Os resultados económicos são fracos, alertou Cavaco Silva no passado domingo, no discurso do 10 de Junho, em Setúbal, deixando o primeiro-ministro com as orelhas a arder. Sócrates ainda não tinha tido tempo de se recompor da forte assobiadela do povo de Setúbal, indignado com as palavras de há um mês do ministro Mário Lino, que chamou “deserto” à margem Sul, e com o aumento do desemprego no distrito. Um dia antes, Mário Soares, numa entrevista, aconselhava José Sócrates a mudar o rumo, virando à esquerda. Aproveitando também para se manifestar chocado pelo facto de Sócrates admirar Tony Blair. Já esta segunda-feira, o governo, cercado pelo Presidente da República e por grupos de interesse poderosos, viu-se obrigado a abrir a porta a Alcochete para localização do novo aeroporto. É a primeira vez que o governo recua numa questão magna, o que pode fragilizar o seu processo de decisão e deixá-lo nas mãos de grupos de interesses.
Os resultados económicos são fracos, alertou Cavaco Silva no passado domingo, na sua intervenção do 10 de Junho, deixando o primeiro-ministro com as orelhas a arder. O Presidente da República nem concretizou os indicadores económicos mas se o tivesse feito, o efeito para o governo ainda teria sido pior. O investimento está estagnado, o desemprego cresce, os portugueses estão cada vez mais endividados, os sectores da construção e do imobiliário, que funcionam como barómetros da saúde das economias, estão em baixa há meses consecutivos. No discurso do Ano Novo de 2007, Cavaco já tinha avisado o governo que os resultados tinham de aparecer. A meio do caminho, sentiu-se já no dever de dizer que a coisa não está famosa. Para um economista como Cavaco, habituado a previsões, não deve ser difícil avaliar que quando os resultados não surgem a meio do ano, é porque também não surgem no final. Ainda por cima, Cavaco queria o investimento português a crescer acima da média europeia, o que, já se viu, nas condições actuais, não passar de uma miragem.
Momentos antes do discurso de Cavaco Silva, José Sócrates tinha sido assobiado pelos setubalenses, indignado com as palavras de há um mês do ministro Mário Lino, que chamou “deserto” à margem Sul no contexto da construção do novo aeroporto, e também com o aumento do desemprego no distrito. Não é a primeira vez que Sócrates é assobiado mas o mau período que atravessa, tornou os assobios mais visíveis e amargos. Por azar, as comemorações do 10 de Junho tinham de ser precisamente em Setúbal, um distrito “maldito” para governos a viverem momentos de crise. Em 1983, quando era primeiro-ministro, Mário Soares conheceu o forte descontentamento do governo. Em 1993, foi a vez do primeiro-ministro, Cavaco Silva, provar o fel dos setubalenses. Curiosamente, com Mário Soares, então Presidente da República, a meter achas na fogueira. Desta vez foi a vez de Sócrates. Ironicamente, Cavaco até foi aplaudido. Nem faltou em Setúbal D. Manuel Martins, conhecido como o bispo vermelho, para tornar as coisas ainda mais difíceis para Sócrates. D. Manuel Martins, que fez a vida negra a Cavaco em 1993, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo (circunstância que se revelou outro azar para Sócrates) e aproveitou para dizer que “o povo de Setúbal é considerado o mais interventivo, porque não se deixa comer. Uma das marcas da cidadania é não e deixar comer, não se deixar gozar”. Quem ouviu, só se pode ter lembrado do “direito à indignação” de Soares contra Cavaco há dez anos.
Ota na linha da realpolitik
Um dia antes do 10 de Junho, Mário Soares, numa entrevista ao “Expresso”, aconselhava José Sócrates a mudar o rumo, virando à esquerda. Aproveitando também para se manifestar chocado por Sócrates admirar Tony Blair. Vários comentadores já se tinham interrrogado sobre os silêncios de Mário Soares e espantou muita gente o “branqueamento” total que fez no jantar de aniversário ao caso da licenciatura do primeiro-ministro. Tão crítico, contra tudo e todos, inclusivamente contra dirigentes do PS, no tempo de Durão Barroso e Santana Lopes, parecia que Soares tinha enfiado a viola no saco. Por mais um azar de Sócrates, Soares tinha de quebrar o silêncio numa altura péssima para o governo.
