O PCP admite ser Governo em Portugal, se o povo português assim o entender, afirma Jerónimo de Sousa, secretário-geral dos comunistas, em entrevista ao SEMANÁRIO. Ao balizar a trajectória futura do partido, o líder do PCP fala, também, do presente, considerando, a propósito da tão falada remodelação ministerial, que a substituição de tal ou tal ministro em nada alteraria a orientação geral do Governo. “A nossa exigência é a da mudança de rumo da política nacional”, conclui Jerónimo de Sousa.
O PSD e o CDS/PP defenderam recentemente a remodelação do Governo. Será que o PCP também a preconiza?
O PSD e o CDS, para fugir à questão de fundo da necessidade de uma outra política, propõem, digamos que, o “trabalho à peça”. Como se a substituição de tal ou tal ministro alterasse a orientação geral do Governo. A nossa exigência é a da mudança de rumo da política nacional.
O Governo, cuja política tem sido bastante criticada pelo PCP, adoptou uma série de reformas estruturais que são indispensáveis à superação da crise que o País atravessa. Atendendo às críticas que fazem, poderá afirmar-se que os comunistas estão contra essas reformas estruturais?
A sua pergunta parte de um pressuposto que rejeitamos. O Governo não está a fazer reformas, está é a desencadear uma ofensiva que visa atingir os direitos dos trabalhadores e dos reformados. Usa o chavão das dificuldades das contas públicas e da sustentabilidade da Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde para ofender e mutilar direitos sociais e laborais. Os resultados estão à vista. A crise não só não foi superada como se instalou.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, é, sem dúvida, uma das personalidades mais marcantes deste Governo. Ainda há bem pouco, a propósito de uma manchete abusiva do “Expresso”, afirmou-se cansado, não do seu trabalho, que cumpre com gosto, mas sim das constantes tropelias que a comunicação social lhe faz. Acha que a direita não perdoa ao professor Freitas do Amaral o seu deslizar para a esquerda?
Vê-se que há uma fixação obsessiva da direita, em particular do CDS, em relação a Freitas do Amaral. Mas será a Freitas do Amaral ou ao ministro dos Negócios Estrangeiros? Haverá algum ajuste de contas fulanizado, mas admito que não seja só isso. Não nos cabe a nós responder à questão.
Falamos da comunicação social. Manuel Maria Carrilho, no seu livro-bomba, lançado recentemente, chama-lhe o “polvo” e responsabiliza-a pela sua derrota em Lisboa. Considera, na realidade, que Manuel Maria Carrilho perdeu as eleições por causa dos “media”?
Não acompanho a justificação dada! Pode ter sido um factor mas não o factor determinante. O PS apresentou-se sem projecto para a cidade, politicamente descredibilizado pela sua postura de colaboração com a gestão Santana Lopes/Carmona e numa postura hegemónica recusando a experiência da coligação “Por Lisboa”. Admito que a culpa maior não foi de Manuel Maria Carrilho, mas não pode branquear a responsabilidade do PS.
Segundo o PCP, os agricultores portugueses têm sido tratados como os funcionários públicos. Ao que sei, os comunistas defendem um orçamento rectificativo para se pagarem as verbas que são devidas a esses agricultores. O PCP acha que são sempre as mesmas as vítimas da crise?
O Estado deve ser uma “pessoa de bem”. O PS teve tempo de alterar os critérios de atribuição das ajudas e não o fez. Logo deveria ter considerado o compromisso do Estado em sede do Orçamento.
O que propomos é a reparação e a resolução do problema pela via de um Orçamento Rectificativo.
Costuma fazer o contraste vivo e gritante entre os lucros astronómicos da banca portuguesa e o desemprego e a pobreza, que grassam no País. Julga que esse contraste é irremediável ou, pelo contrário, tem solução?
É chocante, eu diria quase obsceno, este fosso existente, esta injustiça na repartição da riqueza. Com outra política económica e fiscal é possível alterar este estado de coisas. Será preciso ser economista para perceber como é injusto um pequeno empresário pagar 36% de IRC e um banqueiro pagar 11 ou 12%?…
Os mais pessimistas dizem que Portugal não é viável e que, bem vistas as coisas, o melhor seria a união com a Espanha, para gáudio dos iberistas. Qual a posição do PCP sobre uma hipotética união do nosso país com a Espanha?
Temos um Estado-nação, somos um povo que construiu a sua própria história e que tem o direito de soberanamente defender a sua independência e o seu futuro colectivo. Somos contra o isolacionismo nacionalista. Defendemos uma linha de cooperação e relações abertas com todos os povos e países onde, por razões de proximidade e interdependências, se deve contar com a Espanha.
Com a eleição de Cavaco Silva para Presidente da República, previa-se, em alguns sectores, que o nosso semipresidencialismo poderia evoluir para o presidencialismo. Afinal, as contas saíram furadas e o que se está a assistir, com o estilo apagadíssimo de Cavaco em Belém, é à evolução do semipresidencialismo para o parlamentarismo. É caso para dizer, citando o nosso povo, que a vida é uma caixa de surpresas…
Há dias um “patrão dos patrões”, no meio do aplauso à política do Governo PS, avisava o seu partido (o PSD) para não fazer muito estorvo na oposição. É óbvio que tal “conselho” se estende ao actual Presidente da República que, nestes primeiros tempos, sabendo diferenciar o essencial do acessório, preferirá não o “apagamento” mas o “assentimento” com a política do Governo.
