A investigação ao Fundo de Defesa do Ultramar verificará se as Forças Armadas Portuguesas faziam tráfico de droga. Por que é que Paulo Portas não entrega os documentos da investigação dos Serviços Secretos Militares sobre o atentado de Camarate?
A investigação do Fundo de Defesa do Ultramar (250 caixas de documentos guardados no Ministério da Defesa, de um total de 9000 dossiers com registos desde 1950) poderá provar que as Forças Armadas Portuguesas estavam envolvidas no tráfico de cocaína, para financiar operações clandestinas dos serviços secretos ocidentais, contra o fundamentalismo islâmico. Mas não servem para provar nada relativamente a Camarate.
Sobre Camarate, Paulo Portas tem que autorizar o acesso aos ficheiros secretos dos Serviços de Informação Militar que, por força da lei, fizeram uma investigação competente ao acidente que vitimou Sá Carneiro, Amaro da Costa, Snu Abecassis e António Patrício Gouveia. Tudo parece indicar que não se matam primeiros-ministros, e que, a ter havido atentado, ele destinava-se ao ministro da Defesa, Amaro da Costa.
Portugal sempre foi um país de traficantes. De traficantes do tráfico do Atlântico. Desde as especiarias, ao ouro, aos escravos e à cana-de-açúcar. Era, aliás, uma prerrogativa do duque de Aveiro, o exclusivo do contrabando com Marrocos, reconhecido pelo monarca.
No século XX o grande contrabando no Atlântico foi sobretudo o do tabaco, que acabaria por reconverter as famílias “mafiosas” nacionais em distribuidores de tabaco sem impostos dos principais fabricantes internacionais, suspeitando as autoridades, que são sobretudo as fábricas da Roménia e da Turquia que abastecem esse mercado.
Mas actualmente a principal linha de tráfico do Atlântico é a droga, sobretudo a cocaína, onde as “famílias” galegas, com fortes ligações à América do Sul, têm ganho preponderância. Mas, nos anos setenta, há fortes indícios que parte significativa do tráfico de cocaína era feito com recurso ao transporte militar das Forças Armadas Portuguesas.
Suspeitas que os militares, cumprindo ordens superiores, faziam o despacho e transporte de droga, com guias de marcha e registos burocráticos, como se se tratasse de um transporte regular e normal.
Com o bloqueio a Portugal, decretado pelas Nações Unidas, o Fundo de Defesa do Ultramar serviria alegadamente para Portugal furar o embargo, numa manobra típica de um Estado pária na comunidade internacional, como é hoje o Iraque. Esse fundo seria alegadamente financiado por actividades clandestinas do Estado e por transferências do Orçamento do Estado. Algumas suspeitas que o regime usava o tráfico de droga para financiar o esforço de guerra colonial nunca passaram disso mesmo.
O Fundo de Defesa do Ultramar deveria ter sido extinto após o 25 de Abril, uma vez que as suas actividades clandestinas já não se justificariam. Porém, o Conselho da Revolução deixa-o continuar, na dependência dos militares de formação americana que integravam as chefias da revolução, e alegadamente passa a integrar o financiamento de actividades clandestinas das Forças Armadas, nomeadamente no âmbito da NATO, com particular destaque, segundo algumas teses, para o financiamento da actividade anti-islamita, tendo o auge sido atingido na operação conjunta entre a CIA e as Forças Armadas Portuguesas na desestabilização do Irão após a queda do Xá Reza Palevi, operação que levaria o nome de “Iran Contras”.
De notar que o fundo era antes gerido pelo estado-maior, cujo chefe era Costa Gomes, que viria a assumir a Presidência da República, depois do 28 de Setembro.
Nesta altura, circula em certos meios militares, o fundo era claramente financiado pelo tráfico de droga, alegadamente organizado pelas forças de contra-espionagem americana, que não tinham autorização do Congresso dos Estados Unidos para levar a cabo a política do Departamento de Estado. Portugal, com o pré-cônsul americano Frank Carlucci em Lisboa, estava no centro do Mundo.
Desta época, garantiram esta semana, ao SEMANÀRIO, fontes militares, é provável que existam nos serviços secretos militares documentos sobre as operações, mesmo que os balanços reais não constem da documentação oficial do Fundo de Defesa do Ultramar.
Alegadamente, toda esta operação de tráfico de droga, que financiava as eventuais operações clandestinas em defesa do Ocidente seria alegadamente comandada por oficiais portugueses tidos por próximos dos Estados Unidos da América ou mesmo contratados como agentes da CIA e de outros serviços secretos militares estrangeiros.
