2025/05/31

A clausura e o luto de Lorca

Uma casa, seis mulheres e Lorca revisitado de forma moderna. O clássico do autor espanhol “A Casa de Bernarda Alba” é adaptado pelo grupo Teatro à Parte que, simbolicamente, homenageia o autor, dando o nome “A Casa de Lorca” à peça. No contexto da Guerra Civil espanhola, o confronto intemporal entre liberdade e repressão é transposto para palco. O SEMANÁRIO aproveitou para conversar com o encenador da peça, Jorge Parente, de forma a desvendar algumas das inovações que o Lorca do século XXI nos traz.

Porquê Lorca, um autor tão desconcertante?
Fazer Lorca é um desafio estimulante para qualquer encenador e para qualquer amante de poesia e depois porque, quando li esta obra, era fascinante ver como Lorca criava uma desenvoltura e agilidade enorme na linguagem, tornando vivas as próprias personagens da peça. Foi, no fundo, a partir da leitura que nasceu a curiosidade por encenar este espectáculo, que fala de sentimentos, de valores e beleza.

Há, portanto, uma preferência pessoal por este autor?
Sim, podia escolher outro e estando a dirigir um grupo amador de teatro não tenho interesse em criar texto próprio, caso contrário estaria a dirigir um grupo profissional de teatro. Eu, de facto, gosto de sentir uma peça a cativar-me ou a motivar-me pelas personagens e pelo texto.

Na sua lógica “desconstruir para construir”, em que pontos pegou para alterar o texto original?
O meu processo de encenação tem sempre essa máxima e isso de facto dá-me grande gozo. Eu vou procurar respostas no texto e depois vou mais longe do que o próprio autor me dá a entender. O gozo de pegar numa peça é para mim cortar cenas, cortar personagens, reinventar outros espaços, dar vozes a personagens que não tinham voz. Na “Casa do Lorca” eu tive a ousadia de criar cenas, mas com uma particularidade que é o facto de as cenas criadas por mim terem sido feitas com base em palavras de outros textos do próprio autor. Nunca palavras inventadas por mim, mas sim palavras do próprio Lorca.

A intenção em colocar os actores como alter-egos das mulheres da casa tem que propósito?
Eu estou a trabalhar com um grupo de 23 elementos onde a maioria são homens. Desse modo, e tendo em conta que as personagens principais da peça são mulheres, que faria aos homens? Houve uma necessidade de criar um espectáculo para todos os elementos do grupo e é esse processo que me dá gozo. Já foram feitas várias versões de “A Casa de Bernarda Alba” mas, de facto, esta forma com que montei o espectáculo é de facto muito minha e original. Ao funcionarem como alter-ego das mulheres, funcionam também como mecanismo de espelho, inverso a cada uma delas e, ao mesmo tempo, duplo de cada uma das personagens. Retirei praticamente os diálogos e transformei-os em monólogos que representam cada uma das filhas. No fundo eles mostram ao público aquilo que elas são, aquilo que escondem e não dizem à mãe castradora que têm. Representam a crueldade, a raiva escondida no inconsciente das mulheres. Funcionam como uma psique daquele universo feminino. Esta é de facto a grande curiosidade pois, mulheres que vivem a esconder os seus sentimentos são aqui demonstradas de forma muito mais provocadora, e o teatro é também feito de provocação.

Acha que no actual contexto social esta peça ainda funciona como espelho da realidade?
Esta peça funciona de facto como espelho. Há uma série de mulheres que podem identificar-se com a peça. No fundo acaba por ser o costume. O luto que a Bernarda mãe provoca nas filhas era na altura um costume real e uma tradição levada a extremos. É dentro deste excesso que leva a que aquelas mulheres sejam altamente reprimidas e que uma série de conflitos interiores nasçam nelas de forma extrema até à morte, até porque a morte está sempre presente em Lorca.

Parecia aliás que Lorca já previa que esta seria a sua última peça…
Esta foi a última peça dele e por isso a peça funciona como homenagem, daí chamar-se a “Casa de Lorca” e não “A Casa de Bernarda Alba”. Pegando numa frase do próprio autor, “depois de morrer, continuarei a viver”. Penso que ele quis dizer com isto para os leitores e para o público continuarem a ler e a acompanhar a obra dele. Seria a forma de ele continuar vivo depois de morto. Inicio até o espectáculo com uma cena inventada em que começa com o fuzilamento dele e onde diz precisamente essa frase. Ao longo da representação ele interfere na peça, não em diálogo, mas num plano simbólico com incidência sobre o universo dele. Ele vai “parir as personagens femininas” que criou.

E a nível cénico como é que criaram a Casa?
Eu trabalho com as imagens e alguém me disse um dia que eu era um “arquitecto do espaço cénico”. Quando pego numa obra, não quero que ninguém crie um espaço por mim. Gosto de fazê-lo. Eu vejo tudo e quando ensaio imagino desde logo o espaço. E nesta peça o espaço é de certa maneira minimalista e aproveito esse facto para o colocar de forma simbólica, tendo como forte presença uma jaula. O lado da jaula representa a prisão e então quis mostrar isso de forma simbólica. São os homens que utilizam mais a jaula, já que representam o lado mais surrealista da peça, ao passo que as mulheres estão no plano naturalista.

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