Os santanistas são os primeiros a pedir a cabeça do Presidente da República,e presidenciais antecipadas, cavalgando sobre a crise no Governo e no PS e neutralizando a oposição partidária. Mas, a luta no seio do PS está longe de estar resolvida. Ou Sócrates cede ao aparelho e a Coelho, ou perde o Poder e o Governo pode cair já em Novembro.
No PS já se fala em substituir Sócrates por Vitorino por altura do próximo Orçamento do Estado, numa espécie de limpeza dos moderados. Mas, do lado de José Sócrates é a disponibilidade de enfrentar os opositores. Freitas do Amaral é, com Sócrates, o “ticket” que o Governo quer vencedor contra o Aparelho, que aposta em Mário Soares ou em Manuel Alegre e ameaça com o boicote ao primeiro-ministro, depois da derrota socialista nas autárquicas. No primeiro “round” quem perdeu foi mesmo o primeiro-ministro que já teve que sacrificar o seu ministro das Finanças.
Teixeira dos Santos, um honesto e prudente economista, substituiu, ontem, Campos e Cunha, levando consigo para o Governo um excelente técnico, como secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, Carlos Pina. Os homens de Sousa Franco voltam às Finanças.
É o grande confronto: o confronto pelo poder. Desde a queda da ponte de Entre-os-Rios, com a saída de Jorge Coelho do Governo socialista de Guterres, que este ajuste de contas estava para ser feito. Guterres não duraria muito mais, cercado pelo aparelho guterrista e pelos ex-comunistas com destaque para Pina Moura, entretanto corrido do Governo em ruptura com o centrista católico António Guterres. Sucederam-se os Governos das coligações de direita.
No PS, a solução Ferro Rodrigues era construída por Sampaio e levava o selo de Coelho. Tinha sido o próprio Aparelho a inventar Ferro como solução. Depois, o desgastante processo da Casa Pia arrumaria de vez com os sampaístas do PS, eliminando um grupo que, como o apoio do Presidente da República, poderia fazer frente ao aparelho guterrista.
No que poderia ser negociado, era com Jorge Coelho que se negociava, revelou, ao SEMANÁRIO, uma fonte do Governo de Santana Lopes. Mas os juízes começavam a assumir um surpreendente protagonismo justicialista, na esteira do populismo que o próprio Governo inspirava e numa altura em que dois ou três empresários e banqueiros se assumiam como arrendatários do regime em colaboração com alguns intermediários e traficantes de influências.
O desequilíbrio das contas públicas e as pressões de Bruxelas, com a saída de Durão Barroso, haveriam de precipitar os acontecimentos, ficando Santana Lopes, aparentemente, apenas o tempo necessário para o PS substituir Ferro Rodrigues por José Sócrates, numa manobra obviamente coberta por Jorge Coelho e que contaria com a conivência de Belém, que, numa leitura generosa dos poderes presidenciais, acabaria por demitir Santana Lopes e antecipar as eleições legislativas.
Jorge Coelho de fora
Depois da vitória do PS, surpreendendo o próprio PS, Jorge Coelho ficaria, por razões de saúde, de fora do Governo de José Sócrates, tal como António Vitorino, que, entretanto, se dedicaria à advogacia.
Sócrates formaria um Governo, indo buscar ao centro figuras como Freitas do Amaral e Campos e Cunha, que recebiam o aval dos cavaquistas críticos e Santana Lopes e Paulo Portas e davam garantia de manter as prioridades nacionais, nos termos que Durão Barroso e Ferreira Leite os tinham definido, nomeadamente no que respeita ao alinhamento com o Ocidente e os EUA em matéria de terrorismo e sobretudo em matéria de consolidação orçamental.
Até aqui nada de novo. As funções de soberania tinham sido dadas a independentes, a Maçonaria ficava com a Justiça, Costa ia para as polícias (onde acabaria por tirar aos juízes o monopólio das escutas telefónicas, criando o caldo legislativo próprio da devassa pública que aí vem).
Nas Obras Públicas e na energia ficavam homens tidos por próximos de Pina Moura, o poderoso representante da Iberdrola em Portugal, e, para a Economia, Sócrates ia buscar um homem dos Estados Gerais, Manuel Pinho, inicialmente tido como futuro ministro das Finanças e que seria o autor do plano keynesiano de Sócrates.
Basicamente, o primeiro-ministro daria no início do Governo cobertura à estratégia de Campos e Cunha de utilizar o início do mandato para tomar um conjunto de medidas difíceis, para poder conter o défice público, sem reduzir a despesa pública, de modo a não agravar ainda mais a procura pública, já em queda e por essa via a recessão, que se instalou há cerca de um ano em Portugal.