Já esta segunda-feira, o governo, cercado pelo Presidente da República e por grupos de interesse poderosos, viu-se obrigado a abrir a porta a Alcochete para localização do novo aeroporto. É a primeira vez que o primeiro-ministro cede numa questão de interesse vital. Se o fim-de-semana tinha sido negro para o executivo, a segunda-feira foi de escuridão completa. No meio de um esforço hercúleo para se justificar, a fragilidade de Sócrates veio ao de cima quando declarou que Alcochete tinha ficado na gaveta porque a Força Áerea não queria abrir mão do campo de tiro. Para um homem que tem a sua popularidade por causa de se marimbar nos interesses, representa um mau momento
Mas é a Força Aérea quem manda no país? Em muitas reformas que já fez, Sócrates levou tudo à frente, provando que o Estado, de que é primeiro-ministro, não fica nas mãos de grupos de interesse. Agora vem dizer que Alcochete nunca avançou por causa de um ramo militar. É mais uma prova que alguma coisa se partiu esta semana com o primeiro-ministro.
Depois de andar dois anos a insistir no aeroporto na Ota, o governo espantou, esta segunda-feira, quando abriu a porta à localização em Alcochete. Estava tudo à espera que Mário Lino abrisse o concurso internacional para a Ota mas o primeiro-minitro fez uma volta de 180 graus sem pestanejar. É quase certo que tudo foi combinado com Sócrates. O ministro até parecia outro. Quase pediu desculpas pelas suas palavras do deserto na margem sul. Sem explicar, claro, que não se faz um aeroporto num sítio onde só há camelos.
No “inner circle” de Sócrates, a situação à volta do aeroporto começou a ser vista como crítica logo depois de Cavaco ter pedido mais debates sobre a localização do aeroporto. No governo percebeu-se bem que o caso era sério com Belém. Pela primeira vez. Quando Mário Lino cometeu a sua gaffe do deserto a situação ficou no limite. Era preciso agir quanto antes. Além do mais, António Costa começava a ficar perigosamente pressionado em Lisboa por causa da insistência do Governo na localização na Ota, a mais de cinquenta quilómetros da capital. As sirenes de alarme soaram quando se soube que a CIP e Francisco Van Zeller viram as portas de Belém franqueadas, para apresentar um dossier a defender a localização do aeroporto em Alcochete.
José Sócrates, com aquele sentido prático das coisas, que tão bem tem demonstrado no plano internacional, na reapolitik com a China, Angola, Venezuela e Rússia, mudou as agulhas na questão do aeroporto. Com Francisco Vanzeller, o homem que ainda há quinze dias disse que os trabalhadores grevistas poupavam muito dinheiro, já que não faziam gastos, José Sócrates fez mesmo um pacto, o que também não é novo no líder do PS. VanZeller ia fazer um estudo sério e aturado sobre Alcochete. Sócrates prometeu que ia ser dispensada uma atenção especial ao dossier, não indo para o lixo.
No seio do governo e dos socialistas, parece haver o convencimento de que a saída para o aeroporto foi airosa. O executivo deixa de estar pressionado politicamente com a OTA. A bola vai passar para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e o PSD não deverá ter espaço de manobra para aceitará a decisão desta prestigiada instituição. Ou seja, se a escolha for pela OTA, tudo o que os social-democratas disseram desta localização, lesiva para o interesse nacional, parece ficar esquecido. Cavaco também deverá calar-se. Não deixará, porém, de ser estranho que uma entidade técnica acabe por tomar uma decisão vital, de carácter político.
É verdade que se o LNEC decidir pela OTA, o governo vê reafirmada a sua opção. No entanto, tal poderá ser uma vitória de Pirro. Um governo que sempre fez gala de decidir, no interesse geral, pode acabar por ficar nas mãos de uma instituição técnica. Ora isto pode vir a ter um alto preço político. O governo pode vir a ser acusado de, pelo facto de não ter sabido tratar politicamente o dossier do novo aeroporto, centrando desde muito cedo as atenções numa só localização e não sabendo transmitir da melhor maneira os estudos já realizados, ter dado margem a que os técnicos decidissem uma questão eminentemente política. É, aliás, por aqui, que Cavaco Silva, sem poder afrontar o LNEC pode aproveitar uma “aberta” para voltar a colocar o governo em xeque na questão do aeroporto.
