Estreia hoje na Sala Estúdio do Teatro da Trindade, em Lisboa, a peça “Tremores Íntimos Anónimos”, inserida no Ciclo Contemporâneos Portugueses. Com encenação de Susana Arrais e interpretação de Ana Cloe, Edmundo Rosa e Teresa Pombo. Os textos estão a cargo de Luís Carlos Patraquim e António Cabrita.
Segundo a sinopse da peça, “o desafio à partida era imenso, trabalhar ou retratar o nosso quotidiano de miséria pela pena irónica e divertida de dois
poetas/jornalistas tão mordazes como são o Luís Carlos Patraquim e o António Cabrita. Um mosaico de cenas, frase, diálogos soltos, encadeados segundo uma lógica de “e por falar nisso!…”.
Tremores Íntimos Anónimos retrata a descontinuidade da realidade humana e com as tonalidades do quotidiano, onde temas como a sexualidade, o voyeurismo, ou a incomunicabilidade
se articulam e desarticulam como num harmónio. Dois escritores.
Uma encenadora. Gerações diferentes, pontos de vista complementares?”
Em cena até 15 de Março de 4ª a Sábado.
Elogio da encenação como “caixa preta”
“Já em tempos, num texto sobre teatro, referi que para mim o teatro equivalia à “caixa preta” dos aviões: um dispositivo que condensava memórias, sonhos e traumas irredutíveis, que nos devolve à realidade dos fantasmas, à realidade de antes do desastre.
Talvez seja essa a ideia que subjaz ao título que eu e o Patraquim escolhemos para intitular a nossa proverbial trapalhada: Tremores Íntimos Anónimos. Isto é: os estados íntimos das almas nessa dança com que a realidade faz conversar e desconversar as criaturas, na quotidianeidade que as devora e torna descartáveis. Algumas vezes são personagens mais ou menos risíveis, em situação e/ou em conflito com a sua circunstância, outras vezes são apenas frases desgarradas que procuram personagem, jogo.
Convém dizer que a inteligente opção cénica de Susana Arrais entretece também um fio dramatúrgico que salva as “vozes desconexas” que o texto tenuamente enleava, dando-lhe um sentido que a peça não continha. Daí que possamos dizer com justiça que existia um texto-a-espaços-dramático antes das soluções da encenadora e que agora existe uma “peça”, que aquela e os actores exumaram e a que souberam dar persuasão.
Foi um trabalho de organização, decifração e clarificação que, como nas “caixas pretas”, devolveu um sentido ao desastre. Está pois de parabéns a equipa que levanta este espectáculo no palco e só para ter assistido a esse outro espectáculo da inteligência-em-acto valeu a pena cometer estes “tremores íntimos”. Que se esperam recompensados pelo “anonimato” das palmas.” António Cabrita
Tremores Íntimos Anónimos
“Piquenos exercícios de ironia, alguma ferocidade, muita ternura. Sentamo-nos num café e abrimos o jornal: na coluna das “breves” há mesmo uma notícia sobre as calcinhas borboleta; Brasil, Rio de Janeiro. A descrição da sua funcionalidade até é sugestiva, faz sorrir. As elucubrações são as possíveis: não dá para pedir tratamento do tema, suas “esquiso” ou outras explicações, a nenhum especialista de televisão. Mas não pode dar isto: outra vez piquenas vibrações, situações de linguagem, o desvelar do que se esconde sobre a “evidência” do quotidiano, sua tipologia de situações e de personagens/máscaras? Dá!
Então, se dá, toca a baralhar tudo e a pôr numa caixinha, tão antiga como a lâmpada de Aladino, tão incongruente como um tupperware. Era no tempo das transições: alguma coisa no fim, as fracturas a seguir. “O que é uma coisa?” perguntava um filósofo alemão. Tinha de ser alemão. Aqui não se responde a isso. Era preciso mais competência…. e quem não a tem “não se estabelece”. Aqui goza-se: uma família desnaturada, memórias desencontradas e incómodas, revelações de fazer uma girafa encolher o pescoço. Com piquenos tremores anónimos e algumas letrinhas apenas.” Luís Carlos Patraquim.