino, Pedro Silva Pereira, os dirigentes socialistas mais alinhados com a acção do executivo, apelidando, de uma ou outra forma, os camionistas de desordeiros e selvagens. Ora, o que talvez tivessem sido necessárias eram vozes do sistema
Quando o sistema está fechado e bloqueado, acontecem coisas destas. As associações que deviam ter uma natureza de contra-poder, equilibrando a correlação de forças e o próprio sistema, funcionam com meros apêndices do governo. Por seu lado, os grevistas, sem apoio formal daqueles que deveriam ser os seus representantes, acabaram por desenvolver uma luta em formas desorganizadas e mesmo caóticas, consequência, em grande medida, de a Antram não cumprir o seu papel e o que se esperava dela. Mesmo quando tal acontece, a função dos governos é encontrar alternativas rápidas, que denotem flexibilidade. Ora, o governo, em plena paralisação dos camionistas, continuou centrada na Antram. Não só não se estabeleceram formas de diálogo rápidas com os grevistas ad hoc como se acicataram os seus ânimos com a insinuação de que eram desordeiros.
Com excepção dos pescadores, um sector privado por excelência, é preciso lembrar que a esmagadora maioria dos sectores profissionais que se vergaram ao governo, comem à mesa do Orçamento de Estado, sendo muito menos livres para resistir, custe o que que custar. Esta é mais uma das razões que, apesar de contribuir para resolver as questões no imediato, pode dar uma imagem ilusória do país e aumentar o mal-estar a médio prazo. Por várias de ordens de razão, ainda que muito distintas, e até criando um clima de grande incompreensão entre sectores profissionais que, na essência, lutam pelos mesmos direitos, o que ilustra toda a complexidade da situação. Por um lado, quem teve de se render por viver do salário que o Estado lhe paga, apesar de considerar que os seus direitos continuaram a ser afectados, fica descontente ou frustrado. Por outro lado, quem tem os salários do Estado preservados, e são três milhões em Portugal que vivem do Orçamento público, não entende, verdadeiramente, a outra parte do país real que trabalha no sector privado, sejam eles donos de empresas, gerentes ou empregados, e que está a pagar a crise como ninguém, em virtude de várias vicissitudes do mercado, a quebra da procura, o crescimento exponencial das dívidas, o aumento das matérias-primas. Os camionistas podem ser um bom exemplo desta incompreensão. Como Marx dizia, há classes que estão de costas voltadas e não unidas porque ainda não atingiram o nível de consciência que lhes permita lutar juntas. A forma como um polícia ou um professor perde regalias, um trabalhador por conta de outrem vê o seu salário emagrecer por causa da inflação ou um pequeno ou médio empresário dos transportes se sente com a corda ao pescoço por causa do aumento do preço dos combustíveis, pode ter um quadro e denominador comum. Quais? A exploração do sistema capitalista que está de volta? Os lucros fabulosos de alguns grandes grupos económicos e grandes especuladores, que estão de volta, como sempre acontece nas grandes crises? Os dogmas dos governantes, soluções consagradas que não admitem rejeição de espécie nenhuma, como as regras sacrossantas do mercado? Talvez um pouco de tudo. Mas é cedo para avaliações porque é terreno é complexo.

