2023/06/01

A crise dos combustíveis e a crise da Europa

Quando hoje os camionistas se revoltam, um pouco por toda a Europa, e paralisam a actividade económica europeia, estão a dar o murro na mesa perante a inépcia dos seus governos, o murro na mesa que a Europa nunca soube dar aos interesses do crude negro. Já desde o choque petrolífero de 1973.

“Havia muito tempo que dominava um sentimento generalizado de que os princípios e os metódos da velha política e da sua diplomacia estavam a enterrar a Europa e, para além disso, já se entrara no período em que os especialistas começavam a ser rejeitados.”
Robert Musil, “O Homem sem Qualidades”

A crise dos camionistas um pouco por toda a Europa é o espelho da falência de soluções na Europa. Continente praticamente sem petróleo, com excepção da Rússia, a Europa viveu um choque petrolífero de 1973 com a corda ao pescoço mas, quando a tempestade passou, deixou-se ficar praticamente na mesma. É verdade que o discurso das energias alternativas se foi intensificando, ano após ano, mas, também não menos verdade sempre sem resultados pioneiros e amplos. Os países, as cidades, a vida dos habitantes, continuaram a ser organizados, tendo o petróleo como paradigma. O que faz pensar que o discurso das energias alternativas e do ambiente não passou, durante todo este tempo, no que se refere à política real do Estado e às suas mudanças, de mera propaganda, com fins eleitoralistas ou querendo dar uma imagem moderna e civilizacional que não corresponde à realidade.
É no sul da Europa que o problema é maior, com as cidades organizadas em torno do automóvel, muito menos do que na Europa do Norte, como se houvesse uma correlação entre desenvolvimento menor, primazia aos interesses e corrupção e a dependência do petróleo. É no sul da Europa que a carga fiscal em relação aos combustíveis é uma das maiores. É na< Europa do Sul, Portugal, Espanha, França, Itália, que os protestos dos camionistas têm sido mais intensos.
Mas este agravamento dos problemas a sul não nos devem fazer afastar, nunca, do problema político do petróleo. Serventuários ou reféns dos múltiplos e poderosos interesses económicos que modelam a economia global, tanto a norte como a sul, muitos países europeus parecem, na verdade, nunca ter tido vontade política para substituir o petróleo como paradigma energético. Ou, se quisermos ser mais benevolentes, nunca os deixaram, verdadeiramente, caminhar para um novo modelo. Os lobbies do petróleo americanos, do Médio Oriente, da Rússia, que andam de mãos dadas com o poder político dos respectivos países e que, em muitos casos o sustentam financeiramente, podem ter feito, até hoje, um bloqueio às mudanças.
Quem não tem autonomia e independência económica acaba também por ficar condicionado politicamente. Quando a Europa se verga politicamente aos EUA, por exemplo na questão da Guerra do Iraque, dos campos de prisioneiros de Guantanámo ou dos voos ilegais da CIA, é também a questão do petróleo que está na berlinda. Quando a Europa não fala grosso com a Rússia, é também no petróleo do Cáucaso que está a pensar. Quando a Europa faz tanta coisa que a envergonha, como disputar as graças do ditador Hugo Chávez ou de alguns ditadores africanos com petróleo como recurso, é novamente o petróleo que está em questão. Há muitos exemplos a dar, mas, para ficarmos por Portugal, e até porque Sócrates tem sido particularmente prolixo nestas matérias, convém lembrar o “namoro” com Chávez, que já envolveu vários encontros com Sócrates.
Quando hoje os camionistas se revoltam, um pouco por toda a Europa, e paralisam a actividade económica europeia estão a dar o murro na mesa perante a inépcia dos seus governos, o murro na mesa que a Europa nunca soube dar aos interesses do crude negro. Porque não soube e porque não quis. A maneira como hoje se governa no continente europeu é não só defensora do “status quo” e dos interesses que giram, e sempre giraram à volta do crude, como é acomodada e facilitista.
Na origem directa dos protestos dos camionistas tem estado, como reivindicação principal, a descida dos impostos que oneram os combustíveis, representando, em muitos casos, cerca de metade do preço final da gasolina e do gasóleo. Os governos europeus habituaram-se a esta forma simples e garantida de ganhar dinheiro, explorando, ano, após ano, os seus cidadãos através dos impostos. Os governos conseguiram, década após década, tornar esta questão um dado adquirido, alienando os cidadãos para a sua necessidade financeira, de formar a gerir e equilibrar as contas públicas. Está tudo invertido. A urgência deveria ser a de a Europa cortar com o paradigma do petróleo. A urgência deveria ser a de a Europa encontrar fontes alternativas de financiamento das contas públicas através de receitas fiscais, de forma a compensar as que seriam perdidas com a gasolina e o gasóleo.
Em vez disso, ano após ano, a Europa tem-se afundado nesta teia, neste sistema perverso. Hoje, as finanças dos Estados estão muito dependentes dos impostos dos combustíveis, ao ponto de não conseguirem passar sem o grosso destes encargos. Exactamente, porque ao longo dos anos não criaram alternativas. O autismo e a indiferença de alguns governos europeus em relação aos protestos dos camionistas tem muito a ver com esta espécie de nó górdio que se criou, sendo capazes de utilizar todos os estratagemas e artifícios demagógicos para manter o sistema. Também aqui, o nosso primeiro-ministro, José Sócrates foi campeão da demagogia e da manutenção do satut quo. Sem a originalidade de um Nicolas Sarkozy e até a audácia, imagine-se, de um José Zapatero que sempre foi considerado demasiado sonso, Sócrates andou a dizer nos últimos dias que Portugal não podia baixar os impostos sobre os combustíveis porque seria onerar aqueles que não têm carro e que não utilizam combustíveis nas suas vidas profissionais. Como se tudo não fosse movido a petróleo na vida de hoje, directa ou indirectamente, exactamente o mundo criado e sustentado pelos governos europeus.
Não é admissível que Sócrates use um argumento demagógico e falacioso deste tipo. Já esta semana, a propósito da paralisação dos camionistas, Sócrates criticou com dureza a iniciativa por impedir quem quer trabalhar, de o fazer. Apesar dos episódios dramáticos que aconteceram durante a paralisação, como a morte de um camionista que estava num piquete de greve, Sócrates tem obrigação, também aqui, de não ser demagógico e não tentar tapar o Sol com uma peneira. É nestes momentos que vê a têmpera dos homens. Até aqui, Sócrates tem resistido com receitas que consistem apenas em esperar que os protestos parem, que a chuva páre, sem ter praticamente nada que dar em troca e não tendo que se esforçar por soluções complexas ou arrojadas da parte de um governante. Sócrates acaba por viver da imagem que conseguiu criar, de que o país está em estado de necessidade, e que todos os sacrifícios podem ser exigidos. A cooperação estratégica de Cavaco com o governo também tem dado margem a Sócrates para não ter que se esforçar. Ora, hoje, com a crise dos combustíveis tudo foi diferente e foi aqui que se viu se Sócrates tem, ou não têmpera, se esteve, ou não, à altura da situação. Ora, parece ter ficado a ideia de que Sócrates usou a fórmula habitual de Sócrates de actuar, de esperar que a tempestade passasse. Ora, a tempestade não passou, o bloqueio colocou o país numa das situações mais difíceis desde o PREC e arriscou em demasia, com prejuízo para a economia portuguesa. O que faria Sócrates se não tivesse tido acordo com os camionistas. Parece notório que o primeiro-ministro não tinha Plano B.

