A seguir ao voto em Soares em 86, o voto com maioria absoluta em Sócrates pode ser o segundo grande fenómeno de voto com a cara tapada em Portugal
O voto de domingo promete ser o mais racional de sempre, com Sócrates na hora certa e no momento certo para vencer com maioria. O eleitorado, que tem sido inteligente a votar, desde que votou pela primeira vez em 1975, já deve ter percebido há muito que se fosse pelos méritos de Santana e Sócrates não votava. Mas, inteligente que é ( como o foi ao votar PS em 75 e 76, Eanes em 80, PRD em 85, Cavaco em 85, 87 e 89, Soares em 86, Guterres em 95, Santana em Lisboa/2001e até, com alguma benevolência, Sampaio em 96) o eleitorado pode votar no domingo, essencialmente, por razões de lógica, raciocínio e estratégia no PS, tapando a cara ao engenheiro Sócrates mas votando, real e estrondosamente, socialista. Pode ser, pois, o segundo grande fenómeno de voto com a cara tapada em Portugal, depois de Cunhal ter criado esta forma de voto em Mário Soares para Belém. Desta vez, a única diferença, é que o eleitorado está, espontâneamente, preparado para votar com palas, ultra-defendido para não cair em tentações desviantes, quer à esquerda, quer à direita, e entregar-se nas mãos do PS. Certamente que não vai ser feliz mas pode vir a ter algum descanso e estabilidade, deixando de andar com o coração apertado e os bofes de fora por causa da política.
Quais as razões deste voto, sem dúvida pouco saudável, mas parece que necessário? Votando, essencialmente para ser (e deixar-se ser) governado, o eleitorado livra-se do comportamento errático de Santana e do casamento instável entre Santana e Portas, votando, no fundo, por uma questão de instinto de sobrevivência, mesmo de estado de necessidade. Quase se entregando nas mãos de uma maioria absoluta do PS, como, em 1926, os portugueses de então se entregaram nas mãos de uma ditadura que não era uma forma curial de governo mas representava uma esperança depois de anos e anos de instabilidade na I República. Como a democracia não permite golpes de Estados, a maioria absoluta do PS pode ser a forma possível e sucedânea de um “putsh”. Em termos mais comezinhos, o eleitorado vai votar em Sócrates como se vota numa administração de condomínio, uma coisa que já de si é chata e ainda mais quando a administração cessante nem as luzes fundidas da escada sabia substituir.
O eleitorado tem a consciência que chegou ao fim da estrada. Daí que possa estar mesmo preparado para, no próximo domingo, engolir coisas que de outra forma não engoliria. Designadamente, as intimidações de Mário Soares de que os portugueses não serão responsáveis se não derem uma maioria absoluta ao PS e, claro, engolir Sócrates com as suas palmoadas cada vez mais irritantes, de que os seus adversários são deprimentes, de que são ridículos, de que tudo é um disparate pegado (assim mesmo), de que ele é o super-Sócrates e os outros são uma cambada de burros. O povo detesta estas volúpias de carácter (não passou despercebido que Sócrates tivesse interrompido o debilitado Jerónimo de Sousa, que pouco tinha aberto a boca, no debate da RTP) e estas manias virtuosas de que está acima dos outros. Dói que se farta na alma, ainda por cima porque deve haver consciência de que estes ares superiores vão aumentar no governo, mas não adianta questionar. O que tem que ser tem muita força. E há sempre pequenos lenitivos para disfarçar a amargura, processos que se criam para nos enganarmos ali, nos iludirmos acolá, autênticos mecanismos de defesa. É possível que, no domingo, muitos portugueses que votam PS construam o seu voto na base de um processo racional deste género, que os visa proteger e encerra em si um pensamento estratégico: o PS governou mal em 2001 mas pode ter governado pior porque governou sem maioria absoluta. O facto de o país ter chegado a um estado em que parece condenado a apostar, favorece Sócrates, como produto novo, e prejudica Santana e Portas, que foram poder e não funcionaram como deveriam ter funcionado. Tudo tem um preço. E o preço a pagar a 20 de Fevereiro, também pelo PP, pode ser o de a direita ser ainda mais penalizada do que o foi nas europeias do ano passado. O povo pode não admitir (não esquecendo, nem perdoando) a rábula ou a peça da vida real (para o caso pouco interessa) que Santana e Portas fizeram no último Outono, zangando-se, reconciliando-se, falando em irem separados às urnas. Na altura, pareceram óbvios os riscos destas atitudes, não se percebendo como é que dois partidos no governo, ainda com um horizonte de dois anos pela frente, podiam andar nestas cogitações, geradoras de preocupações no país e em Belém. Hoje, quando Santana repete que lhe interromperam a legislatura, a lembrança desta instabilidade na coligação é ainda mais negra. Depois, há outro aspecto onde o discurso do PS faz todo o sentido e que pode encaixar que nem uma luva nas linhas com que se cose o eleitorado. Não é só Santana e Portas quem estão a ser julgados a 20 de Fevereiro mas também Durão Barroso, o discurso da tanga, a política de Ferreira Leite, o beco sem saída a que Durão conduziu o país e que está, aliás, na origem do voto humilhante recebido nas europeias de Junho, mais um voto inteligente exercido pelo povo. Por último, o facto de o Parlamento não pode ser dissolvido durante quase dois anos é mais um dado que deverá induzir o eleitorado a votar, forçosamente, Sócrates. Há quem refira que o eleitorado não se rege por vissitudes político-constitucionais. Mas o que interessa é a ideia simples, mais ou menos percebida, que fica de que o país pode ficar ingovernável sem uma maioria absoluta. Fosse do PS ou do PSD. O eleitorado é inteligente mas pensa simples e não gosta de coisas sofisticadas. Esta, talvez, a explicação, para que aquilo que fosse desejável acontecer no próximo domingo, um estrondoso voto contra o sistema, através da abstenção, do voto branco ou do voto nulo, não possa ter lugar. E talvez até seja bom que não aconteça, no fundo com o eleitorado a dar aqui lições da arte de governar a comentaristas que vivem na estratosfera. Percebem-se, porém, as razões invocadas por Agustina Bessa Luís para votar Santana. Como, voltando à metáfora comezinha da administração de condomínio, se percebe que toda a gente simpática do burgo preferisse ter Santana Lopes como vizinho do que José Sócrates (uma pergunta que as sondagens não fizeram). Só que, muitas vezes, não é possível conciliar o útil e o agradável e, perante isto, não vale a pena perder tempo com quimeras do desejo.
A estratégia não ajuda.
Quando Santana Lopes e Paulo Portas acentuam que José Sócrates pode ficar refém do BE e do PCP depois das eleições do próximo domingo podem estar a cometer o erro estratégico de levar os indecisos a votarem no PS, exactamente para que o país possa ser governado, sem condições e sem estigmas, ora porque o BE é contra a NATO, ora porque o PCP é contra a Europa. Ainda por cima, outro erro estratégico, agora da parte do Bloco, pode também favorecer o PS. Quando Francisco Louçã repete que nunca irá para o governo com o PS, pode estar a levar muito votante à esquerda dos socialistas a votar útil em José Sócrates.