Estas operações seriam alegadamente do conhecimento dos militares que integravam os gabinetes dos ministros da Defesa sucessivos, após a revolução do 25 de Abril. Algo que nunca chegou a ser apurado até hoje, porque os ficheiros secretos do Serviço de Informação Militar das nossas Forças Armadas nunca foram investigados.
No seio da AD, após a morte de Sá Carneiro, corria o rumor que o chefe de gabinete de Amaro da Costa, Hugo Rocha, poderia ter conhecido a alegada operação de tráfico de droga e que só mais tarde é que o ministro viria a tomar conhecimento do assunto. Estamos no ano seguinte ao da queda de Somoza na Nicarágua, no tempo do tráfico de Estado.
Uma das versões nunca confirmada em todas as investigações aponta, aliás, que alegadamente Amaro da Costa teria feito chegar ao primeiro-ministro Sá Carneiro um memorando sobre o tráfico de droga através do Fundo de Defesa do Ultramar e que teria a intenção de vir a usar a informação para atacar o Conselho de Revolução.
A tese conspirativa, que não tem suporte documental até agora, para além das suspeitas e dos rumores dentro da classe política e na magistratura, admite mesmo que este poderia ser o alegado móbil do crime que vitimaria Amaro da Costa e, acidentalmente, o primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro.
Com efeito, Sá Carneiro não deveria ter seguido no avião de Amaro da Costa para o comício, programado no Porto, de encerramento da campanha eleitoral em 4 de Dezembro de 1980.
Mas a tese tem algumas contradições, muito embora, nessa altura, os americanos estivessem mais ligados aos militares de esquerda e ao partido socialista, e Amaro da Costa, com ligações aos movimentos nacionalistas europeus, alimentasse o antiamericanismo tradicional na direita portuguesa salazarista, que não perdoava o facto da América patrocinar os movimentos de libertação nas ex-colónias portuguesas.
E a principal das contradições é que, pretendendo a AD estabilizar o regime democrático, a embaixada americana era e continuava a ser um dos principais apoios das forças democráticas.
Era, porém, evidente o conflito entre o Governo e o Presidente da República Ramalho Eanes. No almoço do Tavares, que antecedeu a fatídica viagem de Sá Carneiro, a 4 de Dezembro de 1980, e no qual estiveram presentes Soares Carneiro, o candidato presidencial da maioria governamental, Victor da Cunha Rego, Freitas do Amaral e Cavaco Silva, poderia não estar em cima da mesa o orçamento das Forças Armadas, mas estava seguramente a decisão de Sá Carneiro se demitir do Governo, no caso da vitória previsível de Ramalho Eanes, nas eleições presidenciais.
A dramatização era total e Sá Carneiro tinha ainda o trunfo, a lançar no comício dessa noite, do fundo gerido por Canto e Castro, exilado em Londres e casado com a sul-americana Joanita Valdera, e outros militares próximos dos socialistas e da embaixada dos EUA e tidos como próximos de Belém.
E o que é mais curioso é que Sá Carneiro acordou com os seus comensais que seria Eurico de Melo o novo primeiro-ministro de Portugal, podendo eventualmente, e já nessa altura, Cavaco Silva assumir uma pasta de Estado, ele que, no mês anterior, tinha pensado apresentar a sua demissão a Sá Carneiro e abandonar a AD.
Próximo dos americanos e não, seguramente, por causa do tráfico alegadamente monopólio do Fundo de Defesa do Ultramar, Francisco Pinto Balsemão não esteve no referido almoço do Tavares, alegadamente convocado para discutir os últimos pormenores da campanha do general Soares Carneiro, mas voaria para o Porto, onde aguardaria na gare do aeroporto das Pedras Rubras (hoje, aeroporto Sá Carneiro) pela chegada do primeiro-ministro e que horas depois, sem nunca ter abandonado o aeroporto, reembarcaria, no mesmo avião, para Lisboa para assumir a liderança do Governo como primeiro-ministro, contrariamente ao que o próprio Sá Carneiro desejaria, conforme testemunhos que o SEMANÁRIO recolheu de Cunha Rego, ainda em vida, e que nos foram mais tarde confirmados por Freitas do Amaral.
As investigações da Judiciária são rápidas e Freitas do Amaral chega mesmo a admitir como mais provável a tese do acidente em Camarate. Agora, já como ministro da Defesa da segunda AD, Freitas continuava a não ter a tutela dos serviços de informações militares, devido à autonomia das Forças Armadas, que dependiam do Conselho da Revolução, que tinha competência praticamente exclusiva sobre questões de Defesa.
Freitas do Amaral haveria, anos mais tarde, ante a evidência de algumas suspeitas, de vir a corrigir a sua interpretação sobre Camarate.
