Eu sei que é politicamente correcto dizer bem de Bagão Félix. Eu sei que a vida humana vale pouco em Portugal.
Eu sei que a vida de cada pessoa não é susceptível de ser avaliada em numerário. Eu sei que para Guilherme Silva até morreu pouca gente nos fogos. Eu sei que há o pacto de estabilidade. Eu sei que há a necessidade de conter o défice.
Eu sei que meio país está de férias e que não é bom incomodar o descanso de quem não se preocupa. Eu sei que há atrasos no pagamento de inúmeras prestações sociais como nunca houve. Eu sei que há desempregados à espera do subsídio a que têm direito e nunca mais chega. Eu sei que o Estado deve milhões a fornecedores.
Mas apesar disso tudo não resisto a um desabafo. Li na página 7 do “Correio da Manhã”, de 12 de Agosto deste ano da desgraça de 2003 e não acreditei. Mas parece que se confirma. No pacote de apoios sociais que disponibilizou para apoiar as vítimas dos incêndios, o Governo reservou-se a caridade de atribuir a cada família que teve vítimas mortais nos fogos a quantia de 438 euros. Oitenta e sete mil oitocentos e onze escudos.
Um morto num incêndio é o que vale. Nem mais nem menos. Um ordenado mínimo, mais tostão menos tostão, perdão, mais cêntimo menos cêntimo.
Eu sei que o ministro fez questão de dizer que desta vez a burocracia não vencerá e as famílias receberão em dinheiro vivo. Vá lá: sempre se poupa algum em formulários, impressos e outros bens perecíveis. Desta vez as pessoas não têm que ir ao banco, nem ao tribunal, receber esses gloriosos 438 euros. Receberão em vivo por um morto.
Suponho que o Governo entenderá esta capacidade de pagar em dinheiro vivo como exemplo de capacidade de acção. Como uma expressão de operacionalidade e prontidão. De eficácia tecnocrática.
Não vou entrar na demagogia dos estádios do Euro 2004, nem dos ordenados arábicos de alguns assessores de ministros, nem do desperdício que existe na Administração Pública, nem… (o director deu-me limite de caracteres para hoje).
Mas vou entrar no bom nome do Estado. Está em causa. Vou entrar na humanidade do Estado. Está em causa. Vou entrar no prestígio do Estado. Está em causa. Vou entrar no humanismo que às vezes se expõe em entrevistas para embelezar a comunicação, mas que depois desaparece nos fumos da desgraça. É falso.
E não me venham com as tretas da baixa política. Cheira a desespero de quem sabe que falhou. Portugal, além de respeito pelos mortos, talvez jamais tenha precisado tanto de política como agora. Da séria.
Francamente.
Lisboa, 14 de Agosto de 2003