O problema não é a dra. Manuela Ferreira Leite estar calada. Ela tem todo o direito a gerir os seus “timings” e os seus silêncios.
O problema não é a dra. Manuela Ferreira Leite estar calada. Ela tem todo o direito a gerir os seus “timings” e os seus silêncios. Mesmo que as férias sejam exageradas, de Julho a 7 de Setembro (data da Universidade de Verão), fazendo lembrar as “férias grandes” escolares – mesmo assim muito maiores que as férias judiciais, as férias parlamentares ou as férias de qualquer trabalhador por conta de outrem -, a questão é com a senhora.
O nosso problema é que tememos, para não dizer que temos a certeza, que quando a senhora falar, ela não vai dizer nada de relevante. O problema é que a senhora não tem nada para dizer.
É a constatação desta realidade que começa a criar o maior incómodo dentro do PSD, até porque, na actual conjuntura, parece evidente que a falta de oposição enclausura o sistema político.
Neste contexto, e, ainda que não tenha nenhuma ideia para o País, a dra Ferreira Leite, aos setenta anos, certamente não assumiria a maçada de dar cabo do PSD por conta própria, ou porque se acha com capacidade para ser primeira-ministra, sobretudo, depois do seu discutível desempenho nas Finanças. Em boa verdade, nunca ninguém a viu como tal, senão como “protegida de Cavaco”, até que o confronto com Santana Lopes, necessário para o lançamento da candidatura presidencial de Cavaco Silva, a transformou numa vedeta à dimensão nacional e primo-ministeriável.
Neste contexto, enganam-se todos aqueles que julgam que Ferreira Leite tem agenda própria, quer o poder e quer chegar a primeira-ministra de Portugal.
Não. Como desde cedo se viu, Manuela Ferreira Leite é fiel ao Presidente da República e age em consonância com ele. Foi nos seus governos e continua a sê-lo, agora, sem nenhuma autonomia estratégica ou opinião pessoal. E, se chegar a primeira-ministra, sê-lo-á, como antes também foi ministra das Finanças ou da Educação, chefe de gabinete ou secretária do Orçamento.
A oposição interna para subsistir tem que provocar directas
Ferreira Leite tinha uma incumbência. Conquistar o PSD, para que o presidente tivesse um instrumento para obrigar ao Bloco Central, à grande coligação – necessária para enfrentar a crise e reformar o Estado, sem mexer em nenhuma das vacas sagradas do Regime. Mas, sobretudo, porque sentindo a fragilidade do primeiro-ministro à esquerda, uma tensão bipolarizadora animada de Belém facilmente retiraria a maioria absoluta ao PS e abriria o caminho à coligação central, onde o poder presidencial se amplia.
E, a resposta está dada: Ferreira Leite nunca se irá embora, nunca antecipará directas ou congressos, nunca correrá o risco de perder o conquistado e vai fazer a lista de deputados e escolher os candidatos autárquicos, que sirvam o projecto presidencial. Ponto final.
Ou seja, cerca de 60% do partido, o PSD que não votou em Ferreira Leite, está fora e vai ficar fora, seja a tendência de Passos Coelho, ou qualquer outra organizada ou que se venha a organizar dentro do partido.
O entendimento desta situação, obviamente, vai alterar a estratégia que alguns vinham seguindo até agora: em primeiro lugar, vai começar a contestação interna aberta à liderança de Ferreira Leite, já que o ataque à agenda presidencial não é possível, por agora.
A sua incapacidade para responder à gravidade da situação económica, o facto de estar de férias grandes e nem ter encontrado resposta à operação de propaganda – aliás, brilhante – encenada pelo primeiro-ministro com os 133 mil empregos da legislatura, oportunamente divulgados para ofuscar o drama de, pela primeira vez, termos desemprego a crescer no Verão – são temas suficientes para o arranque dos ataques. Nem Pedro Passos Coelho, nem a grande maioria do actual grupo parlamentar, têm grande coisa a perder, assumindo publicamente a divergência que, naturalmente, vai crescer substancialmente com o debate do Orçamento do Estado para 2009, a partir de Outubro.
Será essa contestação suficientemente desgastante para obrigar Ferreira Leite a atirar a toalha ao chão e ir contar votos, como fez Luís Filipe Menezes?
