O que o estrangeirismo do Marquês, uma revolução liberal, a implantação da república e as nacionalizações não conseguiram fazer em dois séculos, acabou por ser feito pelo doutor Barroso, em 2003, com o incêndio de mais de um terço da floresta do País.
De repente, famílias inteiras, que viveram sempre da cortiça, da terra, da vinha, da floresta e dos animais, ficaram sem nada. Se em alguns casos se salvou a casa grande, mais valia que ela tivesse ardido e se tivessem salvo os sobreiros, que levam quarenta anos a crescer. Se os toiros não ficaram carbonizados, onde há agora dinheiro para lhes comprar o pasto?
Se no campo tinham ficado os últimos representantes de uma aristocracia rural, que a tudo, e até ao desenvolvimento, tinha conseguido sobreviver, depois deste fogo tudo ficou consumido. O que do Antigo Regime tinha sobrado, queimou-se agora, seja o modo absentista de fazer agricultura, seja também um certo modo de contrariar os novos formatadores de valores em nome da tradição.
E no drama humano em que o País mergulhou, não ser esperava apenas bombeiros, que não apareceram, nem pagadores de enterros de mortos que não tivemos. Era necessário mais, muito mais. Esta não era a ocasião para férias, nem para vagas propostas de programas económicos de emergência. Esteve mal o Governo, esteve ainda pior a oposição e as superficiais análises de Marcelo na TVI.
Dois dias após o terramoto de 1755, já o Marquês tinha isentado de impostos todo o acesso de materiais de construção à cidade de Lisboa. Não era tempo para reconstruir a cidade velha. Era o momento de fazer uma cidade nova. Na adversidade, surgiu o maior estadista português, dos últimos trezentos anos – o Marquês de Pombal. Porque era competente. Inteligente e bem formado, sabendo o que queria para Portugal, não hesitou em afrontar a velha aristocracia, com casos exemplares. Mais que o mercantilismo, e a substituição das importações, que nos levavam o ouro, com a cerâmica, os têxteis e até a vinha do Douro (com a sua pesada herança agora com as dívidas da Casa do Douro), ou mesmo o rigor autoritário da sua ditadura, o que releva de Sebastião José de Carvalho e Melo foi a capacidade de ter respondido à adversidade, vendo aí a oportunidade para reescrever a História e engrandecer Portugal.
Com uma tragédia da dimensão daquela que agora ocorreu, só a incompetência, a cobardia e a falta de visão da nossa elite política justificam que não se avance de imediato para o verdadeiro plano de reforma fundiária em Portugal. Estamos perante a maior oportunidade que a História nos dá para fazer uma reforma agrária sem dor, que redimensione a propriedade no nosso país e que evite entregar o interior às celuloses. Compete ao Estado criar as condições para que seja feita a reflorestação, com unidades económicas rentáveis. Se for necessária a organização em cooperativas dos produtores, que se faça. Senão, o Estado pode criar mecanismos para uma honesta expropriação por interesse público, sem olhar aos meios necessários para que o Estado respeite as regras do mercado. E, nesse particular, a experiência de expropriações da Brisa, para a construção de auto-estradas, prova bem que não são necessárias irresponsáveis nacionalizações como as de 1975, ou a falta de ética, como nos impostos o ano passado, para que se assegure uma reforma agrária.
O que o Governo tem de decidir é, se quer meter o resto dos agricultores em duas assoalhadas na Amadora ou em Almada, como aconteceu nos últimos quarenta anos, com o fenómeno de urbanização das populações rurais, ou se, ao contrário, queremos povoar o interior do País, dando condições de vida e um modelo agrário viável aos portugueses que queiram sair dos subúrbios e voltar a reconquistar qualidade de vida no interior de Portugal.
É uma oportunidade de ouro, que exige génio, convicção e estadistas à altura. De Trás-os-Montes ao Algarve, arderam mais de duzentos e quinze mil hectares de floresta, provavelmente por causa das condições climatéricas, seguramente porque houve incêndios ateados pelos loucos pirómanos do costume e, também, por alguns interesses menos claros de madeireiros, mas o que é dramático é ver, em face da inexistência de bombeiros competentes, ou de um serviço de protecção civil operacional, um ministro da Administração Interna e um primeiro-ministro a fazerem de bombeiros, em vez de estarem já a planear o novo interior agrícola de Portugal. O que é dramático é que Bagão Félix se preocupe em enterrar os mortos e em pagar funerais e a sobrevivência das vítimas, mas não exista uma palavra para o futuro da floresta em Portugal. O Governo escolhe o mais popular, no curto prazo, e, por isso mesmo, não ficará na história. Repete a velha história de trinta anos de governos anteriores que reforçaram verbas para protecção civil e bombeiros, que, como vimos, só servem quando não há incêndios, nem terramotos, nem grandes acidentes. Ao menos, antes, não se gastava dinheiro nessas coisas, que não servem (não serviram) rigorosamente para nada. Talvez rezar para prevenir, mesmo em Fátima ou na Senhora da Ladeira, fosse política e economicamente mais honesto. Talvez fosse avisado não ficar circunscrito ao fundamentalismo dos economistas oficiais do costume, que, curiosamente, agora, ficaram calados…