A Europa pirómana

Algumas certezas, porém, parecem existir. Falharam governos sucessivos em Portugal, que não conseguiram, em momento nenhum, de forma estável e duradoura, criar um país mais justo e mais igualitário e falhou o governo europeu, nas suas várias etapas, desde 1957. Esta crise dos camionistas serviu para provar que esta Europa não tem capacidade para resolver os problemas das pessoas e que ultrapassou todos os limites do autismo, da insensibilidade política e da falta de estratégia. A Europa não conseguiu reduzir, de forma concertada, os impostos sobre os combustíveis, talvez porque, mesmo se houvesse vontade de muitos países, seria quase impossível contornar o bloqueio que a Europa, ela própria, criou ao criar um monstro de 27 países, amarrados uns aos outros, vítimas absurdas de uma ineficácia que se, alimenta, na origem, do fantasma da II Guerra Mundial, da cartilha neoliberalista de quanto mais mercados melhor e de uma ideia megalómana e insana de competir com a Rússia no que se refere ao Leste. Esta semana, a UE pregou mais um prego do seu caixão. O aumento da carga semanal para 68 horas é uma medida grotesca do ponto de vista social, que revolta os cidadãos, já exangues com a crise económica que se vive, e os afasta mais da Europa. Muitos países votaram contra mas o Leste apoiou a medida. Paradoxalmente, depois de ter provocado grande instabilidade ao Ocidente no tempo do comunismo, usando os vários PC europeus, o Leste, hoje mais papista do que o Papa na defesa das regras mais puras do mercado, preparado para viver as formas mais arcaicas e injustas do capitalismo, talvez para compensar e ajustar contas com o passado. Entretanto, à hora do fecho desta edição, a Irlanda vota em referendo o Tratado de Lisboa. Nos últimos meses, o “não” cresceu bastante, mesmo com o apoio ao “sim” da maioria dos partidos irlandeses, o que espelha o divórcio crescente dos cidadãos com as instituições e os partidos.
Apesar da Irlanda continuar, em boa medida, imune à crise económica, o facto é que o aumento do horário de trabalho é mais um sinal de descrença no futuro da Europa, criada, entre outras razões, para aumentar a qualidade de vida dos cidadãos. Ora, assistindo-se, gradualmente, à diminuição do Estado Providência e à perda de direitos e regalias dos trabalhadores, esta Europa que quer acabar com os períodos de ócio dos trabalhadores, o seu bem-estar e a sua liberdade, e fazer deles escravos do trabalho, é uma Europa das trevas.|

Os abusos sexuais podem ser inventados?

Freud chegou à conclusão que as experiências sexuais precoces podiam ser imaginadas mais do que realmente vividas e experimentadas. Como articular esta posição com a perspectiva actual de que o abuso sexual infantil é muito mais comum do que se pensava no tempo de Freud, bem como com as denúncias constantes de abuso sexual infantil? Coimbra de Matos, Carlos Amaral Dias, Celeste Malpique, Eurico Figueiredo, Eduardo Sá, Jaime Milheiro, João Seabra Diniz e Rui Coelho deram as suas opiniões ao nosso jornal.


Coimbra de Matos: “O abuso sexual infantil tinha menos visibilidade social. Há, actualmente, um exagero de “denúncias” – é um fenómeno de rebound: a acusação precipitada alimenta a caça às bruxas. Só nos falta um “Ministério de Combate aos Vícios e Exaltação das Virtudes”.

Carlos Amaral Dias: “O que Freud afirmou não é incompatível com a verificação contemporânea de que o abuso sexual infantil é frequente. Porém, a grande maioria dos pacientes que nos procuram para psicanálise, provêm mais dos que “viveram” imaginariamente o que nós designamos por sexualidade infantil do que qualquer experiência proveniente do real.
Quanto ao resto, as fantasias sexuais inconscientes nunca fizeram primeira página dos jornais nem ontem, nem hoje, nem provavelmente amanhã.”

Eduardo Sá: “Se me permite chamar-lhe a atenção, as famílias hoje são, incomparavelmente, mais cuidadosas para com as crianças. No final do século XIX era banal que as crianças (quando não tomavam contacto regular com a sexualidade dos adultos) fossem, precocemente, iniciadas na sexualidade através de episódios de assédio, de abuso e de violação. No século XIX o abuso era, incomparavelmente, mais banal do que no século XXI! Quando Freud reparou nas “cicatrizes” irreparáveis que essas experiências precoces desencadeavam, chamou a atenção para o modo como a sexualização precoce era maligna. E escorregou na sua leitura, quando perspectivou a sexualidade como um eixo de todo o desenvolvimento infantil. Os danos do abuso sexual eram, naquela altura como hoje, tomados como terríveis e malignos. As construções em redor da sexualidade só seriam possíveis, com Freud como hoje, quando as crianças eram, de alguma forma, expostas à sexualidade dos adultos. As crianças nunca fantasiam em torno da sexualidade se nunca forem expostas à sexualidade. Portanto, imaginar, compulsivamente, em torno da sexualidade já supõe um presumível maltrato sexual. Em resumo, construções compulsivas acerca da sexualidade e os abusos sexuais serão dois degraus diferentes de um mesmo continuum que faz com que as crianças adoeçam com a ajuda de maus-tratos seuxais.”