Estou certo que não será, pelo simples facto que Ferreira Leite não é a incumbente, mas apenas a criatura e que, portanto, o ruído e a contestação não tocam o criador.
Ferreira Leite aguentará, estoicamente, como sempre – essa, aliás, é uma das características das “protegidas de Cavaco” (fidelidade é isso mesmo) e vale a pena fazer a homenagem a Leonor Beleza, que estoicamente resistiu durante mais de uma década a um processo onde o óbvio destinatário era o chefe, Cavaco Silva.
Ferreira Leite nada terá de seu para jogar também e, ao contrário de Leonor Beleza ou de Isabel Mota ou de Teresa Patrício Gouveia, não ficará à espera da Fundação Champalimaud, da Fundação Gulbenkian ou da Fundação de Serralves. Já tem pelo menos duas ou três pensões de reforma (de política, do Banco de Portugal, etc.) e não é isso que a move (façamos-lhe justiça).
Questões fracturantes
Portanto, em resumo, Ferreira Leite irá em qualquer circunstância tudo fazer para chegar aos votos e fazer o próximo grupo parlamentar (misto da cavaquismo e barrosismo) e a oposição interna será totalmente banida.
A única maneira de forçar Ferreira Leite a ir a votos é com a circulação de assinaturas e a convocação de um congresso extraordinário, que delibere directas antecipadas.
Há quem defenda que Ferreira Leite vai a votos e perde com Sócrates, sendo depois corrida. Ora, esse pode ser um erro fatal para os 60% dos militantes que não votaram em Ferreira Leite. Pelo simples facto de uma qualquer votação lhe permitir, primeiro, fazer Bloco Central com o PS e, segundo, escolher a bancada parlamentar e, portanto, determinar o PSD para a próxima legislatura. E, nesse contexto, é bem provável que a ruptura já não seja possível dentro do partido, mas tenha que ser pensada a refundação do centro-direita fora do PSD.
E, esta questão é central, até porque, seguindo a lógica alarmista de Belém e o dito de Adelino Maltez, que o intervencionismo presidencial é moral, ou seja, que os vetos presidenciais, nomeadamente este sobre o novo regime jurídico do divórcio, reflectem não uma inflexão estratégica do Presidente – colocando em causa a coabitação -, mas a afirmação de uma concepção da vida e do mundo diversa da do governo e da maioria parlamentar, a fractura faz-se entre Cavaco e Sócrates.
Um homem de convicções pessoais e sem um corpo de doutrina
Cavaco Silva é um homem de convicções de esquerda, é um social-democrata, nunca teve nem defendeu nenhum valor conservador e sempre instrumentalizou os valores à sua manutenção no poder. Não faz sentido falar em fractura ideológica nesta lei do divórcio – que visa acabar com milhares de situação inaceitáveis de abuso nos tribunais e, sobretudo, que evita o habitual golpe do baú de um dos cônjuges – e ao mesmo tempo o Presidente da República ter promulgado sem qualquer obrigação constitucional o alargamento da Interrupção Voluntária da Gravidez.
Sejamos claros: em nossa opinião é óbvio que não são valores morais, nem questões ideológicas, que presidem ao veto nesta lei, tal como aliás também não foram as razões directamente expressas na questão do veto ao Estatuto Autonómico dos Açores.
São sempre, em Aníbal Cavaco Silva, questões de poder. No primeiro caso, o problema final é a Madeira e Alberto João Jardim, com o seu “federalismo fiscal” e, no segundo, é uma manobra perfeitamente populista – tentando agradar a uma maioria sociológica mal informada – em nome de anunciados valores de que curiosamente se lavou as mãos aquando do referendo ao aborto.
E porquê? Porque na ausência de Ferreira Leite o Presidente assume-se então como actor político directo e já não, apenas, como o garante da Constituição. O Presidente Cavaco Silva ao fazer uma marcação pessoal – que claramente o PS não deverá aceitar – está ele mesmo a ser o agente da desestabilização, do desgaste do executivo, para, eventualmente, em momento oportuno, poder actuar com maior veemência.
E, nesse sentido, estar calada é a estratégia correcta para Ferreira Leite.|
A questão liberal
No actual contexto político e económico, a questão liberal não se reduz apenas à livre iniciativa, que cada vez está mais ameaçada pelo enquadramento do País (o País está enquadrado, reduzido a um quadrado, e, quem não tiver os contactos certos, “não se safa”, servindo o Estado – enorme – apenas como instrumento de conservação desses interesses instalados).