A crise dos camionistas

Mesmo que não tenham um pensamento sofisticado e consciência política, os camionistas têm, certamente, a percepção de que a sua luta foi difícil, pelas teias que o sistema e o modo como está organizado, no paradigma e nas relações intrincadas e espúrias em torno do petróleo, lhes tenta lançar, visando o fracasso da sua acção. A Antram, a associação dos Transportadores, foi a primeira força adversa aos seus próprios associados. Recorde-se que esta associação, curiosamente assessorada pela Cunha e Vaz e associados, talvez a agência de comunicação que hoje tem mais clientes daquilo a que se chama o “establishement”, é acusada por muitos pequenos e médios transportadores de representar, em grande medida, os interesses dos grandes transportadores. Mantendo negociações com o governo, que se arrastam há meses sem resultados expressivos, a Antram demarcou-se da paralisação. Foi a primeira expressão do sistema que fala, em prol do “status quo”, sensível ao discurso governativo de que há que fazer sacrifícios para o país vencer a crise e avançar. Ora, a questão, e pode ter residido aqui o erro fatal da Antram, auto-investida numa condição colaborante com o governo, é que não se pode ser patriota ou solidário quando está tudo errado no mundo do petróleo em que a Europa deixou de enredar. Este princípio aplica-se, da mesma maneira, à intervenção do Presidente da República, no 10 de Junho, pedindo que os portugueses sejam exigentes e rigorosos consigo próprios, outra fórmula para pedir sacrifícios às pessoas. Num país como Portugal, cheio de desigualdades e onde as reformas de Sócrates já levam três anos mas ainda não tiveram resultados no nível de vida das pessoas, é difícil pedir sacrifícios e ser atendido ou respeitado. Por outro lado, houve uma sensação de autismo e irrealidade ao ver Cavaco falar na história e no orgulho de ser português e, como país numa grave convulsão e com rupturas
A segunda voz do sistema a falar foi Marcelo Rebelo de Sousa, no domingo passado, considerando a paralisação ilegal, arriscando pesadas penalizações. Depois, durante a semana, foram falando as vozes mais óbvias do sistema, Sócrates, Mário Lino, Pedro Silva Pereira, os dirigentes socialistas mais alinhados com a acção do executivo, apelidando, de uma ou outra forma, os camionistas de desordeiros e selvagens. Ora, o que talvez tivessem sido necessárias eram vozes do sistema
Quando o sistema está fechado e bloqueado, acontecem coisas destas. As associações que deviam ter uma natureza de contra-poder, equilibrando a correlação de forças e o próprio sistema, funcionam com meros apêndices do governo. Por seu lado, os grevistas, sem apoio formal daqueles que deveriam ser os seus representantes, acabaram por desenvolver uma luta em formas desorganizadas e mesmo caóticas, consequência, em grande medida, de a Antram não cumprir o seu papel e o que se esperava dela. Mesmo quando tal acontece, a função dos governos é encontrar alternativas rápidas, que denotem flexibilidade. Ora, o governo, em plena paralisação dos camionistas, continuou centrada na Antram. Não só não se estabeleceram formas de diálogo rápidas com os grevistas ad hoc como se acicataram os seus ânimos com a insinuação de que eram desordeiros.
Com excepção dos pescadores, um sector privado por excelência, é preciso lembrar que a esmagadora maioria dos sectores profissionais que se vergaram ao governo, comem à mesa do Orçamento de Estado, sendo muito menos livres para resistir, custe o que que custar. Esta é mais uma das razões que, apesar de contribuir para resolver as questões no imediato, pode dar uma imagem ilusória do país e aumentar o mal-estar a médio prazo. Por várias de ordens de razão, ainda que muito distintas, e até criando um clima de grande incompreensão entre sectores profissionais que, na essência, lutam pelos mesmos direitos, o que ilustra toda a complexidade da situação. Por um lado, quem teve de se render por viver do salário que o Estado lhe paga, apesar de considerar que os seus direitos continuaram a ser afectados, fica descontente ou frustrado. Por outro lado, quem tem os salários do Estado preservados, e são três milhões em Portugal que vivem do Orçamento público, não entende, verdadeiramente, a outra parte do país real que trabalha no sector privado, sejam eles donos de empresas, gerentes ou empregados, e que está a pagar a crise como ninguém, em virtude de várias vicissitudes do mercado, a quebra da procura, o crescimento exponencial das dívidas, o aumento das matérias-primas. Os camionistas podem ser um bom exemplo desta incompreensão. Como Marx dizia, há classes que estão de costas voltadas e não unidas porque ainda não atingiram o nível de consciência que lhes permita lutar juntas. A forma como um polícia ou um professor perde regalias, um trabalhador por conta de outrem vê o seu salário emagrecer por causa da inflação ou um pequeno ou médio empresário dos transportes se sente com a corda ao pescoço por causa do aumento do preço dos combustíveis, pode ter um quadro e denominador comum. Quais? A exploração do sistema capitalista que está de volta? Os lucros fabulosos de alguns grandes grupos económicos e grandes especuladores, que estão de volta, como sempre acontece nas grandes crises? Os dogmas dos governantes, soluções consagradas que não admitem rejeição de espécie nenhuma, como as regras sacrossantas do mercado? Talvez um pouco de tudo. Mas é cedo para avaliações porque é terreno é complexo.