Mau ambiente económico
Campos e Cunha aumentou os impostos, em particular o IVA, com especial impacto no consumo privado e que se transformou num verdadeiro incentivo à evasão fiscal. Mas pior que isso, a publicação dos dados fiscais na internet e, finalmente, a devassa possível às contas bancárias com o fim do sigilo bancário provocou um novo surto de fuga de capitais em Portugal, que agravou ainda mais a situação interna. As empresas entraram rapidamente em colapso e a situação económica agravou-se substancialmente com a entrada do Governo socialista.
Como se isto não bastasse, o Ministério Público desencadeou um conjunto de investigações orientadas a combater a corrupção, fazendo buscas a casas e escritórios ligadas ao Grupo Espírito Santo e atacando directamente os empreiteiros e os autarcas socialistas e social-democratas e chegando eventualmente a alguns políticos e dirigentes nacionais dos principais partidos, como aconteceu com Nobre Guedes do CDS e ministro do Ambiente a propósito da Portucale.
Neste ambiente, havia que tomar medidas para contrariar o desespero do País em particular, criando um novo ambiente de confiança dos empresários. O investimento estrangeiro estava perdido por falta de competitividade da nossa legislação laboral e fiscal, e dificilmente Sócrates poderia fazer alguma coisa no curto prazo e as PME estavam estranguladas sem crédito e incapazes de vender os seus produtos com a procura interna a cair e as exportações pela primeira vez a não conseguirem aguentar.
O pacote de Manuel Pinho era a solução. Pinho, um economista competente, tem consciência que não há dinheiro para investimentos públicos adicionais, mas optou por explorar inteligentemente os projectos que estavam no Ministério, considerando todos aqueles grandes projectos que já estavam estudados e que até poderiam ter verbas dos fundos comunitários, considerando-os como projectos prioritários industriais.
Fazia assim uma aliança com os ex-comunistas, que acham que o investimento público é a única maneira de manter o emprego e, por outro lado, acabava por justificar a estratégia política do primeiro-ministro, que na campanha eleitoral afirmou que a prioridade seria sempre o emprego e o crescimento económico, sendo as contas públicas instrumentais.
As culpas de Vítor Constâncio
Vítor Constâncio faria também a sua parte. Entrou no jogo político da encenação do défice, com o célebre estudo do Banco de Portugal sobre o défice para 2005, que apontava para números falaciosos de 6,8% de défice, para permitir aumentar os impostos, mas depois foi crítico no facto de Campos e Cunha não ter conseguido cortar na despesa, em vez de aumentar impostos. Esse seria o mote para a queda do ministro das Finanças esta semana. O fracasso total de Campos e Cunha e as críiticas dentro do PS fragilizaram de tal modo o ministro das Finanças, já com pouco espaço político depois da questão dos seus vencimentos e reformas e, sobretudo, depois do erro nas contas do Orçamento do Estado Rectificativo e na divergência de números entre o Programa de Estabilidade e Crescimento e o OE Rectificativo. Farto, Campos e Cunha escreve o seu testamento final e presta-se ao sacrifício, fazendo publicar um artigo de opinião no “Público”, de que dá conhecimento ao primeiro-ministro que não pode concordar com a estratégia de Manuel Pinho ou de Mário Lino, relativamente à Ota e ao TGV. Era uma desautorização. Não podia continuar. Estaria no Governo apenas mais 48 horas.
Cansado e atacado pela oposição, sem apoio do governador do Banco de Portugal e sobretudo desmentido por Manuel Pinho e por Mário Ruivo, o ministro das Finanças acaba por se demitir numa altura em que a expectativa de uma derrota do PS nas autárquicas põe particularmente agitados os militantes e o aparelho do PS, que culpa o Governo de não facilitar a vida aos autarcas. Entrava na quinta-feira para o seu lugar Teixeira dos Santos, o presidente da CMVM, um homem componente e sério, e que logo ontem adiantou à comunicação social, que Portugal ia manter os compromissos internacionais com a Comissão Europeia em matéria de Programa de Estabilidade e Crescimento e que, por outro lado, deveriam ser feitos os investimentos públicos na Ota e do TGV, enquadrados nas disponibilidades das finanças públicas nacionais e sem recursos a novos impostos.
Teixeira dos Santos, o homem da bolsa e da confiança, muda assim o registo, sendo mais consentâneo com a necessidade de mudar o ambiente psicológico de cerco aos empresários e às classes médias, que está a afectar a confiança em Portugal, até do investimento estrangeiro.