No contexto actual, a questão do liberalismo é uma questão de humanismo e um imperativo ético. E, nesse sentido, o liberalismo volta a ser subversivo, como o foi no século XIX.
O liberalismo hoje regressa às suas origens, enquanto clivagem com o Antigo Regime. Tem que ser uma resposta às desigualdades e a afirmação da igualdade de oportunidades para todos.
A liberdade e a igualdade são, no nosso contexto político nacional, valores por adquirir. Elas estão presentes, diante do autismo das autoridades, sempre que exista um país que tem uma diáspora para além de metade da sua população, a quem não dá resposta e manda sem destino à procura de sustento.
Tenhamos noção que não é um lugar-comum dizer que a grande marca identitária da mudança do País foi sempre colonial. E, a explicação é simples, na candura da nossa inaugural impossibilidade de vivermos com aquilo que temos.
Mas, o que é mais relevante na nossa história centenária é que em todas as rupturas liberalizadoras há uma presença forte do discurso da derrota ou do fracasso colonial.
Logo no fim do nosso feudalismo e com o advento da dinastia de Avis – com o nascimento da consciência burguesa da primeira nação da Europa – é a solução externa que preside, enquanto razão de Estado – seja na busca das linhas de comércio, da pimenta, dos escravos ou do ouro, já tivemos diversas oportunidades para desenvolvermos o tema.
A primeira grande ruptura ultramarina, que leva ao choque modernizador e de abertura económica – e portanto numa primeira fase também de libertação popular e afirmação burguesa -, dá-se com o colapso de Alcácer-Quibir – que leva exactamente ao fim da dinastia de Avis e ao regime de abertura dual (dois Estados com o mesmo rei na Ibéria) e à dinastia dos Habsburgo (dita Filipina).
Modernamente, a grande ruptura com o Antigo Regime – o fim da Inquisição e a instituição de uma Carta Constitucional de matriz liberal em 1822 – é filha directa da independência do Brasil.
Depois, é o nosso fracasso no “mapa cor-de-rosa”, que vai, finalmente, fazer colapsar a coroa que os Bragança deram a Nossa Senhora da Assunção e impor uma República, que nem os próprios republicanos desejavam.
E, não nos esqueçamos que a restauração da liberdade com o 25 de Abril é resultado directo do anacronismo do nosso modelo colonial e efeito do desgaste de uma guerra colonial, feita em três frentes, nascida depois do colapso da Índia, e com um contingente geral, que o Orçamento Geral do Estado dificilmente conseguia suportar, quanto mais remunerar convenientemente.
Podíamos quase criar uma lei política nacional, segundo a qual, sempre que a pressão externa não existe, o País tende a fechar-se em si próprio, a criar soluções mais autocráticas que colocam em causa a dignidade dos cidadãos, em nome de uma pequena minoria, que, normalmente, enriquece com os poucos negócios do Estado, usando verdadeiramente a corrupção como instrumento para forçar à transferência dos recursos do Estado para esse pequeno grupo de detentores. Foi sempre assim.
A questão que fica por saber, e de algum modo o professor Oliveira Salazar tentou responder no período anterior à II Guerra Mundial, é se será inevitável que o totalitarismo se deixe instrumentalizar, ao ponto de sacrificar o bem-estar comum à usura de uma minoria que se instala à mesa do Orçamento do Estado.
Sem pressão colonial nem agenda externa, assistimos, neste momento, ao reforço do Estado, dos seus poderes de controlo e de manipulação, tudo acoitado num discurso ideológico e paroquial, ora securitário, ora de reforço da autoridade do Estado, ambos na agenda da pequena burguesia, sempre disposta a sacrificar a liberdade para manter o pouco que de seu julga ter.
Neste contexto, a questão que se vai colocar aos portugueses é se, não podendo viver com ajuda externa, a divisão do que produzimos pode ser feita a favor da comunidade e do bem-estar comum ou se mantemos a tendência da lei histórica nacional de reforço de algumas elites em prejuízo da nação, agravando o fosso entre ricos e pobres, sempre que o destino da Pátria fica confinado ao quadrado.
Esta é questão liberal no actual contexto político e económico nacional.|