A Europa pirómana

Algumas certezas, porém, parecem existir. Falharam governos sucessivos em Portugal, que não conseguiram, em momento nenhum, de forma estável e duradoura, criar um país mais justo e mais igualitário e falhou o governo europeu, nas suas várias etapas, desde 1957. Esta crise dos camionistas serviu para provar que esta Europa não tem capacidade para resolver os problemas das pessoas e que ultrapassou todos os limites do autismo, da insensibilidade política e da falta de estratégia. A Europa não conseguiu reduzir, de forma concertada, os impostos sobre os combustíveis, talvez porque, mesmo se houvesse vontade de muitos países, seria quase impossível contornar o bloqueio que a Europa, ela própria, criou ao criar um monstro de 27 países, amarrados uns aos outros, vítimas absurdas de uma ineficácia que se, alimenta, na origem, do fantasma da II Guerra Mundial, da cartilha neoliberalista de quanto mais mercados melhor e de uma ideia megalómana e insana de competir com a Rússia no que se refere ao Leste. Esta semana, a UE pregou mais um prego do seu caixão. O aumento da carga semanal para 68 horas é uma medida grotesca do ponto de vista social, que revolta os cidadãos, já exangues com a crise económica que se vive, e os afasta mais da Europa. Muitos países votaram contra mas o Leste apoiou a medida. Paradoxalmente, depois de ter provocado grande instabilidade ao Ocidente no tempo do comunismo, usando os vários PC europeus, o Leste, hoje mais papista do que o Papa na defesa das regras mais puras do mercado, preparado para viver as formas mais arcaicas e injustas do capitalismo, talvez para compensar e ajustar contas com o passado. Entretanto, à hora do fecho desta edição, a Irlanda vota em referendo o Tratado de Lisboa. Nos últimos meses, o “não” cresceu bastante, mesmo com o apoio ao “sim” da maioria dos partidos irlandeses, o que espelha o divórcio crescente dos cidadãos com as instituições e os partidos.
Apesar da Irlanda continuar, em boa medida, imune à crise económica, o facto é que o aumento do horário de trabalho é mais um sinal de descrença no futuro da Europa, criada, entre outras razões, para aumentar a qualidade de vida dos cidadãos. Ora, assistindo-se, gradualmente, à diminuição do Estado Providência e à perda de direitos e regalias dos trabalhadores, esta Europa que quer acabar com os períodos de ócio dos trabalhadores, o seu bem-estar e a sua liberdade, e fazer deles escravos do trabalho, é uma Europa das trevas.|

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