O País vive em democracia, graças ao 25 de Abril, mas a ditadura do mercado ainda não foi derrubada. As leis da oferta e da procura são soberanas e o lucro continua a ser o objectivo supremo. Por outras palavras, é o “salve-se quem puder” e a função reguladora do Estado não existe. Como é que o PCP vê esta demissão do Estado?
Há um princípio constitucional claramente subvertido: o da submissão do poder económico ao poder político. É um exercício de linguagem rebuscada falar do “mercado”. Quer dizer mercado capitalista, quer dizer capitalismo, as suas leis e objectivos designadamente a sua teoria neoliberal de menos Estado social para os trabalhadores e o povo e mais Estado para os interesses e privilégios do capital. O que acontece não é a demissão do Estado. É antes a subjugação dos governos e das suas políticas a tais ditames.
A demissão do Estado em Portugal é semelhante ao que se passa em grande parte dos outros países europeus, onde a globalização desregulada dita a sua lei e os interesses do grande capital prevalecem sobre os da esmagadora maioria das populações. A Europa da direita tem sido uma enorme desilusão…
Admito que haja desilusão entre os que acreditaram que o capitalismo era democratizável, civilizável ou até o fim da História da humanidade, e que vêem que o mundo está mais injusto, mais inseguro, menos democrático. Esta fúria em expoliar os trabalhadores e outras classes e camadas e povos inteiros, procurando recuperar todas as parcelas de domínio perdido no plano económico e social não é por “maldade”. É por razão da sua própria natureza. Lembra-se da fábula do escorpião e da rã?…
Há quem diga, com propriedade, aliás, que o País, com a nova moeda, o euro, não conseguirá sair da crise. Além de ser, em linguagem metafórica, um fato demasiado luxuoso para um pobre como Portugal, o euro é uma moeda forte e os nossos salários são baixos e, como sabe, uma coisa não joga bem com a outra. Comunga do mesmo ponto de vista?
Aquando da adesão ao euro “caiu o Carmo e a Trindade” porque alertámos para a precipitação que seria a consumação de tal acto. Hoje, passados quatro anos, aí estão os relatórios e estudos da UE a provar que fomos o país que mais perdeu. Aliás, ouvir o actual Presidente da República (então primeiro-ministro) a proclamar a necessidade de aumentar a competitividade das empresas portuguesas e saber que só com a adesão ao euro implicou uma perda de 20% de competitividade das nossas empresas, mostra que a culpa continua a morrer solteira em Portugal. Até um dos “crânios” que trabalha com Durão Barroso na Comissão admitiu a semana passada que “Lisboa pode querer deixar a Zona Euro depois de estar 20 anos sem beneficiar da moeda única”. O que seria se fôssemos nós a dizer isto…!
“Também há gente boa na política,
no dirigismo empresarial e desportivo”
A moralização da vida política em Portugal apresenta-se como tarefa inadiável. Muito recentemente, o PCP elaborou um projecto de incompatibilidades para os deputados, designadamente com a advocacia, que foi rejeitado. Acha que quem não aceitou esse projecto estava a pensar nos seus próprios interesses?
É sempre complicado ser juiz em causa própria, não? Mas para um Governo que permanentemente anda a falar do combate aos interesses corporativos e ver o seu Grupo Parlamentar a votar contra este projecto-lei do PCP retira-lhe credibilidade política.
Não lhe parece que o nosso dirigismo, a todos os níveis (o dirigismo político, o dirigismo desportivo, o dirigismo empresarial, etc.), é um dos grandes cancros do País, para não dizer o maior?
É conhecida a fragilidade endémica das classes dominantes e das suas estruturas ao longo da nossa história. Mas recuso generalizações. Também há gente boa em todas as áreas que referiu.
O PCP ainda acalenta o sonho de um dia ser Governo em Portugal?
Por que não, se o povo português assim o entender? Possivelmente tal já poderia ter acontecido se abdicássemos das nossas convicções, da forma séria de estar na política, designadamente se deixássemos cair a exigência de que uma alternativa política que conte com o PCP pressupõe uma política alternativa e de esquerda.
Uma vez no Governo, qual seria a primeira decisão do PCP? Erradicar a pobreza e o desemprego? Denunciar o compromisso de Portugal com a NATO? Retirar o País da União Europeia? Fazer com que houvesse mais justiça social?
Num quadro geral de defesa e concretização das vertentes política, económica, social e cultural e de um Portugal soberano que conforma o nosso regime democrático, haveria que considerar o problema da economia nacional. Promovendo uma política que defendesse o nosso aparelho produtivo e a produção nacional, com elevação do seu perfil e do emprego, que incentivasse o crescimento, que valorizasse o trabalho com direitos, abandonando o modelo esgotado dos baixos salários.
Simões Ilharco