Rui Coelho: “Não sei se necessariamente o abuso sexual é mais comum do que se pensava, o que há e, felizmente, é uma crescente consciência desta problemática, discutida nultifactorialmente de modo a que o cidadão tenha uma apercepção que anteriormente não tinha, fosse por desconhecimento, omissão ou, até, hipocrisia e/ou cinismo. Há, assim, fundamentalmente um maior cuidado e vigilância pelos Direitos da Criança, mas se calhar ainda é preciso fazer mais, pois está-se, potencialmente, a promover uma melhor prevenção na Saúde Mental.”

Jaime Milheiro: “Os processos de construção e de funcionamento da realidade interna em nada contrariam o que hoje se observa.”
“O trabalho fundamental de Freud foi sobre a realidade interna, que será sempre uma organização pessoal e característica de cada um, distinta da realidade externa que é a todos comum. Foi da descoberta dos processos de construção e de funcionamento dessa realidade interna que ele retirou as conclusões que refere, as quais em nada contrariam o que hoje se observa. Trata-se de leituras diferentes, em planos diferentes.”

Eurico Figueiredo: “Tanto o problema do abuso sexual precoce como das fantasias sexuais precoces são, como diria o Marques de la Palisse, possíveis.”
“Os problemas que coloca, o problema do abuso sexual precoce e das fantasias sexuais precoces, são, como diria o Marques de la Palisse, os dois possíveis. O quadro psicanalítico, em si, não é suficiente para em cada caso podermos saber qual é a verdade!”

Celeste Malpique: “A psicanálise é a procura da verdade sobre si-mesmo e não se avança sem algum sofrimento.”
“É o que acontece a qualquer analisando que, inicia a análise com desejo de colaborar para se aliviar dos sintomas que o atormentam e que ,ao longo do processo se debate entre o desejo de se conhecer e a resistência que inconscientemente oferece ao seu autoconhecimento, pois terá de se confrontar com angústias e aspectos que a si próprio ocultava…A psicanálise é a procura da verdade sobre si-mesmo e não se avança sem algum sofrimento.”

João Seabra Diniz: “Os processos psíquicos são também reais, porque são algo realmente vivido pela pessoa e, portanto, são para ela reais”
“A pergunta levanta uma questão fundamental da história da teoria psicanalítica e um ponto de teoria que é impossível esclarecer devidamente aqui. Trata-se do papel da fantasia, da elaboração imaginativa que se faz, ou não faz, das experiências que se vão vivendo, e que pode ter uma dimensão distante da consciência clara. Freud pensou inicialmente que as narrativas que ouvia dos seus pacientes correspondiam a factos realmente acontecidos. Sobre isso baseou uma primeira formulação da sua teoria das neuroses.
Com o andar do tempo, foi descobrindo que a construção imaginativa feita sob o impulso de forças mais ou menos inconscientes e a partir de experiências relacionais, poderia também produzir sintomas, como se se tratasse de factos realmente acontecidos. Lembro-me de um artigo publicado já há bastantes anos no International Journal of Psychoanalysis, que no seu título desusado procurava afirmar a mesma ideia: “A fantasia realiza aquilo que representa”. Quando pensamos em realidade referimo-nos, em princípio à realidade física. No entanto, os processos psíquicos são também reais, porque são algo realmente vivido pela pessoa e, portanto, são para ela reais.
Mas atenção. Freud nunca disse que não existia o abuso sexual das crianças. Disse que os sintomas poderiam ser produzidos pela dinâmica da fantasia, sem que os factos acontecidos correspondessem exactamente ao que era imaginado e à interpretação que se lhes dava.
Penso que sempre se soube que o abuso sexual de crianças não era um acontecimento raro. O que acontece é que actualmente se está mais atento a esses factos, ao passo que anteriormente haveria a tendência a minimizar a sua gravidade. Mais despertos para este problema, temos que reconhecer que, muitas vezes, estamos ainda à procura da melhor maneira de actuar para proteger devidamente a criança, salvaguardando os seus interesses, no imediato e no futuro.”|

