2025/07/12

O IMBRÓGLIO EUROPEUpor Jorge Ferreira

1.O problema da substância
Valery Giscard d’Estaing afirmou no dia 12 de Junho de 2001 na Assembleia Nacional francesa que ” quanto mais a Europa se alarga mais se torna impossível reformá-la”, que ” uma Europa a 27 não pode ter como objectivo um elevado grau de integração, nem dotar-se de instituições federais”, e que “votou contra a ratificação do Tratado de Nice (…)

porque é desfavorável aos interesses da França”.

Assim mesmo.

Entretanto, o mesmo Valery Giscard d’Estaing entregou à Presidência italiana uma proposta de Constituição europeia, para que a Conferência Intergovernamental, que se inicia em Outubro, a adopte.

E como chegámos até aqui?

Essa Constituição foi elaborada por uma Convenção, cujos membros não foram escolhidos pelo voto, cujo mandato foi excedido, pois que nunca lhe foi encomendada a elaboração de nenhuma Constituição e cujo funcionamento é um manual anti-democrático ao vivo.

Basta ler o que está escrito no Relatório enviado pela Presidência da Convenção ao Presidente do Conselho: “Foi negado aos membros da Convenção o direito à tradução, distribuição, debate e votação das suas alterações; nem um só eurocéptico ou eurorealista foi autorizado a estar presente como observador ou a participar nos trabalhos do Praesidium, nem de nenhum dos seus secretariados; Giscard d’Estaing não permitiu o exercício da democracia, nem um processo normal de votação na Convenção; o projecto de Constituição cria um novo Estado europeu centralizado, com mais poderes, mais remoto, com mais políticos, mais burocracia e um maior afastamento entre governantes e governados”.

Já não restam dúvidas para todos que o apregoado consenso na Convenção não passa de uma fraude política, que no fundo traduz uma imposição disfarçada de um texto pretensamente iluminado.

Esta Constituição é juridicamente ilegítima e politicamente errada.

A última coisa de que a Europa necessitava era de uma Constituição. A Constituição europeia resulta primeiramente de uma estratégia franco-alemã para acorrentar os restantes países europeus à sua estratégia específica, que não tem de ser necessariamente a estratégia dos outros países europeus.

Como afirmou António Barreto esta Constituição é “um processo furtivo de chantagem e hipoteca, de troca e baldroca, concebido com o propósito de amarrar países e governos e de transformar um debate em facto consumado”.

Está actualmente em curso uma estratégia de sedução que passa por dizer o mal e a caramunha desta Constituição europeia, acolhendo assim as vozes críticas do processo e da substância, para depois rematar com a seguinte conclusão: bom, mas agora não podemos voltar para trás, e se acaso votarmos contra a Constituição ficaríamos sem ela, o que seria bom, mas ficaríamos também sem Europa e sem União, o que seria péssimo. Assim concluiu António Barreto a sua posição sobre a questão.

Ora, esta posição, que é um erro em António Barreto, vai certamente transformar-se numa manha para os federalistas e para os centralistas.

De uma vez por todas há que não ter medo na Europa. Há que ter a coragem de resistir à chantagem do directório. Há que que ter a força de dizer não. Porque a verdade é que é possível outra Europa. Mas essa outra Europa jamais verá a luz do dia se todos nos conformarmos.

Por cá tememos o pior. Durão Barroso já afirmou que só quer ver alguns pormenores esclarecidos, denunciando assim a submissão do Governo ao diktat do Praesidium. O que significa que para o Governo o texto é aceitável. Ora, sucede que não é.

Juristas ilustres já desfizeram este absurdo jurídico a que chamam de Constituição europeia. Mas vai ser necessário dar-lhe também combate político.

2. O problema do método.

É óbvio para toda a gente dotada de bom senso, que uma coisa destas merece um referendo. O referendo sobre a Europa que nunca deixaram fazer em Portugal. O referendo que é o exercício da soberania popular por excelência.

Esclareçamos desde já um primeiro ponto: se se quer fazer um referendo sobre o resultado da Conferência Intergovernamental deste ano, temos de saber primeiro se vamos referendar um facto consumado ou se vamos decidir efectivamente alguma coisa. Isto é: se vamos referendar antes ou depois de o Governo assinar. Se o referendo é a sério e para decidir ou é a brincar e a fingir.