Neste longo processo sobre a localização do novo aeroporto há muitos enigmas. Cavaco Silva também tem muito que explicar. No tempo em que era primeiro-ministro, Cavaco teve que tomar duas importantes decisões em matéria de obras públicas e tomou-as, na localização da ponte Vasco da Gama e na Barragem do Alqueva. Sem grandes dúvidas, nem debates, nem rebuliços com grupos de interesses. Hoje, as dúvidas e receios que levanta com a construção do novo aeroporto não encaixam bem no passado político de Cavaco, com tudo exposto e confessado, aliás, pela própria caneta na sua “Autobiografia política” (ed. Círculo de Leitores), tal como o SEMANÁRIO recordou na semana passada. A localização da ponte Vasco da Gama foi aprovada formalmente em Conselho de Ministros. Já o Alqueva, segundo o próprio, foi uma decisão pessoal sua, assumindo todas as responsabilidades para o futuro. Não deixa até de poder parecer contraditório, o facto de Cavaco querer resultados económicos e estar tão receoso com os milhares que vão ser gastos. Como o Presidente da República bem sabe, num país com graves problemas estruturais como Portugal, os indíces positivos mais rápidos são conseguidos à custa de grandes investimentos públicos que depois induzem o crescimento do emprego, do consumo e do rendimento.
O que quer Cavaco?
Mas o quer, realmente, Cavaco Silva? Há cada vez mais dados contraditórios. O discurso de Ano Novo foi “perigoso” para o governo, o do 10 de Junho também. Já o manifesto que assinalou o seu primeiro ano, elaborado em Março passado, foi bastante simpático para o executivo, voltando a bater na tecla da cooperação estratégica, da confiança e lealdade e do respeito pelos poderes de cada órgão de soberania. Mas ao mesmo tempo que lembra que não tem poderes executivos, Cavaco deixou-se envolver a fundo no processo do novo aeroporto, que faz parte das competências do governo. Até no campo da doutrina que enforma acção de Cavaco, há dados que dão que pensar. Joaquim Aguiar, assessor político de Belém, no seu livro “O Fim das Ilusões, Ilusões do Fim”, escreve que “quando a relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro é de tipo conflitual, com hostilidade expressa ou com mera cooperação passiva, tanto o eleitorado como os grupos organizados, que dependem da continuidade da trajectória política porque foi nesse quadro que estabeleceram as suas expectativas, utilizaram essas divergências no topo das instituições para impedirem qualquer mudança, referenciando-se a um ou a outro conforme as circunstâncias, mas sempre com o objectivo de impedir a adopção de políticas de mudança.”. Ora, o que se está a passar com o dossier do novo aeroporto parece estar, precisamente, a aumentar o poder dos grupos de interesse, referenciando-se ora a Cavaco, no caso da defesa de Alcochete, ora a Sócrates e ao governo, no caso da defesa da Ota.
O que aconteceu esta semana, com o presidente da CIP, Francisco Vanzeller a entregar o dossier Alcochete a Cavaco é, aliás, muito curioso. Por muito menos, quando Soares fazia reuniões conspiratórias que desgastavam o governo, o então primeiro-ministro Cavaco Silva ia aos arames. Os factos são tão estranhos que há quem ponha a hipótese de uma nova convergência entre Cavaco e Sócrates para desatar o nó Górdio da Ota. Sócrates estaria, então, ao corrente de tudo, das reuniões do grupo de Alcochete, do dossier, da eminência parda do ambiente, Carlos Borrego, como peça essencial e, sobretudo, da recepção de Cavaco a Vanzeller. Este cenário, animador para o executivo, não joga, porém, com o discurso de Cavaco do 10 de Junho dos “fracos resultados”. económicos. Há, assim, quem defenda, que os sinais de crise institucional são mesmo reais e que Sócrates também sabe disso mas que está a fingir que não sabe, à procura de melhores momentos para reagir.