2023/06/01

Bush retoma a retórica da Providência

George W. Bush voltou a pôr a retórica da Providência “na moda” e, à imagem de Ronald Reagan, assumiu um discurso maniqueísta, de contornos religiosos e de carácter messiânico.

Bush não tem dúvidas ao afirmar que a sua presidência surgiu em parte de um “plano divino”. Para o Presidente dos Estados Unidos, Saddam Hussein é um prevaricador dos princípios democráticos, violador das crenças americanas baseadas num puritanismo religioso. Tocqueville escreveu que “querer deter a democracia seria então como que lutar contra o próprio Deus”, o que enquadrado no contexto iraquiano coloca em conflito Saddam e o “mesmo Deus” que guia e ilumina a política de George W. Bush.

Como reacção às ameaças impostas ao império, a administração Bush iniciou a partir do 11 de Setembro de 2001 uma guerra entre o bem e o mal, delineando muito claramente a linha de fronteira entre estas duas realidades do mesmo mundo.

Acusado de ter um discurso simplista e maniqueísta, que não dá espaço à “zona cinzenta”, onde, afinal se jogam, na maioria do tempo, as relações internacionais, Bush não se coibiu de assumir imediatamente um tom messiânico.

Com um discurso mobilizador a nível interno, mas visto com desconfiança por sociedades externas, que não partilham as convicções políticas e religiosas dos norte-americanos, Bush falou de fé e com fé, para uma audiência que se rege pelos preceitos religiosos. A sociedade norte-americana continua fortemente vincada pelo conservadorismo religioso, e influenciada pelos seus conceitos e crenças.

A relação de Bush e Deus, e a dos americanos e Deus, é estreita e fiel. Intrinsecamente, a religião acaba por condicionar o dia a dia das pessoas, e consequentemente, por influenciar o pensamento estratégico norte-americano, assim como o seu discurso político. “Os ideais puritanos da Nova Inglaterra constituem, talvez, o factor mais importante na determinação do pensamento americano”, escrevia há umas décadas o professor Raymond G. Gettell, da Universidade da Califórnia.

Por vezes, os Estados Unidos revelam sinais de uma pura teocracia. Por exemplo, o “Deus abençoe a América”, no fim de todos os discursos políticos do Presidente, retira a laicidade a um momento que se quer politicamente solene.

A famosa frase, “Em Deus confiamos”, estampada nas notas de dólar, reflectem a predisposição norte-americana para a invasão religiosa na história da vida privada e pública da América.

No modo de vida norte-americano, Deus está acima de tudo e todos. Por detrás de um Presidente americano, está sempre Deus, encaminhado os desígnios da nação americana da forma mais justa.

A sua presença é assumida pelo dirigentes do país que não se inibem de referir Deus de uma forma constante, contrastando com o carácter laico e histórico das sociedades europeias.

Bush não tem dúvidas ao afirmar que a sua presidência surgiu em parte de um “plano divino”, chegando mesmo a dizer a um amigo durante os tempo de Governador do Texas: “Eu penso que Deus quer que eu me candidate para Presidente.”

Longe das crenças e das convicções de cada cidadão, este é um discurso que as nações europeias perderam durante a revolução francesa, e que se afastou por completo durante o conturbado e revolucionário século XIX. Já Nicolau Maquiavel (1469-1527) fazia ensaios que visavam a secundarização da religião ao nível das relações internacionais. O realismo político dava aqui os seus primeiros passos, seguidos, curiosamente pelo cardeal francês, Richelieu.

Apesar de Nietzche ter “morto Deus”, o cariz religioso na Europa não desapareceu, no entanto, a sua intervenção nos assuntos de Estado e da própria sociedade, reduziu-se ao campo privado. Uma evolução que os americanos não seguiram, nem as respectivas administrações. Paradoxalmente os próprios ensinamentos de Locke (1632-1704) ou Montesquieu (1689-1755) acabaram por ser violados, de certa forma, pela intromissão de Deus nos assuntos políticos.

É o próprio Bush a assumir que os “acontecimentos não são movidos pela cegueira e oportunidade”, mas “pela mão justa e providencial de Deus”. O Presidente americano não se reserva a personificar a vontade de Deus num ataque ao Iraque. Convicto de que está a combater o mal, materializado por Saddam Hussein, bin Laden, entre outros, Bush transformou uma questão estratégica e política (friamente inserida na lógica das relações internacionais) numa cruzada contra o infiel.

Este espírito providencialista foi criticado há duas semanas por Mário Soares, que denunciou o “carácter religioso” do discurso de Bush, salientando que a expressão “eixo do mal” é perigosa e “sem sentido”, descendo ao nível da retórica de Saddam Hussein.

No entanto, o providencialismo foi o farol dos líderes americanos na condução das suas políticas ao longo de mais de dois séculos de História.” Por vezes, ao serviço de ideias nobres, servindo como um antídoto para as tragédias de uma nação, como fez o Abraham Lincolon ao evocar a Providência ao Norte e ao Sul com forma de reconciliação, e de sarar as feridas, refere o autor, Jackson Lears.

Porém, esta Providência tornou-se também um instrumento nas mãos de determinados dirigentes, como o senador Albert Beveridge e outros imperialistas no final do século XIX, que não se inibiram de insistir que Deus “marcou” o povo americano para liderar a “redenção no mundo”.

Foi com base no providencialismo que os nativos foram expulsos pelo povo americano, ao qual Deus tinha dado a sua terra.

Da mesma forma que o Presidente, Woodrow Wilson, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, usou a retórica da redenção para alcançar uma paz justa, Bush utiliza os argumentos religiosos para justificar uma “guerra justa”, “desencorajando o debate e reduzindo a diplomacia à coação”.

Familiarizado com o discurso do antigo Presidente, Ronald Reagan, Bush criou um “eixo do mal”, uma versão pós Guerra Fria do “império do mal”. Na verdade, o actual residente da Casa Branca voltou a pôr o providencialismo “na moda”, assumindo uma democracia conduzida pela mão de Deus, num princípio que sempre regeu a propagação deste fenómeno no seio da nação norte-americana desde a sua criação, e que Alexis Tocqueville formalizou na sua famosa e histórica obra “Da Democracia na América”.

Para Bush, Saddam Hussein é um prevaricador dos princípios democráticos, violador das crenças americanas baseadas num puritanismo religioso. Tocqueville escreveu que “querer deter a democracia seria então como que lutar contra o próprio Deus”, o que enquadrado no contexto iraquiano coloca em conflito Saddam e o mesmo Deus que guia e ilumina a política de George W. Bush.

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