Freitas do Amaral distanciara-se de Balsemão e, intempestivamente, abandona o Governo, provocando as eleições de 1983, que abririam, depois, espaço ao bloco central, já com Mota Pinto na liderança do PSD.
Ficava, entretanto, como ministro da Defesa Interino, Ricardo Baião Horta, e no Bloco Central emergiam Jaime Gama e Ângelo Correia, na área da Defesa Nacional.
A tese do acidente tinha ganho na opinião pública e o assunto ficava arquivado nos tribunais, apesar da família das vítimas e alguns amigos continuarem a dizer que se tratou de acidente.
Eurico de Melo assume a Defesa com Cavaco Silva, mas a alegada história do desaparecimento de documentos da NATO, que viriam depois a ser encontrados nas mãos de um travesti em Almada e que alegadamente teria conduzido à sua demissão do executivo do PSD, parece uma história demasiado mal contada, segundo elementos do Ministério Público, que o SEMANÁRIO contactou.
Na magistratura, Eurico foi vítima alegadamente de uma conspiração que visava afastá-lo da Defesa e que teria surtido o seu efeito. Sucederia o homem do Bloco Central, Fernando Nogueira, que acabaria por vir a ser o número dois do aparelho laranja e a impor a sua liderança ao PSD, logo a seguir à decisão de Cavaco Silva de não se recandidatar.
A questão de Camarate morre por essa altura e só volta a emergir, já no governo socialista, com a notícia da prescrição do crime. Novas investigações são tentadas e como único documento aparece, apenas, o registo da entrada de Lee Rodrigues e José Esteves, alegadamente envolvidos no atentado, no Aeroporto da Portela, no dia do acidente.
Entretanto, António Vitorino, que viria depois a seguir para Bruxelas como comissário europeu e que, a semana passada, era indigitado como um dos mais fortes candidatos a secretários-gerais da NATO, depois de Robertson e com o apoio dos EUA, assumia a pasta da Defesa do Governo de Guterres e, como primeira decisão, liquidava com as relações de poder estabelecidas dentro do alegado tráfico e venda de armas nas Forças Armadas, que vinham desde o tempo do Bloco Central e concentraria as indústrias de Defesa Nacional no IPE, debaixo da tutela de Rui Neves, de sua confiança.
Uma situação que provocaria a falência, em série, de alguns dos conhecidos “dealers” de armas portuguesas.
Com Paulo Portas restabelecem-se os equilíbrios anteriores a António Vitorino e a indústria de Defesa volta para a esfera do Ministério da Defesa.
O revisionismo tem o seu momento. A polémica ganha novos contornos com o próprio primeiro-ministro de então, Francisco Pinto Balsemão, a admitir que Camarate não foi um acidente mas um atentado. Os livros de Inês Serra Lopes e de Sá Fernandes são “best-sellers” e a história do atentado avança mesmo para a película, com a realização do filme de Luís Filipe Rocha.
Vinte e três anos depois, a Comissão Parlamentar de Inquérito pede, pela primeira vez, a abertura dos ficheiros do Fundo de Defesa do Ultramar. O ministro da Defesa, Paulo Portas, autoriza que um grupo de auditores do Ministério das Finanças investigue as contas. Na berlinda ficam sobretudo militares ou ex-militares, afirma-se nos meios militares.
O que dá jeito a Portas, que fica com eles nas mãos, eles que são homens da América, tal como o primeiro-ministro Durão Barroso, convidado de Georgetown, a universidade jesuíta, que alegadamente forma agentes para a CIA.
Eurico de Melo afastou-se, com Durão Barroso no Poder, da política, definitivamente, mas não falta quem, alegadamente, o queira envolver em histórias do quotidiano, na intriga política-judiciária de Lisboa.
Não podendo haver julgamento judicial, poderá ainda haver julgamento político.
Mas nos meios da magistratura, o acto de Portas de dar acesso ao Fundo de Defesa do Ultramar a auditores das Finanças tem mais a ver com ajustamentos internos, que propriamente com Camarate, cuja comissão parlamentar é presidida pelo centrista Rui Melo.
Porque ao mesmo tempo que correu a investigação judicial, que nada concluiu e até chegou ao cúmulo de destruir ou negligenciar provas, o certo é que decorreu, por imposição da lei, uma outra investigação, também dos Serviços de Informação Militares. Serviços controlados pela esquerda, mas totalmente operacionais naquela época e que herdaram a competência do tempo do Exército Colonial, profissional e bem preparado, embora enfraquecido moralmente.
São esses papéis que Paulo Portas não deixou ver. São esses os papéis, os ficheiros secretos onde tudo deverá estar registado, que estão à guarda das Forças Armadas e que, no dia em que forem abertos, poderão revelar a dimensão da conspiração que poderá ter conduzido ao crime de Camarate.