Se o referendo fôr antes, o povo decide e o Governo respeita. Mas se o referendo fôr depois da assinatura, o Governo tem desde logo a obrigação de esclarecer quais as consequências políticas é que retirará de uma eventual derrota da sua posição.

A verdade é que não se pode transformar um referendo desta natureza num plebiscito ao Primeiro-Ministro. Cheiraria demais ao plebiscito constitucional de 1933…,desvirtuaria por completo um instituto nobre e útil cada vez mais necessário nas democracias contemporâneas.

Depois é necessário resolver um segundo ponto: da Conferência Intergovernamental sairá um tratado. Mesmo que na substância seja uma Constituição, sairá formalmente um tratado. Assim sendo, a Constituição portuguesa, tal como está, proíbe os referendos que tenham por objecto tratados internacionais.

Por outras palavras: para referendar o tratado que vai sair da próxima Conferência Intergovernamental é necessário alterar a Constituição. Só é possível alterar a Constituição se o PS e o PSD estiverem de acordo, porque são necessários dois terços para aprovar alterações à Constituição.

A pergunta é: vão o PS e o PSD entender-se para alterar a Constituição no sentido de permitir o referendo? Vão o PS e o PSD pôr de lado o seu imobilismo doutrinário, os seus preconceitos politico-constitucionais e permitir finalmente o que sempre proíbiram? Ou, pelo contrário, quando Durão Barroso admitiu a possibilidade de fazer este referendo estava a brincar?

E se não fôr alterada a Constituição como vão o PS e o PSD descalçar esta bota já de si bastante anti-democrática por nascença?

Pensarão fazer uma simples e vazia consulta popular não vinculativa, onde a abstenção seria esmagadora, em que o significado político seria nulo, em que se estaria a brincar à democracia directa em vez de se dar a palavra ao povo para ser o povo a decidir aquilo que só ao povo cumpre decidir?

É urgente saber as respostas a estas perguntas. A bem da seriedade do processo político.

Por último é necessário esclarecer desde já que a peregrina ideia de referendar a Constituição europeia no dia das próximas eleições europeias, que ocorrerão em Junho de 2004, seria uma batota política inaceitável. Estaríamos ainda no domínio do plebiscito. Não é boa política em democracia misturar água com azeite.

Isto, claro, se não quisermos seguir a sugestão do Presidente do Praesidium da Convenção Europeia. Quando entregou o texto convencional a Sílvio Berlusconi, Giscard d’Estaing disse que o ideal seria assinar o tratado que instituísse a sua Constituição na véspera das eleições europeias, pois que dessa forma estas eleições poderiam constituir um momento e um acto de mega-ratificação nas urnas da sua Constituição! Um democrata este francês…

Lisboa, 31 de Julho de 2003

Política, Forças Armadas, justiça e jornalismopor Pedro Cid

Não me parece correcto que o general Silva Viegas se tenha demitido da Chefia do Estado Maior do Exército com a alegação pública de que tinha perdido a confiança no ministro da Defesa Nacional. Dizer isto, desta forma, e com todo o respeito, é contribuir para dar mais uma pequena machadada na nossa democracia.

