2023/03/25

Sarajevo/1914 e Bombaim/2008por Rui Teixeira Santos

A maior ameaça para a Paz mundial não é hoje mais a existência de armas atómicas nem as tensões entre as potências, mesmo com o regresso da América aos valores do multilateralismo – como, aliás, prova a nova equipa de Segurança Nacional de Obama. Nem sequer as operações de uns terroristas fanáticos que vimos em Bombaim na semana passada.

A maior ameaça para a Paz mundial não é hoje mais a existência de armas atómicas nem as tensões entre as potências, mesmo com o regresso da América aos valores do multilateralismo – como, aliás, prova a nova equipa de Segurança Nacional de Obama. Nem sequer as operações de uns terroristas fanáticos que vimos em Bombaim na semana passada. A maior ameaça em 2009 é a escalada dos conflitos regionais, de que, exactamente, o conflito entre o Paquistão e a Índia pode ser paradigmático.
E nesse sentido ninguém está seguro e qualquer rastilho pode constituir a maior ameaça à paz global, numa altura em que a crise económica manifesta sintomas sistémicos que as aspirinas habituais não resolvem.
Com os políticos à procura da solução mais eficaz para sobreviverem à guilhotina eleitoral – e não nos esqueçamos que a guerra é a melhor solução keynesiana -, um facto como Bombaim pode contudo ser o rastilho para o deflagrar de um conflito regional que envolva depois todo o planeta, como aconteceu com Sarajevo, em 1914.

Reiniciar o ciclo político

A quem interessa a crise política e a antecipação das legislativas?

É certo que, de acordo com a Constituição, o Estatuto Político-Administrativo das Regiões Autónomas têm expressamente a forma de leis da Assembleia da República, ou seja, precisa apenas de maioria simples para serem aprovadas, de acordo com o número 3 do art. 166º da CRP. É um pontapé na hierarquia das leis, mas foi decisão constituinte.
Porém, tem sido entendimento do presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, que o facto do estatuto incluir matéria para-constitucional e mexer com leis orgânicas. que necessitam de maior formalidade na aprovação, obriga a que o Estatuto das Regiões Autónomas tenha que ser aprovado por maioria qualificada de dois terços.
Não me parece que tal interpretação possa ser consentida formalmente e se dúvidas houver relativamente à constitucionalidade da derrogação de normas para-constitucionais por diploma menor – mesmo tendo sido previsto e determinado pelo constituinte – seria noutra sede – eventualmente artigo a artigo – que se discutiria a constitucionalidade e nunca relativamente a forma de aprovação do diploma.
Dito isto, depois do PS ter tomado a posição que tomou e depois da aprovação unânime, dos partidos com assento parlamentar do Estatuto, o recuo possível é apenas neste contexto, o proposto por Jaime Gama. Se José Sócrates der ordens para o PS aceitar a interpretação de Jaime Gama, então o conflito institucional com o Presidente da República desaparece, porque o diploma não é aprovado, podendo o Presidente dizer sempre que o Parlamento atendeu às suas preocupações e o PS afirmar que o diploma caiu por falta de apoio parlamentar e não por recuo dos socialistas.
Mas tudo isto parece ser um arranjo demasiado artificial e, sobretudo, passível de iniciativas de parlamentares com vista à reposição da legalidade constitucional que só criaria incerteza e, sobretudo, não dignificaria ninguém.