A revolução sexual de Freud

Sigmund Freud efectuou uma verdadeira ruptura na sexualidade, ao romper com a sua base exclusivamente biológica, anatómica e genital para fazer dela a essência psíquica da actividade humana, criando também uma teoria totalmente inovadora sobre sexualidade infantil. Os textos de Freud sobre a matéria têm mais de cem anos mas a sua marca de modernidade faz com que pareçam escritos no presente. O SEMANÁRIO publica extractos dos seus ensaios sobre a teoria da sexualidade, editados pela Publicações Europa-América.
“Um aspecto da visão popular da pulsão sexual é que ela está ausente na infância e só desperta no período de vida a que se dá o nome de puberdade. No entanto, isto não é só um simples erro, como também tem tido graves consequências, porque é principalmente a essa ideia que devemos a nossa ignorância quanto às condições fundamentais da vida sexual. Um estudo aprofundado das manifestações da infância revelar-nos-ia provavelmente as características essenciais da pulsão sexual e mostrar-nos-ia o curso do seu desenvolvimento e o modo como é composta a partir de verias fontes.
É visível que os autores que se ocupam a explicar as características e reacções dos adultos dedicam muito mais atenção ao período arcaico compreendido pela vida dos antepassados do indivíduo – isto é – reconhecem muito mais influência à hereditariedade – que a outro período arcaico, que está compreendido no tempo de vida do próprio indivíduo – isto é, a sua infância. Seria de supor que a influência deste último período seria mais fácil de compreender e que deveria ser considerado antes da infância da hereditariedade. É certo que na literatura a respeito desta matéria encontramos ocasionalmente comentários sobre a actividade sexual precoce em crianças pequenas – sobre erecções, masturbação e até actividades que se assemelham ao coito. Mas são sempre citadas apenas como acontecimentos excepcionais, como raridades, ou como exemplos horríveis de uma depravação precoce. Que eu saiba, nem um único autor reconheceu a existência regular de uma pulsão sexual na infância; e a razão para essa estranha omissão deve procurar-se, penso eu, em parte nas convenções sociais, que os autores respeitam devido à maneira como eles próprios foram educados, e em parte num fenómeno psicológico que até hoje ninguém conseguiu também explicar. O que tenho em mente é aquela amnésia peculiar que, no caso da maioria das pessoas, mas de modo algum em todas, lhes esconde o princípio da sua infância, até aos seus 6 ou 8 anos. Até agora, não nos ocorreu sentir qualquer espanto perante essa amnésia, embora pudéssemos ter tido boas razões para fazê-lo. Porque sabemos por outras pessoas que, durante esses anos, dos quais mais tarde nada retemos na memória além de algumas recordações ininteligíveis e fragmentárias, reagimos com vivacidade a impressões, que éramos capazes de exprimir dor e alegria de um modo humano, que dávamos provas de sentir amor, ciúme e outros sentimentos apaixonados que na altura nos emocionavam profundamente, e até fazíamos comentários considerados pelos adultos como excelentes provas de possuirmos um bom discernimento e os começos de uma capacidade de julgamento. E, de tudo isto, depois de adultos, não temos o mínimo conhecimento próprio! Por que razão se deixa ultrapassar a esse ponto pelas outras actividades da nossa mente? Temos, pelo contrário, boas razões para crer que em nenhum outro período a capacidade para receber e reproduzir impressões é maior que precisamente nos anos da infância.
Por outro lado, devemos presumir, ou devemos convencer-nos pelo exame psicológico de outras pessoas, que essas mesmas impressões que esquecemos deixaram no entanto as mais profundas marcas na nossa mente e tiveram um efeito determinante sobre todo o nosso desenvolvimento. Não pode pois haver nenhuma real abolição das impressões da infância, mas antes uma amnésia semelhante à que os neuróticos exibem para com acontecimentos posteriores, e cuja essência consiste simplesmente em manter essas impressões fora da consciência, isto é, em recalcá-las. Mas quais são as forças que provocam esse recalcamento das impressões da infância? A pessoa que conseguir resolver este enigma terá também explicado, penso, a amnésia histérica.
Entretanto não podemos deixar de observar que a existência de uma amnésia infantil nos fornece mais um ponto de comparação entre os estados psíquicos das crianças e os dos psiconeuróticos. Já encontrámos um outro ponto na teoria a que chegámos no sentido de a sexualidade dos psiconeuréticos ter permanecido, ou sido levada de volta, a uma fase infantil. Poderá ser que, afinal de contas, também a amnésia infantil possa estar em relação com os impulsos sexuais da infância?
Além disso, a conexão entre a amnésia infantil e histeria é mais que um simples jogo de palavras. A amnésia, que ocorre devido ao recalcamento, só é explicável pelo facto de o sujeito já estar de posse de um reservatório de traços de memória que foram retirados do uso consciente e que agora, por elo associativo, atraem para si o material que as forças do recalcamento pretendem repelir da consciência. Pode dizer-se que, sem amnésia infantil, não haveria amnésia histérica.
Estou convencido de que a amnésia infantil, que transforma a infância de todos nós em algo de semelhante a uma época pré-histórica e que lhe esconde o começo da sua própria vida sexual, é responsável pelo facto de, regra geral, não se dar importância à infância no desenvolvimento da vida sexual. As lacunas que assim surgiram no nosso conhecimento não podem ser preenchidas por um único observador. Já em 1896 insisti no significado dos anos da infância para a origem de certos fenómenos importantes ligados à vida sexual, e desde então ainda não parei de sublinhar o papel de desempenhado pelo factor infantil na sexualidade.”|