Subverte os princípios da legítima subordinação dos militares ao poder político sufragado pelo voto. Isto, no plano dos valores e da ética de que as Forças Armadas são, de certa forma, depositárias únicas do nosso património.
Não quero retirar ao Silva Viegas a força do seu gesto de demissão. Parece legítimo dizer que os militares têm uma formação que não é compatível com certos comportamentos, formais ou substanciais. O militar, sério e compenetrado com os valores que lhe ensinaram a defender, é escravo da sua palavra. O que ele promete, cumpre. O que lhe prometem deve ser cumprido. Ou seja, o actual Ministro da Defesa, enquanto titular de uma pasta, que é prestigiada, que gere politicamente as Forças Armadas, naquilo onde a política tem força orientadora, nem sempre terá tratado os militares com a dignidade, formal e substancial, que eles reclamam para si. Um ministro pode ter um percalço inesperado e chegar atrasado a uma cerimónia. Não pode fazê-lo sistematicamente, porque isso fere os tais princípios por que se norteiam as Forças Armadas. O Ministro da Defesa não pode titubear na linha de rumo de reformas, nem dizer aos Chefes militares uma coisa e fazer outra, com a irresponsabilidade (e leviandade) política que é incompatível com as funções que exerce. São estas coisas acumuladas que levam um general dos mais prestigiados das nossas Forças Armadas ( já na reserva e com liberdade para fazer tais declarações), a dizer que o actual ministro não é confiável…
O general Silva Viegas foi imprudente na sua declaração. A demissão, por si só, ainda por cima apresentada ao Presidente da República, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas, directamente e não ao Chefe do Estado Maior General, seu superior hierárquico operacional ou mesmo ao próprio Ministro da Defesa, era já por si suficientemente ruidosa. Dizer que perdeu a confiança no Ministro é, no fundo, retirar espaço de manobra ao Presidente da República, o qual, aliás, nem sequer pediu ao general que aguardasse – aceitou logo o seu pedido de demissão – quando me parece que, antes de o fazer, devia consultar o Governo. Se o fez – pôde tê-lo feito – até agora não houve fugas de informação, o que também não deixa de ser curioso.
A reforma das Forças Armadas centra-se sobretudo na questão da sua profissionalização, da redução de efectivos, que devem ser altamente qualificados nos diversos patamares de hierarquia, na gestão harmoniosa de recursos, nos cortes em duplicação de missões, de institutos, de academias e, se calhar até de ramos e de armas. O Ministro Paulo Portas não pode viver com os louros políticos de ter conseguido resolver problemas que há muito se arrastavam, nomeadamente contagens de serviço e aposentação para os antigos combatentes. Não pode contentar-se com decisões, importantes sem dúvida, e até decisivas para o futuro, de resolução de contratos, de revisão da questão dos submarinos, ou das OGMA. Tem de olhar, para o dispositivo humano e de grande qualidade técnica que são os elementos, individual e colectivamente, considerados das Forças Armadas. Isso é o mais difícil e é o que tem tardado a ser feito. O Dr. Paulo Portas tem de perceber que qualquer afronta, mínima que seja, mesmo involuntária, mas com sequências em outras atitudes, afecta a Instituição. Espera-se pois que o Governo, e em particular o Dr. Paulo Portas, saibam rever a sua actuação. Penso que o Primeiro Ministro pode, também, ser um elemento decisivo. O 14 de Agosto, dia da Infantaria e efeméride, muito cara à Historia do País e dos militares, poderia ser um bom pretexto para algum gesto especial do poder político para as nossas Forças Armadas, uma espécie de ponto de partida para um novo tipo de relacionamento, directo, frontal e respeitador da Instituição Militar.
Não há qualquer discussão acerca da sua subordinação ao poder político. Não há, nem remotamente, a mínima condição para qualquer aventura fora do quadro democrático. Mais uma razão para que o poder político seja escrupuloso, cumpridor e fiável nas suas relações com os militares.
Num outro plano da actualidade, o debate da actuação dos jornalistas, nesta face crucial em que vive a justiça portuguesa, tem feito vir ao de cima algumas posições curiosas, que merecem reflexão de âmbito geral. Francisco Azevedo e Silva fez, há dias, no Diário de Notícias, uma afirmação fundamental neste debate e que, de resto constitui o cerne da actividade jornalística, tão violada grosseiramente hoje em dia pelos próprios jornalistas: “Importante não é proibir o jornalista de informar, é sim responsabilizá-lo pela notícia que dá. É ele o autor e não as fontes que cita ou omite”. Palavras sábias, palavras de risco. Em duas linhas recorda-se um código de conduta que ninguém, ou quase ninguém, está a cumprir. Por sua vez Teresa de Sousa, é autora de uma crónica notável no Público, ainda que me pareça muito ideologicamente orientada. Ainda assim, são cruciais algumas perguntas que faz: “Quem quis desmentir tão rapidamente as escutas a Ferro Rodrigues? Quem decidiu divulgar o caso ISCTE-CIDEC, até então imune a qualquer fuga de informação”. Por ser, em minha opinião, ideologicamente orientada, a prosa de Teresa de Sousa pede alguma força argumentativa e contém riscos de ambiguidade, mas prova à saciedade que há questões que são da justiça, que a justiça ou o legislador têm que ponderar, e há problemas de ética e deontologia que são dos jornalistas e do cuidado que têm obrigatoriamente que assumir nas suas relações com as fontes. Discernir onde é que as fontes podem ser manipuladoras é uma questão nossa, muito particularmente nossa, dos jornalistas, que têm fugido, em boa verdade, ao controlo colectivo. E só quando a democracia sofrer um qualquer abanão, autoritário ou de outra índole, aqui del rei que estamos a ser amordaçados…Quero ver, depois, quem vai estar na primeira linha da contestação….