Acabar com adversários nas autárquicas
As autárquicas acabam por ser o segundo plano deste grande choque de culturas entre o PS dos anos oitenta e o PS dos anos noventa. Sócrates deixou que Jorge Coelho reunisse todos os adversários do primeiro-ministro nas listas para Lisboa e autarquias próximas. Os grandes adversários do primeiro-ministro acabaram por ingenuamente aceitar a luta autárquica, não percebendo que essa era uma manobra inteligente do primeiro-ministro para acabar com eles. De Manuel Maria Carrilho a João Soares, de Francisco Assis a Jorge Coelho, a derrota do PS em Lisboa, Porto e Sintra poderia ser o mote para uma mudança no aparelho socialista.
Investigação acelera crise no PS?
E à boa maneira portuguesa o Ministério Publico entrou também em acção, respeitando a velha máxima de José Narciso Cunha Rodrigues: no Poder não se mexe. E, portanto, os visados acabaram por ser Isaltino Morais e agora esta semana o presidente da Câmara da Amadora, numa investigação que pode colocar em causa ex-ministros de Guterres e de Durão Barroso, que se deixaram envolver com os empreiteiros da construção civil, tendo, ao que o SEMANÁRIO pôde apurar, sido já constituídos cerca de 11 arguidos e feitas buscas em escritórios e casas particulares de personalidades envolvidas, e esperando-se que novas buscas possam ser feitas proximamente.
Esta investigação terá acelerado o confronto dentro do PS. Quem tem poder não é visado e quem o não tem pode cair nas malhas da lei. É uma guerra para uns de sobrevivência e para outros de manutenção do poder. Percebendo o cerco, o primeiro-ministro não se fez rogado e aceitou o confronto. Freitas do Amaral abre hostilidades, aceitando ser candidato presidencial, numa entrevista em que falava de corrupção e em má comunicação das medidas tomadas pelo ministro das Finanças.
Era de mais a ousadia de Sócrates para o Aparelho socialista, que percebia, finalmente, que Sócrates estava a desvalorizar as autárquicas, para não sobrarem consequências políticas para o Governo das humilhantes derrotas do PS e, sobretudo, começava a ser claro que, nas próximas autárquicas, os putativos adversários de José Sócrates dentro do PS poderiam ser destruídos.
Havia, portanto, que passar rapidamente para o contra-ataque. Manuel Alegre queria ser candidato presidencial e Mário Soares estava à espera dos acontecimentos. Poderiam avançar contra Sócrates. Ou então obrigavam o primeiro-ministro a ceder-lhes o controlo de negócios públicos, como a energia e as obras públicas e sobretudo as finanças das autarquias locais, para recuperar algum espaço já nas autárquicas.
O jogo está feito, e os próximos dias vão esclarecer quem ganhará. Se Sócrates perder, provavelmente este Governo cairá e eventualmente no fim do mandato, o Presidente da República ainda dará posse a um Governo socialista presidido por António Vitorino, o antigo comissário europeu que, avisadamente, se colocou de fora do primeiro Governo do PS.
O Aparelho socialista sempre preferiu António Vitorino a José Sócrates e, do lado da oposição, para a candidatura de Cavaco Silva a única maneira de travar a candidatura de Freitas do Amaral é mesmo deitar abaixo este Governo e, sobretudo, o primeiro-ministro José Sócrates.
Santanistas pedem presidenciais
antecipadas e renúncia de Sampaio
A oposição não esteve à altura para explorar a crise política e apenas chamou a atenção para o facto do Governo estar sem coordenação. O dramático para o regime é que esta crise política e o choque entre o primeiro-ministro e a sua tropa à esquerda, fazendo lembrar a crise do Governo de Santana Lopes, acabam por deixar a nu o erro da interrupção do anterior mandato legislativo.
Santana Lopes vê chegar o seu momento também. Nesta crise política, no fim do mandato do Presidente Jorge Sampaio e 130 dias de Governo Sócrates, emerge a figura do Presidente da República e as críticas dos apoiantes de Santana Lopes. Ainda ontem, Rui Gomes da Silva chamava a atenção para o facto do Presidente da República ter demitido Santana Lopes por causa da demissão do ministro do Desporto e nada fazer agora, que se demite um ministro de Estado e das Finanças. O Presidente da República, diz Rui Gomes da Silva, “deveria demitir este Governo, e uma vez que o não pode fazer, pois está em fim de mandato e não tem poderes constitucionais para isso, obviamente deveria apresentar a sua renúncia imediata e antecipar as eleições presidenciais”.