Será que a luta de classes está de regresso?

As limitações ao Estado Providência, a perda de direitos e regalias, a erosão dos salários, o aumento do desemprego, realidades que hoje se fazem sentir em muitos países da Europa, particularmente em Portugal, podem ser, a longo prazo, o gérmen de uma nova luta de classes, à luz dos conceitos marxistas? O SEMANÁRIO fez esta pergunta a vários pensadores portugueses, como foi o caso de Jaime Nogueira Pinto, Joaquim Aguiar, José Adelino Maltez, José Gil, Manuel Villaverde Cabral e Ivan Nunes.

As limitações ao Estado Providência, a perda de direitos e regalias, a erosão dos salários, o aumento do desemprego, realidades que hoje se fazem sentir em muitos países da Europa, particularmente em Portugal, podem ser, a longo prazo, o gérmen de uma nova luta de classes, à luz dos conceitos marxistas? O SEMANÁRIO fez esta pergunta a vários pensadores portugueses, como foi o caso de Jaime Nogueira Pinto, Joaquim Aguiar, José Adelino Maltez, José Gil, Manuel Villaverde Cabral e Ivan Nunes.

Joaquim Aguiar

Joaquim Aguiar é peremptório. “A crise encoberta do Estado Providência na Europa gera uma crise visível e generalizada de condução política, difunde efeitos sociais de insegurança e de acentuação das desigualdades, promove fenómenos de criminalidade difusa e segmentada, mas não gera movimentos de luta de classes.”
Este politicólogo, assessor do Presidente da República, Cavaco Silva, depois de o ter sido, também, de Mário Soares e Ramalho Eanes, não deixa, porém, de abrir a porta, num contexto de crise social, ao que chama “expedientes de sobrevivência individual”, que irão “pôr em causa o contrato social de solidariedade entre grupos de rendimentos e entre gerações, impedindo a instalação de dispositivos de políticas sociais que ainda pudessem ser sustentáveis nestas novas condições.”
Joaquim Aguiar traça um quadro ainda mais negro quando diz: “Neste novo contexto de insegurança social, sem previdência (financeira) e sem providência (divina ou de distributivismo social), haverá quem justifique o recurso a formas de criminalidade com as imagens de movimentos revolucionários (como na América Latina) ou com as fidelidades a redes de protecção e de influência (como na Itália meridional). São disfarces ou máscaras, que encobrem fenómenos cuja verdadeira natureza é o ajustamento a novas situações pela via de procedimentos ilegais e ilegítimos.”
Mas nem por isso Joaquim Aguiar se afasta da sua tese, rematando: “Nada disso gerará movimentos de luta de classes, pela simples razão de que não há centros de acumulação de recursos financeiros que possam ser apropriados para posterior distribuição. Não há movimentos de luta de classes para ir apropriar dívidas e responsabilidades futuras. Onde não houver centros de acumulação de riqueza, não haverá mobilização para movimentos de transformação revolucionária.”
O politicólogo aproveita, ainda, para fazer uma radiografia da crise do Estado Providência e das contradições dos governantes ao lidarem com ele. Antes defenderam-no, hoje fazem a sua desmantelação mas nem por isso continuam a justificá-lo e defendê-lo. Diz Joaquim Aguiar: “A crise do Estado Providência continua encoberta porque os que se referem a ela são os mesmos que antes instalaram e defenderam esses dispositivos de políticas sociais e que sempre recusaram que eles fossem insustentáveis. O que fazem agora, dizendo que querem salvar o que antes garantiam que era eternamente legítimo e possível, é uma política a que não atribuem nome: desmantelam o que antes instalaram com a redução dos direitos que atribuíram, mas justificam o que fazem dizendo que querem defender o que estão a desmantelar. E terão de continuar a fazê-lo no futuro, porque o crescimento económico medíocre não permitirá compensar os efeitos do envelhecimento demográfico e do aumento dos custos com a saúde, a educação, os serviços do Estado e a construção de infra-estruturas. Considerando o que já é o nível actual de extracção fiscal na Europa, esta redução de direitos do Estado Providência não permite o ajustamento das sociedades com o retorno a modelos de segurança individualizada (poupança ou seguros) porque o rendimento disponível diminui para continuar a financiar o que não será sustentável, o que implica que aumentará o grau de insegurança individual e colectiva.”