A questão do Estatuto dos Açores

Dito isto, sobra então o cenário da aprovação do Estatuto Politico-Administrativo dos Açores. E neste contexto, se for aprovado por maioria simples, parece evidente que o Presidente da República sempre poderia enviar o assunto para o Tribunal Constitucional, suscitando a fiscalização preventiva da constitucionalidade formal do diploma. E conhecendo a normal funcionamento do Tribunal, tudo indica que os juízes nunca iriam dar prioridade ao assunto, pelo que a constitucionalidade do diploma nunca seria apreciada antes de seis ou sete meses, ou seja, já em cima das próximas legislativas e, portanto, já sem verdadeiro impacto na actual maioria parlamentar.
Só que a relevância que Belém quis dar ao tema, quando vetou, e o facto do Presidente ter evocado os fundamentos do n.2 do art. 165 da Constituição, em matéria de iniciativa presidencial para a demissão do executivo, deixa hoje pouca margem de manobra ao Presidente da República para não ir até às ultimas consequências.
Ou seja, em nosso entender, o Presidente da República, caso o PS sozinho aprove o Estatuto tal como foi antes vetado pelo Presidente, ou avança para a Convocação do Conselho de Estado, tendo em vista a demissão do Governo e a eventual marcação de eleições legislativas antecipadas – até porque estamos já perto do fim da legislatura – ou Cavaco Silva acaba por sair diminuído e desprestigiado da contenda legal.
Em suma, tendo o PS dito que aprovará o Estatuto da Região Autónoma tal como está, e em nosso entender, sendo totalmente descabida a exigência constitucional dos dois terços para a sua aprovação, no próximo dia 19 de Dezembro o diploma estará aprovado e o Presidente da República tem dez dias para o promulgar ou enviará para o Constitucional, coisa que seria um absurdo depois da comunicação feita ao País e ao Parlamento.
Neste contexto, o Presidente da República só tem uma saída, se quiser manter a face e ser consequente: convocar o Conselho de Estado, demitir o Governo e, depois de ouvidos os partidos, o Conselho de Estado, convocar eleições antecipadas.
É certo que estamos portanto diante de uma crise política em plena crise económica e não chegamos aqui por acaso. Chegamos aqui ao fim de um processo que se foi construindo nos últimos seis meses, conforme temos claramente explicado nestas páginas.
Porém, para o PSD e para os interesses, a instabilidade política vem na pior altura. O processo de substituição de Ferreira Leite no PSD ia ser iniciado em Janeiro e a renovação da alternativa ao governo poderia introduzir um factor que pesaria a favor da oposição. Por outro lado, o desgaste da crise económica, evidentemente irá acentuar-se em 2009, pelo que, para a oposição, quanto mais tarde fossem as legislativas, melhor seria.

A quem interessa esta antecipação

Do lado do partido socialista, e de José Sócrates, o raciocínio é diferente e acredito que a construção do momento tenha sido mais uma demonstração do profissionalismo e pragmatismo desta maioria.
Em primeiro lugar, a crise económica que estamos a viver, não é uma mera crise como as que presenciámos depois da Grande Guerra, mas é a uma crise sistémica e é a primeira crise da globalização, ou seja, em que é espectável que todos os instrumentos conhecidos e que estamos a usar – ao contrário do que se fez em 1929 -mesmo assim se mostram insuficientes para reduzir o dramatismo do problema.
Em segundo lugar, o PS sabe exactamente o contrário do que aquilo que o ministro das finanças tem que dizer ao eleitorado. Que as estatísticas do PIB do INE são meras previsões, mesas estimativas e que efectivamente o país já está em recessão técnica e sobretudo, as medidas tomadas não chegam ao terreno e que a população já está a interiorizar a depressão, o que será fatal para a economia portuguesa.
Sem o parêntesis democrático da dra. Ferreira Leite, o governo Sócrates – nós ensinamos isso em Economia Política – tem a noção que numa crise económica há três momentos politico mediáticos com consequências na popularidade dos governos: (1) o início da crise económica, em que se culpam os governos de a terem provocado; (2) Um segundo momento, em que os governos tomam medidas e portanto sobem nas sondagens, pois o eleitorado acha que vai ser beneficiado; e (3), finalmente, um terceiro momento, em que o eleitorado percebe que as medidas só beneficiaram alguns amigos do governo e que, portanto, o governo deve ser substituído.
Ora, para José Sócrates havia aqui um dilema: sempre que os governos se deixam arrastar para a dita terceira fase é certo que os governos perdem as eleições seguintes; porém, sempre que os governos se meteram com os Presidentes da República e os afrontaram, esses mesmos governos perderam as eleições seguintes, (veja-se os casos do PS com Eanes e do PSD com Sampaio).
O primeiro-ministro teve que decidir seguramente tomando em consideração outros factores relevantes.

