Sem nunca dizer que desiste de ser candidato a Belém, Manuel Alegre sai desse palco, mas está disponível para que “a expectativa de alternativa e de esperança” seja projectada “para outros combates”. Pela simples razão, como disse, esta semana, em Viseu, de que “às vezes pode acontecer o inesperado”. No seu discurso acusou de “autismo” os partidos e disse estar “presente” para “não deixar morrer um espaço de liberdade, de espírito crítico e de re-invenção da vida política”.
Manuel Alegre retirou-se do palco da corrida a Belém, nunca usando a frase feita de “não sou candidato”, mas uma outra, mais subtil, de “nas presentes circunstâncias, fico onde estou”. Se o fez por querer ser “legalista” esperando o que a Comissão Nacional do PS vai decidir no domingo sobre a matéria, como mandam os estatutos, também não deixou transpirar se essa era “a sua razão”. Se sai de vez ou se volta, neste ou noutro cenário e/ou palco, quando colocou a reserva de “às vezes pode acontecer o inesperado”, também só ele o sabe.
Por isso, o discurso de Manuel Alegre teve tantas “leituras” dos vários analistas e provocou, logo de seguida, e em cascata, tantas perguntas para uma resposta “concreta” pedida pelos jornalistas presentes. O futuro o dirá, apesar de Maria de Belém Roseira, a seu lado na mesa de Viseu, ter dito a um interrogador o seguinte: “Ele não é candidato. Só não percebeu isso quem tem problemas de literacia”. E, como sua apoiante, ela preferiu chamar a atenção paras as palavras do seu camarada, que alertam para uma crise de auto-estima generalizada.
O deputado-poeta (como amigavelmente todos lhe chamam) discursou à sua maneira, digno das “tradições literárias” que todos lhe reconhecem. Um discurso “bom” e “generoso”. Quis explicar a razão da “disponibilidade” para ser um pré-candidato: “Por imperativo cívico e para mostrar que não havia nenhum vazio à esquerda”. Apesar de ter dito que o seu avanço criou “uma expectativa de alternativa e de esperança”, ficou por explicar o capítulo seguinte, quando acrescentou que esse capital “é preciso projectar para outros combates”, pois “a vida não pára aqui” ou porque “às vezes pode acontecer o inesperado”.
Um discurso pautado por críticas aos aparelhos partidários, por exemplo, quando criticou “um apoio prévio da direcção socialista”, antes de o assunto ter sido discutido nos órgãos próprios do partido. E também quando disse que “há mais vida para além do aparelho”, numa clara referência à frase de Jorge Sampaio, que Alegre fez questão de elogiar na sua intervenção.
Fica, assim, mais que justificada esta passagem do seu discurso: “Não sou responsável pela decisão da direcção do PS. Não fui eu que dividi. Não serei pelos seus resultados. Mas também não quero ser responsável pela divisão da Esquerda”.
Mas também um discurso em que meteu um “programa político” de uma eventual cadeira presidencial, quando apontou a existência de “uma crise do Estado, que, se não for atalhada poderá transformar-se em crise da própria República”.
Não disse, preto no branco, que desistia da sua candidatura. Fê-lo, todavia, nas entrelinhas e de forma subtil e poética (como é seu timbre). E, de forma clara e inequívoca acrescentou mais um motivo: “Não sou responsável pela decisão pré-anunciada da direcção do PS. Não serei responsável pelos seus resultados. Mas também não quero ser responsável pela divisão da esquerda”. Aliás, quanto a este último ítem, já depois do seu discurso, e em conversa com um jornalista, Alegre descaiu-se aludindo a um hipotético “compromisso de toda a esquerda” num apoio a Soares, que só o PCP se apressou a desmentir.
Mais acutilante explicou por que motivo discorda do processo do apoio da direcção do PS à recandidatura de Soares, numa alusão crítica a José Sócrates: “o processo não foi claro”. E, além disso, somou o seu parecer: “não está conforme com os critérios republicanos de renovação política”. Aliás, indagado sobre se apoiaria ou não Soares, o vice-presidente da Assembleia da República, invocou a “renovação” uma “mudança” e por uma razão pessoal: “porque sou republicano”.
Contudo, Alegre quis deixar uma nota de esperança e, quiçá, o lamiré para uma oposição interna, quando frisou que “a vida não pára aqui” e quando, perante os portugueses que “querem alternativa, querem frontalidade e querem mudança”, explicitou: “É por isso que aqui estou. Para não deixar morrer um espaço de liberdade, de espírito crítico e de re-invenção da vida política”.
Não se esqueceu de lançar algumas farpas a Cavaco Silva – “traz consigo o risco de uma subversão do equilíbrio de poderes e do nosso regime semi-presidencialista” -, mas, também, disparou, provavelmente, sobre todos os partidos. As seguintes frases têm a sua assinatura: “O país político-partidário sofre de autismo”, (…) “os aparelhos estão mais preocupados em preservar os seus feudos do que em abrir-se aos cidadãos, à sociedade e à vida” e ” Portugal não é um projecto contabilístico, nem pode reduzir-se ao mero deleite do jogo político”.
Será que estará aqui o segredo da sua futura intervenção “projectando para outros combates” a sua vontade porque “há muita gente que poderá não se sentir mobilizada, nem representada e esse é o pior dos vazios”?