José Adelino Maltez

Também José Adelino Maltez não parece considerar que desponte uma nova luta de classes. Escreve este professor da Universidade Técnica de Lisboa: “O que agora temos é uma nova questão social, misturando problemas não resolvidos da velha questão social, que Jerónimo de Sousa ainda traduz no calão da velha luta de classes, com a emergência de uma nova realidade da governança sem governo, que tanto dizemos ser integração europeia como globalização.”. Também Adelino Maltez começou por fazer o raio X ao Estado Providência: “O chamado “Estado Providência”, ou, em termos gerais, a intervenção dos aparelhos de Estado na sociedade e na economia, tanto pode ser a resposta bismarckiana à questão social da segunda metade do século XIX que, em Portugal, foi traduzida pelo Estado Novo salazarento, com meio século de atraso, como o “Welfare State” do pós-guerra, do relatório Beveridge, que começou a ser traduzida entre nós com o marcelismo, pintando-se de vermelho pintasilguista com o PREC e a pós-revolução do Bloco Central, dita keynesiana.”
Adelino Maltez não deixa de elogiar Marx, o que só surpreende quem não o conhece bem. “Marx é um velho subsolo filosófico que a todos nos ilumina, mesmo a liberais como eu e nada tem a ver com as vulgatas neomarxianas do leninismo, do maoísmo. Até o velho Karl se insurgia contra as ideologias de conserva, dizendo que não era marxista. Na prática, a teoria é outra, porque, sobretudo em Estados da nossa dimensão, a maioria dos factores de poder já não são nacionais, e os governos são meras pilotagens automáticas que só podem garantir as independências nacionais se conseguirem gerir dependências e interdependências. Pena é que não reparem na velha lição segundo a qual os problemas económicos só podem resolver-se com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Isto é, só se conseguirem repolitizar os velhos Estados, libertando-se das adiposas gorduras de aparelhos que foram feitos para dar resposta à velha questão social, mas que não admitem que a nova questão social implica a meritocracia e a consequente avaliação das competências, segundo o critério da justiça e não da inveja igualitária.”

Ivan Nunes

Já o sociólogo e professor Ivan Nunes não tem dúvidas que “as ‘lutas de classes’ não desapareceram.” Em relação ao futuro, também não exclui que tal possa vir a acontecer. Porém, faz uma ressalva. “Para haver ‘novas lutas de classes’, não basta haver boas razões para isso. É preciso que os trabalhadores encontrem os meios de se organizarem politicamente de forma eficaz.” O sociólogo entrevê dificuldades. “O movimento operário e o sindicalismo atravessam tempos muito difíceis. Há variações relevantes de país para país, distintas tradições (a França não é igual à Itália que não é igual à Grã-Bretanha que não é igual a Portugal), mas a tendência é global, e decorre da evolução do capitalismo desde as últimas décadas do século XX.”
Ivan Nunes acrescenta: “o que é certo, no final do século XX e início do século XXI, é que os trabalhadores estão mais fracos do ponto de vista organizativo do que estiveram em meados do século. Os sindicatos têm menos membros, os trabalhadores estão mais diferenciados, e a sua situação laboral frequentemente precária não ajuda à sindicalização. A tendência global para as privatizações (iniciada com Thatcher, mas seguida por quase toda a parte) também dificultou a vida aos sindicatos, porque a mobilização é mais fácil em grandes empresas do sector público. Há ainda o aspecto ideológico, após o desaparecimento da URSS: agora, para onde quer que se olhe, só há capitalismo, e em quase todos os casos de um tipo pior do que aquele que temos aqui. Por fim, a capacidade que o capital ganhou para se deslocalizar também é um factor.”
Sobre a crise do Estado-Providência, Ivan Nunes considera que esta ” é uma consequência do enfraquecimento político da classe operária. Não é, até agora, algo que tenha desencadeado uma nova força dos sindicatos.”