O timing das Legislativas

Em primeiro lugar, a questão do timing das legislativas. José Sócrates sabe que, se se cumprisse o calendário eleitoral, as primeiras eleições em Junho próximo seriam as Eleições para o Parlamento Europeu. E, no contexto actual, não só essas eleições Europeias seriam, como sempre são, um momento ideal para o voto de protesto, como se transformarão inevitavelmente numa primeira volta das legislativas. E depois de uma eventual derrota do PS nas Europeias parece evidente que o governo nunca aguentaria o desgaste de três meses, ainda por cima de férias e sem dinheiro.
Em segundo lugar, a contestação da rua e a capitalização da esquerda. O governo reformista de José Sócrates conseguiu algo que não víamos desde o Verão quente de 1975 – e não estou a falar das originais nacionalizações dos bancos do PSD. Ao fazer reformas a partir dos “pacotes comprados” na OCDE – como na Saúde, na Educação ou na Justiça – o PS deixou espaço para a contestação corporativa e, sobretudo, para que o PCP e o BE se apoderassem da rua, por contra ponto à pouca eficiência do Parlamento. E com a esquerda com mais de 20%, como indicam as sondagens, começa a ser difícil, matematicamente é mesmo impossível a maioria absoluta.
Em terceiro lugar, a questão da crise da economia. Este Orçamento de Estado para 2009 dá alguma margem de manobra ao governo, sobretudo jogando com cenários mais favoráveis e juros e petróleo a cair, mas não permite grandes despesas sem um buraco orçamental significativo e o conhecimento público disso antes de eleições – mesmo com a justificação do agravar da crise – transformar-se-iam numa catástrofe para o melhor que este governo tem tido: a seriedade em matéria de consolidação orçamental. Mais ainda, o Governo tem consciência que, para sobrevivermos, precisamos de crédito externo e que ele só vai continuar a existir enquanto passarmos para o estrangeiro uma imagem de que estamos a fazer alguma coisa pelo défice e pela dívida. E um ano eleitoralista poderia conduzir o país ao descalabro de ver o crédito externo cortado, mesmo com avales do Estado, o que necessariamente implicaria uma travagem abrupta no consumo interno, desemprego massivo e, sobretudo, uma contestação social e política que a greve dos professores desta semana seria apenas um tímido ensaio. Ou seja, como temos dito, neste cenário estaria em causa não apenas a maioria politica governamental, mas talvez o sistema democrático, senão mesmo o Regime Republicano. (Que bela data a de 5 de Outubro de 2010 para referendar o Regime!, já o propus há mais de uma década).

Segurar Ferreira Leite

Em quarto lugar, a questão da oposição à direita. O PS percebe que Ferreira Leite é a melhor candidata para ser derrotada nas próximas Legislativas. O PS conseguiu ampliar no espaço mediático duas ou três expressões infelizes da líder social-democrata, que não percebeu o mundo mediático da política e conseguiu afectar a credibilidade da senhora. Obviamente, como partido de poder, o PSD mexeu-se e seria inevitável a substituição da líder por alguém mais novo e seguramente não desgastado, o que, inevitavelmente, roubaria o centro eleitoral ao PS de José Sócrates. Ora, antecipar os timings impede exactamente a substituição da Ferreira Leite e, portanto, o PS tem na oposição um seguro de vida óptimo.
Finalmente, ou melhor, maquiavelicamente, o PS percebeu que neste momento as grandes figuras não cavaquistas do PSD histórico têm projectos políticos individuais que os tornam sempre aliados tácticos da maioria socialista. Assim, Santana Lopes está focalizado na Câmara de Lisboa e portanto não se vai envolver nas Legislativas para não ser contaminado, Durão Barroso está a pensar no seu segundo mandato na Comissão Europeia, apoiado, naturalmente por José Sócrates; e, por último, Marcelo Rebelo de Sousa, que percebeu que Cavaco Silva não deverá ir a segundo mandato, tem pela primeira vez a sua oportunidade de se encontrar com a História, ou seja, de ser finalmente candidato presidencial do PSD, mas que sabe que precisa que o PS ganhe na próxima legislatura para que ele possa ser eleito Presidente da República em 2011 (o que explicará o facto de querer manter Ferreira Leite até às Legislativas, depois de, antes, ter defendido exactamente o oposto)
Todas estas razões, às quais se juntam necessariamente a lição da Economia Política, sobre a relação ciclo económico/intenção de voto, e o crescimento da contestação popular nas ruas, desacreditando o governo e colocando em evidência a sua reduzida qualidade técnica e política, obrigam naturalmente o inner circle de S. Bento a optar necessariamente pela antecipação das Legislativas.
Para o PS ganhar as legislativas, significa poder ganhar a seguir as Europeias e as Autárquicas ainda que, depois, se percam as presidenciais. Aliás, Manuel Alegre encarregar-se-á sempre de destruir qualquer candidatura do PS e o próprio seria o menos desejável Presidente da República que o primeiro-ministro José Sócrates poderia ter, como é evidente.

O fim da cooperação estratégica

É isto que explica a súbita ruptura da “cooperação estratégica entre o Governo e o Presidente da República, esforçando-se os socialistas para que o ónus fique do lado do Presidente da República – coisa que aliás, o Presidente parece ajudar estoicamente, com os erros políticos que tem cometido…
E por isso vale tudo. O PS usa a nacionalização do BPN para dar um tiro em Cavaco Silva, que se mostra visivelmente incomodado, o PS não apoia as famílias no divórcio, como pediu o presidente e finalmente, na Estatuto o PS não recua.
Enfim, tudo indica que vamos para uma renovação antecipada do ciclo político. Uma aceleração do ciclo político, que tem sempre a vantagem de evitar maior esbanjamento de recursos em inaugurações e campanhas desnecessárias. Até nisto, o tempo joga a favor de Sócrates…

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