2025/06/25

“Entre o Dia e a Noite”

“Entre o Dia e a Noite” está inserido num ciclo de acolhimento a novos criadores. Try Better. Fail Better ’08 é da responsabilidade do Teatro Garagem e serve de espaço de experimentação, de lugar para novidades criativas.

“Entre o Dia e a Noite”, um espaço de memórias individuais
Um diálogo emotivo sobre liberdades
“Entre o Dia e a Noite” está inserido num ciclo de acolhimento a novos criadores. Try Better. Fail Better ’08 é da responsabilidade do Teatro Garagem e serve de espaço de experimentação, de lugar para novidades criativas. Esta é a primeira encenação profissional de Adriana Aboim e conta uma história de amor, de liberdade, de tensão. Acima de tudo este é um diálogo a quatro vozes, assumido como uma co-criação, tendo em conta o processo criativo. Com Pedro Carmo, Adriana e João Aboim e Carolina Matos, estará no Teatro Taborda até 5 de Outubro.

Na base da criação de Adriana Aboim estava uma ideia muito definida: trabalhar esta história a quatro vozes, criando um diálogo coerente entre as palavras de um homem e de uma mulher, e as sonoridades de um violoncelo e de um piano. Tudo isto numa abordagem realista criada num espaço intimista onde fosse possível criar uma grande proximidade entre o público e os intérpretes.
Adriana adoptou um processo criativo de grande cumplicidade com a equipa, em que a peça foi sendo construída de acordo com aquilo que todos iam dando ao longo dos ensaios. A verdade é que funcionou. “Entre o Dia e Noite” é mesmo um diálogo a quatro vozes, principalmente porque os músicos conseguem ser mais do que isso, conseguem ser também eles actores, porque os seus olhares se cruzam em momentos cruciais de diálogo que acontecem entre Adriana Aboim e Pedro Carmo, porque a respiração de Carolina ao tocar violoncelo se mistura com a tensão de um toque entre eles, mesmo que esse não aconteça, mesmo que não seja propositado.
A história em si mesma é tensa. É a noite de passagem de ano, aquela entre a noite de ano velho e o dia de ano novo. Rosa odeia essa data pelas memórias da primeira vez que a mãe a deixou, no sentido de a proteger aquando da sua incursão sem regresso na luta pela liberdade. Ao longo da história vamos percebendo determinado background histórico: a envolvência da Rússia, do vermelho da revolução, que nos é transmitido através de frases e contextos da história de Rosa. A sua mãe lutava pela liberdade, Jorge também era um revolucionário. Há uma matrioska em cima da mesa do quarto que nos envolve e um chapéu russo, que a certa altura é usado por Rosa. O espaço é de facto intimista. O cenário é simples e tem ar de quarto onde se trocaram beijos e reflexões sobre tudo e mais alguma coisa.
Os dois encontraram-se, viveram um amor impossível, pelo menos assim o entendem, separaram-se e 15 anos depois Jorge volta e encontra Rosa no quarto, onde tanto tempo antes tinham vivido uma relação amorosa repleta de desequilíbrios, que continuam presentes.
A passagem de ano marca decisões, um novo recomeço. Ambos o desejam intimamente, naquele tempo sem tempo onde se encontram num espaço, onde parece apenas existir tempo para os dois. Jorge viveu, viajou, lutou, Rosa sobreviveu, casou e teve uma filha. Nunca mais se viram desde então. Tomaram decisões, todas as personagens o fizeram, incluindo a mãe de Rosa, ao deixá-la. Rosa e Jorge acusam-se, culpam-se, amam-se. De forma incontrolada começam a aproximar-se fisicamente. A tensão é crescente, entre a música tocada pelos fantásticos intérpretes João Aboim e Carolina Matos e as palavras soltas sussurradas e gritadas de Pedro e Adriana, respectivamente, sentimos a nossa respiração mais rápida, mais angustiada.
Esta peça fala-nos não só de uma história de amor sofrido, de duas pessoas que se separaram e que não conseguem ultrapassar isso, reflectido na força que Adriana Aboim (Rosa) passa pela sua voz trémula e pela forma como se deixa levar pelos pequenos toques, pela forma como lhe diz: “Estás mais gordo…”, e que Pedro Carmo (Jorge) passa através da forma como se movimenta em palco, como abre a janela do quarto, que dá para a varanda da Sala de Ensaio e olha as luzes da cidade, falando da saudade do mar, mas implicitamente da saudade de Rosa; esta peça fala-nos também das reflexões individuais, do poder do indivíduo. Mostra-nos que, apesar de toda a envolvência, o indivíduo está entregue a si próprio, que as escolhas (neste caso de Rosa e Jorge, quando Jorge decidiu partir e Rosa ficar, mesmo que Rosa considere que foi algo decidido por ele e ele passe maior parte do tempo a convencê-la, ou a convencer-se, de que foi algo decidido mutuamente) definem os caminhos de cada um. As decisões são momentos em que nos questionamos e em que percorremos os limites das nossas liberdades. Aqui fala-se de liberdade política, de decisão, de liberdade humana, de relacionamento, de liberdade de escolha. A vulnerabilidade das personagens vem daí, deste universo. Em último plano, eles são os únicos responsáveis pelas suas decisões. A liberdade procurada nas revoluções, aquela da história em background conceptual é aquela que fica na memória social colectiva, mas são as liberdades diárias aquelas que são mais emotivas e que ficam na memória individual. É um jogo afectivo que está em palco. A intensidade e tensão reflectidas no trabalho passam também pela forma como o trabalho foi desenvolvido, de criação conjunta, da forma emocional como se sente que trabalharam.
Além da revolução de memórias afectivas trazida pela peça, eles relacionam-se novamente com os mesmos objectos com que já se haviam relacionado. Toda esta peça é um regresso a um lugar onde já estiveram, mas que não é o mesmo, mesmo se se continuam a amar, e que falem não muito objectivamente desse sentimento, eles, enquanto indivíduos, estão diferentes. A mãe de Rosa bate à porta do quarto. Nunca a vemos. Só a ouvimos, através da sua voz seca a chamar Rosa e através da voz de Rosa a falar-nos dela. É ela própria uma voz presente, a quinta voz. E respiramos fundo por ter terminado a angústia daquele momento, mas entre o cheiro a cigarros que fica pelo fumo partilhado e a sonata de Shostakovich que não nos sai da cabeça, reflectimos sobre as nossas liberdades e questionamo-nos a nós próprios.

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