Jaime Nogueira Pinto

Também Jaime Nogueira Pinto, apesar de ter uma formação política muito diferente da de Ivan Nunes, considera que pode haver uma nova luta de classes mas há que ter ” muito cuidado nesta ‘actualização’ dos ‘conceitos marxistas’. Nogueira Pinto recorda que “o George Sorel tem, nas “Ilusions du Progrès”, um livro ainda hoje notável, e a propósito do valor e da actualidade de Marx e das suas doutrinas, uma opinião que perfilho: têm valor como “cânones de interpretação da realidade”; por exemplo, o conceito de “classe”, e sua dinâmica, a análise social em termos de classes. Mas valem pouco ou nada, como dogmas, como os usam os comunistas; ou como uma ferramenta crítica de agitprop, como os partidos esquerdistas radicais. Que já nem sequer o leram.” O professor remata que “se há classes hoje, deixaram de ser “revolucionárias”. São razoavelmente egoístas e “burguesas”. Todas.”

Villaverde Cabral

A exemplo de Jaime Nogueira Pinto, Manuel Villaverde Cabral não crê numa nova luta de classes. “A história não se vai repetir, refere. No entanto, este professor e investigador do ICS não deixa de admitir que “quem se sente prejudicado, vai sempre protestar, mas em novos moldes, até porque o operariado do tempo de Marx também já não existe hoje, nem deverá existir no futuro.”

José Gil

O filósofo José Gil, professor na Universidade Nova de Lisboa, começa por dizer que “a longo prazo é muito difícil prever a dinâmica social. Por outro lado, muitos conceitos marxistas deixaram de ter a pertinência do sentido que lhe era atribuído. Precisamente, muitos novos pensadores (como Toni Negri e Michael Hardt) tentam dar uma interpretação completamente nova de conceitos como “classe”, “luta de classes”, lendo certas obras de Marx de modo muito original. Isto interessa-nos para a questão que levanta: o trabalho “hegemónico” (que qualitativamente é mais importante na sociedade de hojeh) será o trabalho “imaterial”, e não aquele, material, ligado também a efeitos puramente materiais (como está implícito na ideia de “regalias”, “desemprego”, erosão de salários”).”. José Gil desenvolve este último conceito: “O trabalho imaterial diz respeito à biopolítica e age sobre a informação, o conhecimento, os afectos. Uma hospedeira num avião “vende” o seu sorriso, a sua capacidade de relacionamento com os passageiros, a sua simpatia, e não só as horas de trabalho material. Ora este tipo de trabalho cria novas subjectividades e novas formas de exploração. A nossa sociedade capitalista vai nesse sentido. Será por aí que, as novas formas de subjectivação se tornarão insuportáveis.”
O filósofo aponta, ainda “toda uma série de novos conflitos que provêm de outros fenómenos que não do trabalho apenas: imigração, xenofobia, o fosso cada vez maior entre “ricos” e “pobres” (conceitos a repensar numa subjectividade “nua”), etc.”, com relevância para a luta de classes. José Gil termina com uma pergunta. “Quem serão os novos “sujeitos” da nova “luta de classes”? Não o “proletariado”, não “os trabalhadores” (por exemplo, os artistas podem revoltar-se), mas um outro tipo de subjectividade que se está a formar. É nesse novo contexto que os fenómenos que aponta (desemprego, erosão dos salários) devem ser pensados.”|